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Zoilo Canaveri, “o” grande vira-casaca do futebol argentino

Virar a casaca não é nada incomum no futebol argentino. Passar por duas duplas rivais soa raro, mas exemplos também não faltam – o goleiro Juan Carlos Delménico, até hoje último doblecamiseta no Clásico Rosarino (passados mais de 30 anos), também defendeu os dois lados do Clásico Platense, enquanto o ex-pontepretano Darío Gigena vestiu as camisas do Clásico Cordobés e do Clásico Santafesino. Raríssimo é quando as duas duplas são as duas principais do país. Somando carreira de jogador à de técnico, César Menotti foi além: conseguiu mesmo trabalhar nos dois polos do Superclásico e nos dois do Clásico de Avellaneda… também nos dois do Clásico Rosarino. Mas arriscamos que Zoilo Ladislao Canaveri é o maior vira-casaca por excelência que a Argentina já viu. Primeiro a suar por Boca, River, Racing e Independiente, ele era uruguaio e… defendeu a seleção argentina. E sempre contra o Uruguai natal. Presente nos primeiros títulos argentinos de Boca e Independiente, El Tío, também recordista de partidas no amadorismo argentino, faleceu há exatos 50 anos.

Um uruguaio filho do Independiente – e seu joguinho pelo River

Nascido em 27 de junho de 1893 na capital Montevidéu, cabe dizer que Canaveri era oriundo de uma família argentina – em uma situação inversa à do goleiro Fernando Muslera, celeste até a medula embora nascido em Buenos Aires. Seus familiares, inclusive, estão bastante ligados ao Independiente, presidido em três gestões por seu primo Pedro Canaveri, cartola principal do Rojo em 1919 e nos períodos 1922-33 e 1942-45. E foi lá que Zoilo começou a jogar, aparecendo no time adulto em 1912. Justamente na primeira campanha de real relevo de um clube ainda relativamente recém-fundado (na virada de 1904 para 1905) e que inclusive começara a temporada em uma segunda divisão – criada em 1899, ela foi porta obrigatória a cada um dos cinco grandes argentinos, todos nascidos já no século XX. Canaveri seria exatamente o primeiro a passar por quatro dos cinco (até hoje, ninguém esteve nos cinco).

O ano de 1912 foi marcado por um primeiro cisma no futebol argentino. O grão-fino Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires recebera a equipe inglesa do Swindon Town e um descontentamento com a postura da então Associação Argentina de Football (AAF) em impor cobrança de ingressos até mesmo aos sócios do clube foi o estopim para o GEBA romper com a entidade e liderar a formação de uma rival, a Federação Argentina de Football (FAF). Ela atraiu até times que estavam na segundonda da AAF, como o próprio Independiente; a reação da AAF foi reiniciar do zero o seu torneio, que já estava em andamento, e preencher já em 1913 as lacunas mediante outros acessos via decreto, notadamente o do Boca. Sim: foi por virada de mesa que chegaram à elite os dois Reyes de Copas

Ao menos o time de Avellaneda justificou a promoção relâmpago: foi o líder do certame da FAF, finalizando a temporada com os mesmos 20 pontos do Porteño, com 19 do Estudiantes, 18 do GEBA, 17 do Argentino de Quilmes, 12 do Atlanta, 6 do Kimberley e 0 da Sociedad Hípica Argentina. Havia previsão do goal average (ligeiramente diferente do saldo de gols por ser o quociente e não a subtração dos gols pró pelos gols sofridos) como critério de desempate e ele favorecia o Rojo. Que acabou pecando de cavalheiro, ciente de que a escalação mista do Argentino de Quilmes na rodada final, goleado por 5-0, poderia causar uma impressão enganosa da justiça do título. Os próprios campeões fizeram questão de um jogo-extra com o Porteño, clube ligado à comunidade irlandesa. Uma eventual confirmação do título para o Independiente faria dele o primeiro campeão argentino vindo de fora da comunidade britânica.

