Varallo foi muito mais que o último sobrevivente da final da Copa 1930

Contra o River, fez 7 de seus 194 gols pelo Boca

Há exatamente meia década, o futebol se despedia de Francisco Varallo. Homenageado diversas vezes durante sua longa vida, mas cada vez mais injustamente: vinha sendo lembrado apenas como o último jogador ainda vivo da primeira final das Copas do Mundo. Foi muito mais que essa marca. Não era um bailarino da bola, mas não deixava de ser um dos maiores jogadores sul-americanos, com uma aceleração invejável e uma força no chute que lhe renderia o apelido de Cañoncito (“canhãozinho”, pois media menos de 1m70). “Batistuta é como era eu”, já disse sem falsa modéstia aquele que foi, por exemplo, o maior artilheiro profissional do Boca no século XX.

As línguas ferinas apontariam ainda outro feito a se rivalizar com os listados acima: Pancho (apelido do nome Francisco na língua espanhola) conseguiu ser campeão argentino no Gimnasia LP, que jamais repetiu a glória antes ou depois, virando sinônimo de clube azarado décadas depois – seja pela rivalidade tornada descomunal nos anos 60 com o Estudiantes, seja pelos títulos que escaparam de forma cruel nos anos 90 e 2000. Ou seja por aquele único título ainda não ter ser visto de forma unânime.

Varallo poderia ter jogado justamente no Estudiantes, mas os dirigentes da equipe amadora onde atuava, o 12 de Octubre, eram gimnasistas. E foi justamente diante do Boca que o único título argentino do Lobo foi conquistado, em janeiro de 1930. Detalhamos aquele campeonato no início do ano, quando aquela final fez 85 anos: clique aqui. Um dos “azares” dos torcedores triperos é que a era profissional começou no ano seguinte. E ainda é bastante comum na mídia considerar-se válidos somente os torneios do profissionalismo, o que deixaria o já sofrido Gimnasia com zero títulos de elite.

No Gimnasia e já pelo Boca, no primeiro encontro com o ex-clube: fez quatro gols e não comemorou nenhum

Foi aquele título contestado que colocou Varallo não só na Copa como na final. Ele jamais havia jogado antes pela Argentina, estreando pela seleção a um mês do mundial. “eu entrei na seleção, a que jogou a primeira Copa, de uma maneira que hoje soaria rara. A coisa foi que havia cinco meia-direitas para ocupar um lugar e após votação dos dirigentes da Associação de Futebol, porque o treinador não tinha nenhuma decisão sobre a equipe, ficou eu com o posto. Não podia acreditar. Tinha 19 anos”.

O adversário da estreia, por ironia, foi o Uruguai. No estádio do San Lorenzo, o clássico ficou no 1-1, gol de Varallo para os argentinos. Se a escolha dos dirigentes e esse desempenho garantiram titularidade no início do torneio, foi o fator clubístico que o pôs na decisão. El Cañoncito lesionou seriamente o joelho no clássico com o Chile após entrada criminosa de Guillermo Subiabre (“me pegou por trás enquanto eu festejava um gol”) e se ausentou da partida seguinte, a semifinal. O substituto foi Alejandro Scopelli, que marcou um dos gols na goleada de 6-1 sobre os Estados Unidos.

Scopelli era um grande artilheiro embora jogasse como meia e não centroavante. Qualquer decisão sensata o faria titular na final, pois Varallo ainda não tinha condições de jogo. Só Scopelli era do Estudiantes. E caravana de milhares de torcedores do Gimnasia saíram da Argentina para assistirem a final em Montevidéu esperançosa de ver o representante do seu clube em campo. Isso e a atitude do próprio Varallo em camuflar as dores influíram para que fosse escalado. Ao fim do primeiro tempo, a Argentina vencia, mas o jovem, caçado por Lorenzo Fernández, mal se aguentava.

