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Do bairro para o mundo: há 30 anos, o Vélez vencia seu Mundial, sobre o Milan

Originalmente publicado nos 25 anos, em 01/12/2019 – e revisto, atualizado e ampliado

O ícone Chilavert já disse que aquele Vélez sairia campeão até no Vietnã em guerra. O cenário oriental foi o Japão mesmo. Pela frente, um Milan que era virtualmente a Itália quase campeã mundial naquele ano: as trocas eram praticamente Pagliuca por Sebastiano Rossi e Baggio por Savićević. Já os argentinos ainda eram um time de bairro – e por isso, diz a lenda, o técnico oponente Fabio Capello, quando inteirou-se disso, afirmou que, com este porte, estariam na terceira divisão se fossem italianos. Mas o elenco que havia encerrado o Dream Team do Barcelona de Romário, Stoichkov e do técnico Cruijff com um 4-0 na final da Liga dos Campeões acabou sobrepujado por aqueles esforçados sul-americanos sem estrelismos: a estrela era o jogo em equipe. Como pregava seu treinador, Carlos Bianchi, que não perdia a humildade apesar da carreira fantástica de goleador.

“Tens caneta para anotar? San Telmo, Defensores de Belgrano, Huracán, Argentinos Jrs, Platense, River, Nueva Chicago, Laferrere, Almirante Brown, Flandria, Tigre, San Lorenzo, hmm… Deportivo Lugano, Deportivo Paraguayo, Riestra, Deportivo Merlo, Barracas Central e Vélez, onde me recusaram uns anos antes de me aceitarem. (…) Do Tigre fui meio resignado, já eram quase 20 equipes e 20 fracassos. Uma manhã passei pelo posto de diários do meu amigo Quique e li que o Vélez testava pela última semana as categorias 1971 a 1974. Fui sozinho, vestido de jogador, com minhas chuteiras, cabelo grande. Me colocaram no segundo jogo e arrebentei. (…) ‘Sempre foste parrudo?’, me perguntaram. ‘Quanto pesas?’ Lhe respondi que 98. ‘Baixe seis quilos e volte em dois meses que vamos seguir lhe testando’”.

Trotta, Gómez, Sotomayor, Almandoz, Chilavert e Basualdo, Bassedas, Asad, Flores, Pompei e Cardozo em Tóquio

Omar Asad assim respondeu em entrevista de 2010 à revista El Gráfico sobre as desventuras para iniciar a carreira. Poderia até ter ficado no Tigre (“estive 4 meses, treinava com o time principal e um dia me chama o presidente, Daniel Gutiérrez, para assinar o contrato. Me ofereciam zero de salário, zero de vale-transporte, zero de tudo, ‘para desempenhar-se no plantel profissional de Primeira e da Reserva do Club Atlético Tigre’. Pedi um minuto e chamei por telefone desde outro escritoriozinho meu primo Julio Asad, o ex-jogador, que me ajudava em tudo. ‘Sai e anda correndo, te espero na Beiró com General Paz”’). Caso Asad houvesse ficado no Tigre, o Vélez poderia ter se privado de suas maiores glórias…

Como contamos aqui sobre sua curta e meteórica carreira, El Turco Asad estreou profissionalmente em 1992 e no ano seguinte foi artilheiro do elenco velezano campeão argentino pela segunda vez, a primeira em 25 anos, pelo Clausura 1993. Um ano depois, um time de bairro venceu a Libertadores sobre o bicampeão São Paulo de Telê Santana, com Asad marcando o único gol argentino nas finais. E ele voltaria a anotar trinta anos atrás. Um golaço que simbolizou como poucos poderiam todo o atrevimento, garra e magia daquele vencedor Vélez dos anos 90.