A partida extra estava em 1-1 quando, a três minutos do fim, o Rojo teria feito outro gol. Porém, o árbitro Carlos Aertz não o validou. As reclamações geraram três expulsões e por fim os vermelhos deixaram o campo. No dia seguinte, sem que o Independiente se reapresentasse para novo duelo, a FAF considerou o Porteño como campeão. Além daquela partida, Canaveri participara de nove das quatorze da temporada regular e fizera seus três primeiros gols. Em 1913, Avellaneda (e o futebol argentino “latino”) festejou seu primeiro título argentino, mas através do Racing, no torneio da AAF; no da FAF, o Independiente despencou para 5º lugar, com quatro golzinhos de Canaveri em dezessete jogos.

Segundo sentado nesse Independiente de 1913

Foi em paralelo ao campeonato da FAF de 1913 que Canaveri fez seu único jogo pelo River (um clube então na AAF), em 13 de julho daquele ano, pela Copa Honor, uma antecessora da Copa Argentina – reunindo times de Rosario e Santa Fe, até então de participação negada tanto na liga da AAF como na da FAF, aos da Grande Buenos Aires. O torneio se deu em jogos únicos e, mesmo em seu então bairro de La Boca (como o próprio rival), vizinho a Avellaneda, o River foi derrotado por 4-2 pelo Estudiantes de Buenos Aires. Mas o uruguaio nunca vestiu propriamente a icônica Banda Roja: na época, a camisa riverplatense não tinha faixa diagonal, usada ironicamente pelo próprio Boca; era a tricolor em grossas listras alvirrubra separadas por finas listras pretas.

O próprio Racing terminaria campeão também daquela Copa Honor – ao passo que Canaveri, um mês e meio depois de sua única partida como millonario (apelido que na verdade sequer existia, em tempos humildes do River), já constava em uma estatística especial do Independiente: em 31 de agosto, o Rojo venceu pela primeira vez como visitante um clube estrangeiro. Foi um 3-1, com gol de Canaveri, sobre o Central de Montevidéu, o atual Central Español.

Ainda em 1913, o uruguaio esteve em campo em jogos considerados não-oficiais da Argentina; era o combinado da FAF, derrotado pelo Uruguai por 4-0 em 27 de abril e derrotado com gol dele por 4-2 pela seleção rosarina em 1º de junho antes dos trocos: 2-1 sobre Rosario em 9 de julho e os mesmos 4-0, agora a favor, sobre o Uruguai em 28 de setembro.

Acumulando títulos no Racing e chegando à seleção

Encerrada a temporada 1913, um Racing campeão de liga e de copa não se iludiu com a deficiência detectada na sua ponta-direita, posição em que nem Raúl López e nem Juan Viazzi agradaram. E assim convenceu Canaveri a virar a casaca em Avellaneda. Mas antes, virou a casaca a nível seleção: figurou em 1º de março de 1914 em amistoso considerado não-oficial contra uma delegação uruguaia, 1-1 no estádio do GEBA. O campeonato só começaria em abril, mas naquele mesmo março Canaveri já deixava seus primeiros gols racinguistas – curiosamente, sobre a dupla Boca (3-0 no dia 7) e River (derrota de 2-1 no dia 30).

Ainda assim, Viazzi foi o ponta-direita em 5 de abril, no tira-teima entre o campeão da AAF de 1913 e o da liga rosarina, o Newell’s, um 3-1 que valeu pela Copa Ibarguren. Mas Canaveri ocupou o lugar já na rodada inaugural da liga, um 4-1 no Huracán dez dias depois. E permaneceu titularíssimo, embora por vezes improvisado na ponta-esquerda diante de lesão de Juan Perinetti. Foi por lá, inclusive, que marcou um primeiro gol “oficial” pela Academia, já na 6ª rodada, em 3-1 no Belgrano Athletic (não confundir com o time cordobês). Outro pintou na 7ª, já de volta ao flanco direito, no 7-1 sobre o Platense. Detalhe: o campeonato havia parado por quarenta dias, diante da série de amistosos do Exeter City, na famosa turnê em que esse clube “estreou” a seleção brasileira.

O gol seguinte veio na 10ª rodada, um sonoro 5-0 sobre o Boca, surra consumada antes do intervalo. Canaveri fez o terceiro, mas acabou expulso a seis minutos do fim por reclamações. Em paralelo, com o uruguaio em campo, o Racing bateu por 1-0 outro europeu de visita, o Torino, em 3 de setembro. A rodada seguinte foi após o amistoso e, sem que na época a expulsão rendesse suspensão automática, Canaveri figurou no 2-0 sobre o River – em duelo de fair play, em que a Academia se absteve de atacar nos quinze minutos finais após o oponente perder dois jogadores por lesões; também eram tempos em que substituições não eram permitidas. Canaveri, assim, jogou em todas as partidas de um título invicto, garantido ainda no penúltimo compromisso, um 3-0 fora de casa no Banfield, em 11 de outubro.

