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Um clássico que voltou depois de 14 anos

Cena de ontem no “Clásico de la Dársena” (algo como “Clássico da Doca”), no Estadio de los Inmigrantes

Ontem, um tradicional clássico da Grande Buenos Aires voltou a ser realizado desde o século passado: Dock Sud contra San Telmo, que se encontraram na 4ª divisão após o rebaixamento deste a ela ao fim da temporada 2012-13. Foi 1-1. Nicolás Perassi abriu o placar ao Telmo aos 17 do segundo tempo e Federico Domínguez empatou aos 41. Como um ferrenho encontro, teve uma expulsão para cada: Armando Lezcano ao Telmo e José Napoli ao rival – aos 50 minutos do segundo tempo! O resultado deixou El Docke com 20 pontos e em 10º lugar, e o “co-irmão”, com 19 e uma posição atrás.

Não conhece os clubes, muito menos o clássico? Até Horacio Elizondo, juiz que apitou a abertura e a final da Copa do Mundo de 2006, já arbitrou este dérbi, em 1991, exatamente o da maior goleada: 4-0 para o Dock Sud, azul e dourado como Boca e Rosario Central. Ele é da cidade de mesmo nome no partido (algo como municipalidade) de Avellaneda. Já chegou até a ser campeão argentino, em 1933. Um de seus jogadores campeões, Francisco Rúa, até foi à Copa do Mundo de 1934 pela Argentina.

O título, porém, é minimizado por dois fatores: era amador e desde 1931 os principais clubes argentinos já competiam separadamente em uma liga profissional, ainda que não reconhecidos na época pela Associação Argentina ligada à FIFA. Por isso é que só amadores foram à Copa de 1934. Neste mesmo ano, porém, a Associação “se rendeu” à popularidade da liga pirata e se unificou com ela.

Mais correto é dizer que foi absorvida. Dos campeões amadores entre 1931 e 1934, o Estudiantil Porteño, duas vezes vencedor, nestes exatos anos, acabou extinto. O Sportivo Barracas, campeão de 1933 (lembra dele? Completou centenário recentemente e falamos disso: clique aqui), jamais jogou na elite profissional, assim como o Dock Sud. Eles e demais que haviam seguido inicialmente no amadorismo, como Banfield, Nueva Chicago, All Boys, Almagro, Defensores de Belgrano, Excursionistas e Estudiantes de Caseros foram realocados na 2ª divisão profissional de 1935.

Dock Sud campeão argentino amador de 1933 – o profissional foi o San Lorenzo, como falamos ontem

O Docke, também apelidado de Inundados (a cidade se refere à doca sul da zona portuária e seu campo é conhecido justamente como Estádio dos Imigrantes), foi um tradicional frequentador da segundona dali até os anos 70. Em 1976, caiu para a 3ª e de lá não mais voltou. Neste mesmo ano, seu rival conseguiu pela única vez o que sempre faltou aos auriazuis: uma presença na elite profissional. Embora fundado em 1904, o San Telmo só  foi admitido na liga argentina a partir de 1943, na 3ª divisão. Bem antes, revelara Carlos Peucelle, autor de um dos gols da final da Copa de 1930 e grande ídolo do River, onde, como jogador e técnico, foi um dos artífices de La Máquina (celebrado elenco riverplatense dos anos 40).

Os Candomberos passaram a frequentar regularmente a segundona nos anos 50 e enfim conseguiram o acesso em 1975. Donos de um original uniforme em listras azuis claras e escuras, porém, só duraram na elite naquele 1976. E, em 1978, já estavam uma vez mais na terceirona, se reencontrando com o Dock Sud. Mas por que este é um clássico? Por um motivo simples: a proximidade geográfica. Assim surgiram as grandes rivalidades no conurbano da capital, como Racing-Independiente na mesma Avellaneda ou Boca-River, ambos fundados no bairro de La Boca (obviamente que o crescimento nacional deles quatro só fez o ódio mútuo crescer). Pela mesma razão, o clássico do San Lorenzo, identificado com o bairro de Boedo, é com o time do bairro vizinho de Parque Patricios, o Huracán.