Na fantasia tornada realidade, Pompei foi mais que Boban

Conforme avançava na Libertadores de 1994, o Vélez, vice-campeão por um ponto no Apertura 1993 (finalizado apenas em março de 1994), se desleixara crescentemente no Clausura 1994: fora simplesmente o antepenúltimo nesse torneio, encerrado precisamente três dias antes do título continental. Entre a volta olímpica no Morumbi em 31 de agosto e a volta olímpica dada no Japão naquele 1º de dezembro, o Fortín levou o Apertura 1994 bem mais a sério, ainda que decaísse na reta final. Afinal, por meses havia, não haveria a rotina paralela copeira, diferentemente do primeiro semestre. As aspas de Bianchi a seguir, como as demais, foram retiradas da edição especial que a revista El Gráfico lançaria após o Mundial:

“No 1º de setembro de 1994, chegamos de volta a Buenos Aires. Foi uma viagem longa por problemas de passagem, mas uma das mais felizes da minha vida. A taça descansava em nossas mãos e eu não esquecerei nunca as caras de Trotta, Flores, Bassedas e Sotomayor. Pareciam garotos brincando no aeroporto de São Paulo, quando na realidade eram verdadeiros homens. Mas nessa mesma noite, ao apoioar a cabeça na almofada, imaginei o futuro. Já havíamos ganho o que queríamos e devíamos nos impor novas metas. Então me ocorreu que, para afastar um possível relaxamento, tinha que falar outra vez com os jogadores. No dia seguinte, nos reunimos no campo auxiliar. Era o primeiro treino depois da obtenção da Libertadores e já começava o Torneio Apertura. Tínhamos pouco tempo de descanso e vários lesionados. Mas minha ideia era iniciar com tudo o campeonato, impondo autoridade”.

Plateia velezana em Tóquio e japoneses encantados com Bianchi

Na conversa, lhes disse que tudo o que acabávamos de viver era muito lindo, muito bonito, mas também já era passado. E isso que não me agrada falar muito com os jogadores. Sou dos que não querem confundi-los, dos que tratam de dizer o básico. (…) Eu estava convencido de que, para chegar bem à partida contra o Milan, devíamos permanecer vencedores. Essa era a prioridade. E para logra-la tínhamos que andar bem no torneio local. Pretendia que os jogadores só pensassem no campeonato argentino. Do Milan, me encarregava eu. E assim foram passando as rodadas iniciais. Nessas rodadas, apareceu o Vélez que eu queria: asfixando os rivais como local e como visitante”.

O campeão da América, de fato, ganhou as cinco primeiras partidas do Apertura, período no qual o clube voltou a ser notícia internacional pelo primeiro gol de falta que Chilavert conseguia pelo clube. Na sexta rodada, o Fortín empatou e manteve a invencibilidade por mais um tempo, a ponto de Bianchi permitir-se ir à Europa para assistir pessoalmente o Milan, delegando ao assistente Carlos Ischia (seu velho parceiro nos tempos em que ambos defendiam o clube como jogadores, no início dos anos 80) o comando técnico interino do Vélez. El Virrey testemunhou que o adversário, justamente por ser a base da seleção italiana finalista da Copa do Mundo, vinha sob desgaste físico e em baixa. E, em tempos pré-internet, trouxe consigo muito material na bagagem.

Outros coadjuvantes da conquista: Zandoná, Almandoz, Turu Flores e Bassedas turistando; Cardozo, Gómez, Pompei (encoberto), o capitão Trotta e Sotomayor com a taça Toyota

Mas, conforme se aproximavam as 34 horas de viagem entre Buenos Aires e Tóquio, pouco a pouco os campeões da América começaram a perder o foco doméstico na concorrência com um River irretocável que, recém-reforçado com o ídolo Francescoli, terminaria até campeão argentino invicto pela única vez em sua história – tendo como principal concorrente no encalço até o fim o San Lorenzo. A torcida velezana entendeu: despediu-se com aplausos e afeto dos jogadores no último compromisso prévio ao embarque ao Japão, ainda que fosse um 0-0 insosso com o Argentinos Jrs… duelo que começava a gerar certa rivalidade por reunir os dois times portenhos campeões da América, mas ausente do grupelho dos “cinco grandes” para os puristas.