Cenas de 1915: Canaveri é o terceiro da esquerda para a direita no Racing campeão. À direita, Canaveri contra o Independiente no primeiro clássico de Avellaneda da primeira divisão argentina

Foi uma campanha impressionante mesmo para um campeão invicto: 11 vitórias em 12 jogos, 45 gols marcados e apenas sete sofridos. A única derrota não-amistosa do Racing em 1914 viria na sequência do título argentino, em 1º de novembro, em 2-1 para o River pela semifinal da Copa Competencia, embrião da Libertadores ao reunir times da Grande Buenos Aires, Rosario e Montevidéu. Mas logo a Academia ratificou-se como melhor equipe argentina ao erguer nova Copa Ibarguren, em 12 de dezembro – agora, derrotando por 1-0 o Rosario Central, o campeão rosarino da temporada.

Canaveri primava mais pela construção do que pela conclusão das jogadas, segundo dois relatos, já dos anos 30, do cronista Chantecler, da revista El Gráfico: “enfileirava homens e chegava à linha de fundo, desde onde costumava passar para trás ao companheiro melhor colocado, para que sem perigo de impedimento pudesse chutar favoravelmente ao arco”, relatou em 1938. Antes, em 1932, enfatizava a habilidade do uruguaio em pisar na bola no sentido positivo do termo, desequilibrando a corrida de quem lhe perseguia até a linha de escanteio e ficando assim livre para “executar o cruzamento matemático”.

Mas o ano de 1915 viu uma temporada relativamente goleadora do uruguaio, ao menos na liga: foram onze gols em 23 partidas, no torneio que reunificou AAF e FAF e terminou historicamente marcado por ser o primeiro a ver na elite os futuros cinco grandes do futebol argentino. E o primeiro Clásico de Avellaneda da primeira divisão. Assim, a seleção argentina quis contar com ele para duelar com a uruguaia pelo troféu binacional Copa Lipton de 1915, travada já em 15 de agosto. As regras da Lipton eram claras em só admitir participação de jogadores nativos e foi exatamente em tentativa de última hora para ter Canaveri que se movimentaram para naturaliza-lo formalmente. Ele acabou realmente não participando da Lipton, mas foi peça-chave no tricampeonato racinguista seguido de um time que, em 24 jogos, fez 95 gols e sofreu apenas cinco.

Nas Copas, o time foi derrotado pelo Porteño na decisão da Competencia, mas em outubro foi campeão da Honor, sobre o Tiro Federal rosarino (2-1). Já a liga ficou a perigo exatamente por causa do primeiro Clásico de Avellaneda da elite: o Independiente, na rodada final (em 12 de dezembro), venceu em campo por 2-1, resultado que premiava o San Isidro como campeão. Contudo, uma escalação irregular do adversário Victorio Cappelletti, ele próprio autor de um dos gols do Rojo, fez o tribunal dar os pontos ao Racing. O tapetão assim permitiu que Racing e San Isidro terminassem igualados na liderança, forçando um jogo-extra já para 6 de janeiro de 1916.

A Academia venceu por 1-0 e chegava ao tricampeonato. Que, por sua vez, virou tetra em 1916. Canaveri esteve em dezoito jogos dessa campanha e dessa vez só marcou uma vez. Acabou de fora da primeira Copa América, mas foi exatamente em 1916 que o uruguaio fez seus dois jogos oficiais pela seleção argentina. Foi no espaço de um mês e meio, ambos no próprio estádio do Racing: 3-1 em 15 de agosto pela Copa Newton (que, diferentemente da Lipton, permitia estrangeiros desde que atuantes na liga representada pela seleção) e um sonoro 7-2 em 1º de outubro pela Copa Círculo de la Prensa.