Antes e durante o duelo contra um México de curioso uniforme grená e negro. Cores da imagem esquerda (onde Varallo é o primeiro agachado) por Cesare Buratti

Os uruguaios viraram, mas só no penúltimo minuto é que concluíram o 4-2, matando o jogo. Entre a virada e o quarto gol, houve muito tempo de pressão argentina. E Varallo, mesmo rendendo pouco, quase empatou – há fontes que indicam que a bola foi salva em cima da linha por José Leandro Andrade, outras atribuem a má sorte à trave. “Chorava de bronca enquanto eles [os uruguaios] davam a volta [olímpica]”. O lance sobre lhe assombrou. O devaneio deve lhe ter voltado a um mês da morte: a final fez 80 anos em 30 de julho de 2010. Ele faleceu naquele 30 de agosto.

Varallo não rumou de imediato ao Boca após a Copa. Ficou mais uns meses no Gimnasia e em novembro suou pela camisa do Vélez em excursão deste clube pelas Américas, onde o Fortín foi reforçado por outros vice-campeões da Copa (Fernando Paternoster, do Racing, Alberto Chividini, do Central Norte de Tucumán) e outras celebridades como Bernabé Ferreyra (ainda no Tigre, depois se consagraria no River com 195 gols em 193 jogos) e Carlos Volante (depois ídolo no Flamengo e técnico do Bahia campeão brasileiro de 1959). El Pancho foi o vice-artilheiro da turnê, com 16 gols.

Em 1931, veio o profissionalismo e o Boca o comprou do Gimnasia por 8 mil pesos. “O contrato assinou meu pai porque eu era menor de idade. Com os 8 mil pesos que me deram pude construir a casa onde vivi grande parte da minha vida. De salário me davam 800 pesos. Gastava 100 e os 700 restantes os dava a meu pai para que os guardasse. Graças a isso pude viver dignamente depois de parar”. A saída de La Plata foi muito polêmica, com os Varallo perdendo amizades de anos e tendo a casa como alvo de pedradas. Para piorar, na primeira vez em que enfrentou o ex-clube, marcou quatro vezes em um 5-0. Em La Boca, o sucesso foi mesmo imediato.

O trio Varallo, Benítez Cáceres e Cherro na imagem esquerda nos anos 30 e em reencontro nos 60 – onde a ordem é Benítez Cáceres, Varallo e Cherro, respectivamente o 4º, o 2º e 1º colocado na artilharia do Boca no século XX

Varallo foi precisamente o autor do primeiro gol do Boca em um Superclásico profissional, com muita insistência: perdeu um pênalti e só marcou no segundo rebote do goleiro, em lance interpretado como falta nele que gerou acaloradas discussões dos arquirrivais. Guillermo Barros Schelotto não foi o primeiro ex-Gimnasia a apimentar os dérbis com o River: “diziam que eu havia agarrado o goleiro no rebote e era verdade. Mas o que ia fazer? O juiz validou e eu gritei como um animal”. Foi um escândalo: três jogadores do River foram expulsos, enquanto os do Boca se retiravam do campo.

O tapetão deu a vitória ao Boca, que adiante se tornaria o primeiro campeão profissional. “Essa vez terminamos ganhando no tribunal, mas na revanche não teve nenhuma dúvida, né? Ganhamos por 3-0 no campo deles, lhes demos um baile bárbaro e eu meti um dos gols”. Esse 3-0 foi pela última rodada, justamente quando o Boca deu a volta olímpica. O gosto foi ainda mais especial a Varallo porque o vice foi o Estudiantes, apesar do concorrente ter feito 20 gols a mais.

Aquele adolescente suplantou a lenda Domingo Tarascone (goleador boquense dos anos 20 e até hoje quem mais fez gols em uma única edição das Olimpíadas, em 1928) para formar dupla letal com Roberto Cherro. Cherro e Varallo foram precisamente os dois maiores artilheiros do Boca até Martín Palermo superar ambos. Cherro era o maior na soma da era amadora com a profissional; Varallo, o maior na profissional isolada e o segundo maior no geral. “o camisa 9 e o 10 devem ser um matrimônio. (…) Eu não teria sido o que fui sem ter tido Cherro. Dos meus 181 gols, 150 devo a ele. Me conhecia como se fosse uma mãe. Sabia meter a bola entre os beques, para que eu ficasse bem posicionado e desse no arco com tudo”.