Ciente da oportunidade única, Bianchi bancou as passagens de pai, esposa, filha, alguns amigos e até de sobrinhos, não inclusas no patrocínio da Toyota (alguns desses entes queridos, inclusive, ainda moravam na França), sem deixar passar meses jogando “na cabeça” o duelo com o Milan. Concluiu que não adiantaria pressionar os italianos na própria defesa, ou esgotaria os comandados. Mas no meio-campo, sim, contando com o bom passe em profundidade dos volantes José Basualdo (representante do time na Copa do Mundo de 1994) ou Roberto Pompei (quem cobrou o último pênalti que valeu a Libertadores) para acionar os tanques Asad e José Turu Flores (com habilidade incomum para alguém tão robusto fisicamente) nas costas da zaga milanesa. Na Europa, pudera ver e confirmar em informes que mesmo Baresi e Maldini não vinham na melhor fase física. A ideia: cansar a todos como se jogasse pelo 0-0.

Os protagonistas: Asad (celebrando o gordo réveillon do Vélez, que foi fundado em 1 de janeiro), Bianchi e Chilavert

Mas o início da final não foi fácil. O Milan, inclusive pela vasta experiência histórica recentíssima em Tóquio (visitada três vezes entre 1988 e 1993 pelo adversário), dava medo: “na noite anterior me levantei às 4 da manhã. (…) Estavam todos com os olhos bem abertos. Todos. Não era pelo fuso horário, era pelo cagaço terrível que tínhamos!”, disse Asad naquela entrevista de 2010. Bianchi estava ciente dessa condição: “pensei, com lógica, que os primeiros minutos não iam ser nosso forte. Os nervos, a pressão de saber que todo o mundo os estava olhando influiria. ‘Se passamos esse lapso sem ser feridos, sou otimista’, disse aos jogadores na preleção”. O comandante também ordenou que ninguém fosse fominha: “os que conseguissem escapar direto até Rossi, que pensassem que poderiam ter outro companheiro em uma melhor posição para definir”.

Ainda haveria o susto do cão-de-guarda Marcelo Gómez torcer o tornozelo em pleno aquecimento (“os gritos de Marcelo podiam se escutar na Itália”, diria Bianchi, que prontamente ordenou que os reservas Marcelo Herrera e Claudio Husaín ficassem de sobreaviso), ao apoiar mal um pé. A despeito do incômodo pessoal e do infortúnio chegar a desconcertar os colegas, El Negro Gómez jogou. Mas quem ver o vídeo da íntegra da final realmente notará que até a meia hora de duração do mesmo só o Milan foi ofensivo, ainda que com poucas chances claras de gol.

O primeiro gol: Costacurta comete pênalti na jogada ensaiada para o Turu Flores. O capitão Trotta, com fúria, converte

Essa impressão se constata logo no início: o Vélez deu a saída de bola, que chegou ao lateral Raúl Cardozo, que a perdeu bobamente para Boban (sem trocadilho); Bianchi admitiria: “quando Cardozo, que é, no geral, um jogador com muitíssimo sangue frio, e que se anima em sair jogando ainda quando está apurado pelos rivais, perdeu duas bolas na defesa, pensei: ‘uuui, como devem estar os demais!'”. El Pacha Cardozo era o remanescente dos altos e baixos dos anos 80, sendo o jogador há mais tempo no elenco. Um minuto e meio de jogo já veria um cartão amarelo, após falta de Héctor Almandoz em Massaro. Na cobrança, Chilavert agarrou com segurança um tiro rasteiro de Savićević, pedindo em seguida calma aos colegas. Almandoz voltou a errar aos 4 minutos, com sua tentativa de chutão indo baixo e resvalando no calcanhar de Massaro, que estaria com a frente livre caso pudesse dominar o rebote da bola. Aos 17 minutos, Gómez também foi amarelado, ao pisar em Donadoni.