Primeiro agachado na seleção argentina antes do 7-2 sobre o Uruguai natal. Curiosamente, com outro estrangeiro: Hiller era alemão

É que o Racing, afinal, simplesmente não perdia na liga; chegou a acumular naquele 1916 nada menos que dezessete jogos de vitórias seguidas, ainda um recorde na primeira divisão, embora esquecido – normalmente se recorda como recorde a sequência de treze jogos do San Lorenzo em 2001, por vir no profissionalismo. Até houve derrota em 1916: o Rosario Central venceu em 26 de março pela Ibarguren ainda válida por 1915. A liga de 1916 foi garantida em 11 de novembro e, na sequência, o Racing perdeu em 3 de dezembro para o Nacional um tira-teima entre os campeões argentino e uruguaio, a Copa Aldao. Mas em 30 de dezembro veio um troco com juros pela Ibaguren própria de 1916: Racing 6-0 sobre o Central, com Canaveri anotando o quinto gol. Foi sua despedida oficial como racinguista.

Somando copas e ligas, Canaveri jogou 81 partidas entre e anotou vinte gols pelo Racing.

Independiente, segunda parte

Em 1917, Canaveri já não participou do campeonato argentino. O Racing, que mesmo assim seria penta (o tetra, já suficiente para ser um recorde em toda a história da liga argentina, viraria mesmo um hepta)  cumpria à risca o amadorismo a ponto de dispensar em 1914 o goleiro do time campeão de 1913, Carlos Muttoni, por este ter pedido ajuda de custo para adquirir chuteiras novas. Boca o sondava abertamente e Canaveri se dispôs a atravessar novamente o Riachuelo, caso os xeneizes lhe providenciassem emprego. A liga, que ainda primava pelo amadorismo, reprimiu suspendendo o jogador, razão pela qual ele inicialmente só atuou em amistosos pelo Boca – um já havia ocorrido ainda antes da transferência, em 12 de novembro de 1916, contra o Sportivo Barracas.

O perfil de Canaveri no site estatístico Historia de Boca mostra que ele jogou outros nove amistosos entre janeiro e outubro de 1917 pelo clube, somando quatro gols. Já era o suficiente para o uruguaio se tornar o primeiro vira-casaca tanto no Clásico de Avellaneda como no então Clásico Boquense – afinal, o River seguia sendo um time também de La Boca. E a condição ainda vigente de lacuna de troféus de relevo a essa dupla afastava a condição de Superclásico, mote que só se construiria a partir dos anos 30. Mas o destino final do uruguaio, a princípio, foi mesmo a antiga casa.

O Independiente ainda não era um time capaz de brigar nos pontos corridos, mas já crescia nas esquecidas Copas da época – ainda sem Canaveri de volta, fora vice em 1916 tanto da Competencia como da Honor e ganhara a Copa Competencia válida por 1917. Em 1918, a que não escapou foi a Honor, o mesmo torneio que rendera seu único jogo pelo River. O primeiro oponente foi o Columbian, um dos times que originaria o Almagro. O 1-1 forçou novo jogo dali a um mês, servindo como cartão de visitas do uruguaio; o adversário abriu o placar, mas Canaveri fez um dos gols da virada por 3-1 construída ainda no primeiro tempo, antes do placar final ficar no 4-3.

O duelo seguinte foi nada menos que um Clásico de Avellaneda, onde o todo-poderoso Racing via crescer um vizinho virgem de ligas, mas incômodo. Canaveri fez um golaço driblando toda a defesa dos ex-colegas no triunfo por 2-1. Talvez mais heroico tenha sido passar de um Boca ainda virgem também: é que a lesão do colega Guillermo Ronzoni em tempos sem substituições fez o Independiente jogar com um jogador a menos todo o segundo tempo. Canaveri e colegas seguraram o 1-1 e triunfaram na prorrogação. Na semifinal, o Rojo resgatou sua camisa branca original para receber o Newell’s do craque Julio Libonatti (líder da primeira Argentina campeã de Copa América, em 1921) e triunfou por 3-1 – com Canaveri acertando um chute de longa distância para conferir o terceiro gol.

Na decisão, o campo neutro do GEBA viu o triunfo mínimo sobre o Platense coroar um nascente Rey de Copas. Em paralelo, o Racing era hexa seguido no campeonato argentino, mas sem que Canaveri desapontasse individualmente: foram dez gols em 16 jogos na liga por um time 9º colocado. Em 1919, então, o Boca enfim conseguiu traze-lo de vez à camisa azul y oro. Ao menos por um ano e meio.