Argentina campeã de 1937: o preparador Lago Millán, o técnico Seoane, o goleiro Estrada, Iribarren, Lazzatti, Fazio, Cuello, Martínez (jogou no Fluminense), Emeal (jogou no Vasco), o goleiro Bello e o massagista Sola; Minella, Colombo, Blotto, García, Zozaya e De la Mata; Tarrío, Varallo, Ferreyra, Cherro, Guaita, Scopelli, Peucelle e o ídolo são-paulino Sastre

O River venceu o campeonato seguinte e impediu o Boca de ser campeão em 1933. Os bosteros tiveram naquela campanha sua maior sequência de vitórias até hoje, dez, e Varallo foi o artilheiro do campeonato, com 34 gols – seis deles, em um 7-1 no Chacarita, e todos nos 3-2 sobre o Estudiantes. Mas na última rodada, o River venceu o Superclásico e permitiu que o San Lorenzo ultrapasse os auriazuis, sendo o campeão. Foi um dérbi bastante condimentado em que Varallo quase saiu preso (de verdade) após um oponente quebrar o braço em uma disputa com ele. O troco viria com um título em 1934 disputado em três turnos, com o Boca vencendo nos três os encontros com o grande rival.

Mas antes Varallo teve outra revanche pessoal: em dezembro de 1933, voltando à seleção após a final de 1930, ele marcou o único gol de amistoso contra o Uruguai. Foi a primeira vitória argentina no Estádio Centenário sobre o rival. “O camisa 9 deve ser egoísta. (…) Íamos ganhando do Uruguai com gol meu. De emoção, desmaiei no festejo. Já via as manchetes: ‘Varallo deu o título à Argentina’. Faltando pouco, [Vicente] Zito, que me substituiu, errou um gol incrível. Eu agarrava a cabeça no banco, mas de alegria. Queria que ganhássemos somente com o meu gol”, relembrou no fim da vida à revista El Gráfico.

O Boca foi novamente campeão em 1935 (ele voltou a castigar o Estudiantes, fazendo três em um 5-1 em La Plata) e teria sido tri em 1936 se houvesse só um campeonato: a AFA pela primeira vez dividiu o calendário em dois torneios, um vencido pelo San Lorenzo e outro pelo River. Só que o Boca é quem fez mais pontos na soma de ambos os campeonatos, fazendo com que em 1937 a entidade voltasse à fórmula tradicional. Os bons momentos de 1936 colocaram Varallo na Copa América de 1937, sendo titular na campanha vitoriosa.

Na época do centenário do Boca, com outro destemido provocador ídolo ali e no Gimnasia LP: Guillermo Barros Schelotto

Ele ainda teve outros bons momentos em 1937, como os dois gols que fez em um 7-1 no Racing naquele ano, outros três em um 4-3 no mesmo adversário na rodada seguinte após ter feito mais três em um 5-1 no Gimnasia. Mas os meniscos, castigados, não eram os mesmos, assim como o Boca, que entrou em má fase no fim da década. Varallo só pôde jogar uma vez no campeonato de 1938 e em 1939 não conseguiu marcar pelo menos duas vezes em uma mesma partida. Para o nível que tinha, era quase um fracasso.

Pancho desistiu aos 30 anos da carreira profissional, na pré-temporada de 1940, limitando-se a jogos de veteranos. Uma pena: o título voltaria exatamente ali, ano da inauguração da Bombonera. Mas Varallo teve mais 71 anos de idolatria inconteste – expressas, por exemplo, no centenário boquense em 2005, quando só Maradona recebeu mais aplausos – e com o Cañoncito, confuso ao ser tão festejado por garotos, sendo esclarecido por eles que “por causa do senhor, meu avô virou torcedor do Boca Juniros. E por isso também somos”.

Varallo morreu lúcido, aos cem anos, rodeado de afeto, respeito e carinho de todos.

Neste 2015, incluímos Varallo nos 11 melhores jogadores dos 110 anos que o Boca completou: clique aqui. E há um mês, dedicamos um especial à primeira Copa do Mundo: veja aqui.

Nos anos 90 na Bombonera, onde nunca pôde atuar profissionalmente; e soprando em 2010 com filha, neta e bisneto as velas dos 100 anos, a poucos meses do falecimento
Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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