É por volta da metade da primeira etapa, aos 23 minutos, que os argentinos enfim conseguem chegar ao ataque em sequência e esse ponto de virada é simbolizado justamente por Asad. “Três meses antes de viajar, meus companheiros me desafiavam: ‘gordo cagão, que se faz de atrevido em Ciudad Evita, vamos ver se te animas em fazer o mesmo nos carcamanos, heim?’. Bianchi, cúmplice, metia corda: ‘mas você bancará, Omar, ou não bancará?’. E quando estávamos para entrar, me disse: ‘na primeira que tenhas, peite Baresi, demonstre-lhe que tens personalidade”, declarou El Turco naquela sua entrevista.

Bianchi com anônimos do corpo técnico: médico Ricardo Coppolecchia, massagista Roberto Molina, fisioterapeuta Carlos Leoni, preparador físico Julio Santella e assistente técnico Carlos Ischia

A “sugestão” de Bianchi tem uma versão mais conhecida e mais chula. El Virrey se tornou um técnico vencedor com diversas características: profissionalismo 100%, liderar com o exemplo, pôr o grupo acima de tudo, respeitar seus jogadores para ser respeitado, valorizar seus jogadores, transmitir confiança, cultivar liderança e também ser humilde e autocrítico são só algumas. Outra é ser simples e preciso na linguagem do jogador: a “tática” que teria passado para Asad usar no aristocrático Baresi, sabendo que os 34 anos já pesavam no lendário líbero, seria “mostre-lhe a bunda e jogue nele a merda”. A ideia era fazer o lendário líbero entender que precisava ficar de olho naquele desconhecido e, com isso, conter o ímpeto de reforçar a volância italiana.

Essa oportunidade veio por volta dos 24 minutos de jogo. O tanque argentino deu de ombros no defensor, que caiu com tudo no chão, incrédulo. Para arrematar, o lance foi legal e Asad ainda arrancou um escanteio. Na sequência, após a cobrança, catimbou também o goleiro Rossi. Quem ver o jogo todo nota: dali os argentinos passaram a ditar o ritmo e os rubro-negros, a perder os nervos. Dois minutos e meio depois, Savićević foi amarelado após perder um ataque e jogar o braço em Sotomayor. Aos 31, Boban isolou livre após boa jogada do ex-colega de seleção iugoslava. No resumo do primeiro tempo, Bianchi só perdeu naquele lance ligeiramente a calma: “Por sorte, eles tampouco fizeram grandes coisas. Só nos assustamos com a jogada em que Savicevic aproveitou a costa de Cardozo para deixar Boban sozinho com Chilavert. Mas quando o arremate saiu isolado, seguimos tranquilos.”

Carrasco de brasileiros, Asad se prepara para a obra-prima da carreira

Os argentinos foram se sentindo mais seguros. Asad bailou sobre Baresi por volta do minuto 30, aos 32 Turu Flores arrancou e só foi parado após Desailly derruba-lo… Aos 40, o Vélez havia perdido um ataque e Albertini estava com a bola com certa tranquilidade. Mas Pompei resolveu lutar por ela e o volante italiano conseguiu perdê-la e fazer falta na entrada da área. O monstro não era tão feio, como Bianchi buscava convencer desde o início seus pupilos. Em 2010, Asad explicou a metodologia: “buscou um efeito-cascata do ruim ao bom. Primeiro, nos mostrou um vídeo da final da Champions: o Milan havia ganhado por 4-0 do Barcelona de Cruijff com baile”. O susto interno foi inegável, mas…

Prosseguiu Asad: “dois dias depois, nos mostrou uns jogos do torneio italiano do momento, todas derrotas do Milan. ‘A realidade é essa’, nos disse. E nos ressaltou que éramos um grupo humilde e que desfrutássemos da final porque seria muito difícil voltar a vivê-la. Tinha razão: só voltaram ele, [o assistente Carlos] Ischia, [o preparador físico Julio] Santella e [o volante José] Basualdo”, explicou El Turco, em referência ao dourado 2000 que todos estes três viveram com o Boca de Bianchi. Já sobre a conversa feita no intervalo, Bianchi detalhou assim: “lhes disse que seguissem jogando por baixo, que tocassem até as alterais e que aproveitassem, quando tivessem panorama, para dar balões a Flores e Asad. Os noteis mais tranquilos e até confiantes”. 