No primeiro título argentino do Boca

Canaveri começou a temporada 1919 já no Boca, o que incluiu um dérbi com o River, um 0-0 em 27 de julho. Que acabaria anulado nas estatísticas. Tudo por um novo cisma para cima da AAF, tal como em 1912. Já era agosto quando a associação rejeitou as nomeações de representantes de alguns clubes, que ignoraram a postura. Ela então os suspendeu provisoriamente as afiliações deles: nada menos que o multicampeão Racing, o bivice River, um Independiente que ironicamente liderava o certame, além de Platense, Tigre e Estudiantil Porteño. Embora a medida tivesse caráter temporário e não fosse uma expulsão definitiva, os clubes receberam solidariedade: Atlanta, Defensores de Belgrano, Estudiantes de Buenos Aires, Gimnasia LP, San Isidro, San Lorenzo e Sportivo Barracas insistiram que a penalidade fosse revista.

Raros registros dos poucos jogos dele pelo Boca, embora virasse até tango: é o penúltimo agachado na foto esquerda

A entidade foi irredutível: todos os reclamões acabaram expulsos. Eles então criaram a dissidente Associação de Amadores (ainda que o amadorismo já começasse a ser de fachada) e puderam concluir ainda em 1919 um campeonato à parte, reiniciado do zero entre setembro e dezembro, no qual o Racing emendou seu recordista heptacampeonato seguido. Única reconhecida perante a FIFA, AAF não deu o braço a torcer e também reiniciou do zero o torneio de 1919, a partir de setembro também, embora só seis clubes restassem-lhe fiéis: Boca, Estudiantes de La Plata, Huracán, Eureka, Almagro e Porteño, na ordem final da tabela.

Canaveri foi o grande destaque da rodada de reestreia, com um hat trick no 4-1 sobre o Porteño, que em quinze minutos de jogo já perdia por 3-0. Mas foram justamente os únicos gols dele no torneio retomado. É que o uruguaio tinha no Boca um concorrente feito Pedro Calomino, um dos primeiros jogadores-símbolo do clube e da seleção argentina (chegou a ter o recorde de partidas pela Albiceleste) e só atuou outras quatro vezes na trajetória que rendeu o primeiro título argentino dos auriazuis, já em 4 de janeiro de 1920; a última participação de Canaveri se dera ainda em novembro e ele só reapareceria em mais dois jogos, ambos já em maio de 1920: 2-0, com gol dele, sobre o Huracán pela Copa Honor da AAF de 1920, e no tira-teima com o Nacional (campeão uruguaio de 1919) pelo tira-teima que era a Copa Aldao; os tricolores venceram por 3-0.

O Boca seria bicampeão seguido da AAF em 1920, mas sem participação de Canaveri. Mesmo sem ser protagonista, foi um xodó momentâneo a ponto de virar tango enquanto jogador boquense. Ainda em 1920, Canaveri se bandeou para a dissidente Associação de Amadores – e para o Independiente. Para não mais sair até 1935.

Independiente, terceira parte: nos dois primeiros títulos argentinos do Rojo

O campeão de 1920 na liga dissidente foi o River, pela primeira vez vencedor do campeonato argentino. Em 1921, o Racing obteve seu oitavo título em nove campeonatos, ofuscando um ótimo terceiro lugar do vizinho – que inclusive venceu o River pela primeira vez (desconsiderando-se amistosos) exatamente naquele torneio, com gol de Canaveri incluso no triunfo de 3-1, em 17 de abril de 1921. O ataque do Rojo já tinha desde 1919 o histórico Raimundo Orsi, futuro vencedor de Copa do Mundo pela Itália. Naquele 1921, estrearia então o maior artilheiro do amadorismo argentino, o meia-esquerda Manuel Seoane. A eles se juntaria em 1922 o malabarista Alberto Lalín na outra meia. El Negro Seoane, por sua vez, explodiria com recordistas 55 gols, recorde de um só jogador em um só campeonato argentino.