Algum mundial de clubes já teve gol mais inesperado e maravilhoso?

Veio o segundo tempo, onde enfim Chilavert precisou trabalhar mais; nos primeiros dois minutos, o Milan causou alguns apuros. Costacurta viria a ser o pior jogador em campo, mas fez belo lançamento que colocou Massaro livre na cara do paraguaio. Foi o lance de gol mais claro do Milan no jogo, mas Chila caiu no momento certo para afastar o chute cruzado, no segundo minuto da etapa complementar. A resposta hermana não tardou, com um bom ataque engatado. A defesa italiana rechaçou e a bola foi recuada de volta a Chilavert, que, como um líbero, avançou uns bons passos fora da grande área e iniciou uma jogada ensaiada: lançou na medida para que Basualdo então cruzasse. O que não contavam é que enquanto a bola cruzada chegava à grande área, um já experiente Costacurta cometesse a infantilidade de segurar Turu Flores pela camisa. Pênalti.

Chilavert ainda não era o cobrador oficial e sim o capitão Trotta (eles chegaram a se desentender exatamente porque Trotta queria bater aquela cobrança que rendera o primeiro gol de falta do goleiro). O chute forte no meio do gol entrou entre as pernas de Rossi. Sete minutos depois, Asad estava descolado de Baresi e acreditou que chegaria em bola mal recuada de Costacurta para Rossi. Alcançou-a, tirou o goleiro da jogada, girou o corpo e emendou sem ângulo para marcar o talvez mais belo gol dos Mundiais Interclubes. A empolgação foi tamanha que o goleiro reserva Sandro Guzmán, por invadir o campo, recebeu diretamente o cartão vermelho. A ironia é que Asad poderia ter ficado de fora do jogo não apenas se tivesse desistido da carreira (depois daqueles seguidos nãos), mas também por opção de Bianchi.

Impossível, Asad cava no lance à esquerda a expulsão de Costacurta. À direita, inicia com Chilavert os trabalhos

“Lá não comíamos bem (…), então com o Turu [Flores] pegávamos um pão com manteiga para saciar a fome. Um dia, Bianchi me viu comendo pão e pediu que o preparador físico me pesasse. A balança cantou ‘94,5’. Então lhe disse em voz alta a Santella, para que eu escutasse: ‘se esse jogador não pesa 93 no dia do jogo, não joga’. Na quarta-feira de 1º de dezembro, dia do jogo, às 9 da manhã golpeiam a porta. Abro e estava Bianchi com a balança na mão e Santella atrás. Eu… de calções. (…) Fomos ao banheiro e deu… 92,5. Matei o careca. Santella estava atrás e festejava. ‘Ainda não festeje, que falta o café da manhã e o almoço’, me disse. Ao fim, fiz um pique de 20 metros com 93 quilos, um raio, toquei para um canto, dei meia volta e meti o gol”.

O Milan foi para cima, mas inquieto. Chilavert, tranquilamente, fazia seu trabalho, antecipando-se para interceptar passes e cruzamentos ou agarrando sem oferecer rebotes as tentativas de Massaro e Simone. Sem false modéstia, Bianchi relatou: “aí pensei que o jogo já estava liquidado. Não via nos italianos poder de reação. Inclusive pudemos fazer mais algum gol”. De fato, quem mais esteve perto de novo gol foi o Vélez: primeiramente, Asad interceptou passe do péssimo Costacurta e avançou livre. O zagueiro, como último homem de linha, não teve opção senão derrubar El Turco e, com isso, ser expulso. O técnico Fabio Capello jogou a toalha em seguida, ordenando a substituição de Savićević.