Não teve para ninguém em 1922, uma campanha estupenda (encerrada já em 27 de maio de 1923) com 97 gols a favor, cifra recorde de um campeão na era amadora – tamanho que o segundo melhor ataque fez 65, casos de Racing e San Lorenzo. A defesa sofreu só 27 gols ao longo de quarenta rodadas, com trinta vitórias, cinco empates e cinco derrotas. O clube venceu as sete primeiras e, embora caísse justamente no Clásico de Avellaneda na 8ª rodada, manteve o gás. Com direito a troco no rival, batendo-o por 4-2 no returno mesmo na casa vizinha. E não parou por aí: da 28ª rodada à 34ª o Rojo não só ganhava seguidamente como sequer sofria gols. Derrotado na 35ª pelo Gimnasia, tratou de ganhar os cinco duelos finais, sofrendo apenas dois gols. Veterano para aqueles tempos, o trintão Canaveri contribuiu com cinco gols.

Os diabos vermelhos originais: Canaveri, Lalín, Ravaschino, Seoane e Orsi

Em 1923 e em 1924, o San Lorenzo (o único grande que faltou a Canaveri) venceu pelas duas primeiras vezes o campeonato, com o Independiente à espreita: a nova força de Avellaneda foi vice dois pontos abaixo no primeiro e terceiro colocado no outro, também sob três pontos a menos. Em 1925, o Racing teve seu canto do cisne no amadorismo, campeão argentino pela nona e última vez até 1949. O Independiente sentia o peso do desfalque do goleador Seoane, suspenso pela Associação de Amadores por agredir um árbitro (o que não o impedia de jogar na AAF, onde atuou pelo El Porvenir, além de amistosos europeus com o Boca) e ficou apenas em sexto. Mas compensava novamente nas Copas, com um tricampeonato seguido na Competencia entre 1924 e 1926, o que permitiu ao clube se tornar o proprietário definitivo desse troféu.

Foi inclusive de Canaveri o primeiro gol da série, cabeceando o rebote do travessão no duelo inaugural com o Vélez no primeiro turno da fase de grupos pela edição 1924. No returno, marcou mais dois em um 3-0 no mesmo adversário – em um, driblando toda a defesa velezana e, no outro, chutando tão forte que o goleiro adversário terminou desmaiando. Nos mata-matas, começou então uma série interminável de Clásicos de Avellaneda, com simplesmente três 0-0 seguidos já na segunda quinzena de janeiro de 1925. Isso rendeu um impasse entre as duas direções: os cartolas do Racing queriam adiar a definição para março, sob calor mais ameno. Os do Rojo queriam encerrar o quanto antes a história e acabaram levando pelo W.O. do rival em 8 de fevereiro. Tiveram pela frente o surpreendente Almagro, que tinha um ídolo da seleção em Humberto Recanatini e eliminara o River. Após dois empates (1-1 e 0-0) na segunda quinzena de fevereiro, o neutro campo do Platense coroou em 1º de março a conquista indepedentista por 1-0.

Quase encerrado o ano de 1925, começou nova Copa Competencia, agora em pentagonais de turno único. E em 8 de novembro o nascente Rey de Copas começou com tudo, em um 7-0 no Estudiantil Porteño. Nas sequência, 1-0 no Sportivo Buenos Aires, 0-0 com o Excursionistas e 3-0 no Barracas Central, ainda em dezembro. As semifinais precisaram aguardar até 14 de março de 1926, quando o Gimnasia foi vencido por 2-0 no campo neutro do River; Canaveri foi ativo em especial no segundo gol, roubando a bola para iniciar o contra-ataque que resultou em vistoso voleio de Orsi. Em paralelo, o próprio River perdia para o Sportivo Palermo e viu seu estádio ser o palco neutro também da decisão, na quinta-feira santa de 1º de abril. Dia de outro 2-0, com Canaveri fornecendo assistência ao segundo, trocando tabelas com Luis Ravaschino.

Para 1926, Seoane voltou e fez toda a diferença na reconquista da liga argentina, ganha de modo invicto, embora só por um pontinho a mais que o San Lorenzo. Foi com aquele segundo título que o Independiente ganhou o apelido de Diablos Rojos, originalmente a alcunha do quinteto ofensivo alinhado com Canaveri, Lalín, Ravaschino, Seoane e Orsi, descritos como “um ataque endiabrado” pelo jornalista Hugo Marini. A retaguarda tampouco deixava a dever: o goleiro Pedro Isusi lograria um recorde de jogos sem sofrer gols, em 1.101 minutos ao longo de mais de onze partidas seguidas. Canaveri, que contribuiu com quatro gols, por sua vez sagrou-se campeão em 1926 também no campeonato argentino de seleções regionais, defendendo a da Grande Buenos Aires.

Primeiro agachado na tarde em que o Independiente, com escudo nacional, fez 4-1 no Barcelona, em 1928. Canaveri abriu o placar

Em paralelo à campanha na liga, o time já começava com tudo a campanha copeira – iniciada em Clásico de Avellaneda vencido por 2-0 mesmo na casa rival, em 13 de maio. Foi na Copa Competencia que o Independiente teve inclusive sua única derrota em toda a temporada de 1926, um 2-1 fora de casa para o Platense, em 29 de junho, ainda pela fase de grupos. A Copa foi retomada três meses depois, já em 17 de outubro, com um 4-0 no Sportivo Barracas. Restava enfrentar o Almagro, em 14 de novembro, e uma derrota igualaria os dois na liderança, cenário que forçaria um jogo-extra. Que terminou desnecessário: 3-0 também nos tricolores. O primeiro título do ano se garantiu em 26 de dezembro, pela liga: foi ao se completar uma partida outrora suspensa com o Atlanta e vence-la por 2-0.

Em 9 de janeiro de 1927, o recém-campeão argentino então iniciou as semifinais da Copa Competencia; o 0-0 com o River, no estádio neutro do Sportivo Barracas, forçou jogo-extra dali a uma semana, no mesmo campo. O único gol surgiu em cruzamento de Canaveri, sucedendo-se então tabelas entre Orsi e Seoane, cuja cabeça colocou a bola na rede. Em 20 de janeiro, o mesmo estádio recebeu a decisão entre Independiente e um Lanús curiosamente trajado com uniforme do Racing, diante da possível confusão entre as camisas roja e granate. Pois a cortesia do rival foi respondida com um sonoro 3-1, com o golzinho de honra lanusense vindo já a três minutos do fim.

Os campeões dobrados de 1926 gradualmente passaram por relativa entressafra, com a força roja se fazendo sentir em prestigiados amistosos. Notadamente um 4-1 sobre o Barcelona em 11 de agosto de 1928, com direito ao Independiente usar o escudo nacional bordado na camisa – confeccionada pela Masllorens Hermanos, empresa comandada por catalães. Foi do uruguaio o primeiro gol, logo aos 10 minutos. Também houve resultados expressivos contra Celta de Vigo (3-0, naquele mesmo ano, em 14 de julho) e Chelsea, com quem se empatou em 1-1 em 15 de junho de 1929, justamente em uma das últimas partidas do Canaveri jogador. No segundo semestre, tornou-se o primeiro técnico da história do Independiente.

Canaveri seguiu até 1935 no novo cargo, tendo como ponto alto o campeonato argentino de 1932, onde o Rojo estendeu a disputa com o agora millonario River até o jogo-desempate após ambos terminarem co-líderes. Mas a nova carreira não se comparou à do recordista de jogos na era amadora do futebol argentino, somando-se jogos de copa (73) e de liga (311) em uma trajetória que durou de 1912 a 1929. Ou de quem até os anos 60 foi o único campeão por Racing e Independiente e desde então sucedido por muitos poucos: Norberto Raffo, Miguel Ángel Mori, Humberto Maschio (este, como jogador em um e treinador no outro), Miguel Ángel Ludueña e Hugo Pérez. Atualização em 2019: Nery Domínguez juntou-se nesse ano a esse grupo.

Menos ainda são os sucessores como membros dos quatro clubes mais vencedores da Argentina: Canaveri só foi ser igualado em 1982, quando Vladislao Cap treinou brevemente o Boca após ter sido jogador de Racing e River e técnico em 1971 do (campeão) Independiente. Em 1983, o lateral Osvaldo Pérez chegou ao Boca após ter defendido na ordem River, Independiente e Racing. E em 1996 o lendário César Menotti iniciou sua primeira passagem no comando do Independiente após ter treinado a dupla Boca e River e, como jogador, defendido Racing e Boca.

As estatísticas do Canaveri jogador. E ele como treinador, recebendo em 1934 o futuro maior artilheiro do Independiente: Arsenio Erico
Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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