Flores, Basualdo, Asad, Sotomayor e Gómez: a camisa rossonera ergue o troféu, mas trajando a conquistadora garotada de bairro

Nos cinco minutos seguintes à expulsão de Costacurta, o Vélez teve outras duas boas chances: na primeira, Pompei quase marcou de fora da área e na outra Flores poderia ter marcado se não demorasse demais para definir. Já o Vélez, contra um dos elencos mais celebrados da história, soube ganha-lo sem qualquer substituição e jogando bem, batendo o Milan com certa facilidade inimaginável – o outro volante, Bassedas, já disse que a final da Libertadores, contra o São Paulo, foi bem mais complicada. Ele, Almandoz, Cardozo, Gómez, Pompei, Asad e Flores eram os sete pratas-da-casa, que viravam oito somados ao técnico Bianchi; eis uma cereja de bolo menos recordada do que deveria: nenhum outro time ganhou o Mundo com tantos egressos das próprios juvenis.

Embora o time de Liniers tenha ganho os títulos mais importantes do futebol argentino em 1994, a El Gráfico permitiu promover um debate com os outros clubes campeões no ano – ambos duas vezes, aliás, com o River faturando em março o Apertura ainda válido por 1993 e em dezembro o Apertura 1994 como seu único título argentino invicto; e com o Independiente levantando o Clausura e, com um futebol envolvente, a Supercopa. A revista entendeu que o Rojo tinha o melhor meio e o Millo, o melhor ataque, com Chilavert sendo decisivo para o Fortín ter a melhor defesa, além de auxiliar o ataque com seus lançamentos – como o do gol que abriu o placar no Japão.

Asad aproveitando sua curta posse do Toyota de melhor jogador. À direita, campeões do mundo aplaudidos pelo River na rodada final do Apertura (em 18 de dezembro), inicialmente liderado pelo Vélez, mas ganho pelo oponente

A equipe de Bianchi foi qualificada como pragmática conforme o adversário e sem maior riqueza técnica, mas avaliaram-na como a de mais “fibra combativa”: “nessa matéria, o Vélez foi um expoente de garra excepcional. Nesses jogos decisivos que não se podem perder de nenhuma maneira, mesmo jogando mal, demonstrou ser um autêntico herdeiro da estirpe batalhadora e brava daquele arquétipo do Fortín que se chamou Victorio Spinetto”. Spinetto era o astuto treinador que tirou o clube da segundona em 1943 e permaneceu no cargo por mais de dez anos, tendo como pupilo Osvaldo Zubeldía, atacante que usaria as ideias do mestre como técnico do lutador Estudiantes tri da Libertadores.

No Mundial de 1994, essa garra estava simbolizada em especial pelo volante Marcelo Gómez, que jogou sob infiltrações para não perder a partida após aquele tornozelo torcido no pré-aquecimento. E quanto a Asad? Foi eleito com justiça o melhor em campo, sendo presenteado pela Toyota com um carro de marca. Mas, além da garra, havia a imposição do conjunto sobre individualidades: “fizemos uma rifa, (…) tiramos o dobro do valor e repartimos a grana entre todos. Foi uma ideia do Bianchi, e nos deixou claro antes de viajar, para que não houvesse egoísmos. Quando me trouxeram a Toyota do Japão, queria morrer. A pus ao lado do meu Fiat 147 branco e chorava”.

Bianchi foi mais poético. Naquela edição especial pós-título feita pela revista El Gráfico, assumiu: “quando começamos a trabalhar no Vélez, não pensávamos em chegar tão longe. Mas a realidade sempre supera a fantasia”.

O dia seguinte do resto da existência do Vélez

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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