Mas quem já foi a Buenos Aires deve a princípio estranhar. Afinal, como dizemos, Dock Sud fica em Avellaneda, enquanto San Telmo é um famoso bairro do centro turístico da capital argentina, especialmente pela feira de artesanato dominical e até por uma estátua da Mafalda. A razão é que o clube que leva o nome do bairro mudou-se dele para a cidade de Dock Sud após perder em 1926 seu terreno em San Telmo. Não foi um episódio isolado; outros times ainda carregam no nome o bairro em que foram criados, mesmo que estejam estabelecidos (até mesmo mais enraizados) em outros.

San Telmo que jogou na elite profissional em 1976: sua única temporada nela

O Chacarita Juniors tinha seu estádio no bairro de Villa Crespo, vizinho ao da Chacarita, e hoje até saiu de Buenos Aires, indo à cidade de Villa Maipú; o Defensores de Belgrano está em Núñez, vizinho a Belgrano; já Almagro perdeu nada menos que dois, pois o Almagro se fincou na cidade de José Ingenieros (onde passou a travar clássico com o Estudiantes da vizinha Caseros) e o San Lorenzo, desde os primórdios, adotou o vizinho Boedo, embora até hoje seu nome completo seja Club Atlético San Lorenzo de Almagro. Até o Boca Juniors chegou a deixar La Boca por um tempo nos seus inícios – só que voltou. Já o Vélez Sarsfield é diferente: nasceu no da Floresta, passou pelo de Villa Luro e adotou o de Liniers, nunca sendo de Vélez Sarsfield.

Na era amadora, Dock Sud e San Telmo se enfrentaram oito vezes, sendo sete como vizinhos. Com mais rodagem de quem desde os anos 20 competia na liga argentina, os Inundados venceram sete e perderam o outro. Na era profissional, passaram a se encontrar a partir de 1957, com a entrada candombera na segundona. Curiosamente, ali um venceu o outro por 4-1 na casa adversária. Foram 27 temporadas juntos, por 2ª, 3ª e 4ª divisões. O retrospecto foi de extremo equilíbrio: venceram um ao outro rigorosamente a mesma quantidade de vezes: 15 triunfos para cada.

Os empates foram 28, incluindo o de ontem, que contou com o goleiro Pablo Lorenzo para os Inundados: era o único que já havia jogado o clássico, tendo atuado no anterior em 1999 pelo mesmo time. O maior goleador do encontro é Eduardo Mendiburu, justamente o único que marcou pelos dois: 4 como dockense, e outro como telmista. Os auriazuis podem gabar-se de terem vencidos os dois clássicos mais expressivos, ambos na 4ª divisão e válidos pelo acesso à 3ª, em 1986 (3-2) e em 1992 (2-0).

Clássicos “darseneros” anteriores e dirigentes rivais confraternizando para esfriar os ânimos para ontem: bela iniciativa!

Das vantagens do San Telmo, está ter mais fresca na memória as suas últimas vitórias. Os dois últimos clássicos até ontem haviam sido vencidos por ele, em 1998 e 1999, pela 3ª divisão, igualando a contagem no dérbi. Ele nunca esteve na 5ª divisão (o Dock Sud chegou a passar por ela entre 2009-11) e também coleciona mais títulos de acesso na era profissional. E foi usado em bela peça publicitária recente, sobre um homem que recebe um transplante de coração. Abaixo, a narração traduzida e o vídeo:

“Dizem que na vida um pode ter certeza de quem o trouxe ao mundo. Quem lhe deu os melhores conselhos. E, sendo um pouco adivinho, com quem vai ter seus filhos. Mas pode ser que não tenha a oportunidade de conhecer a quem te deu algo tão importante como… como o coração. Que, entre outras coisas, é quem te deu a possibilidade de regressar à casa. De completar o álbum. E de passar ao capítulo seguinte. Mas é o mesmo coração o que um dia começa a te dizer quem era o outro. O que o fazia feliz. O que o entusiasmava. O que o fazia generoso. E te diz da única forma que pode dizer um coração: batendo mais forte.”

Dock Sud-San Telmo não foi o único clássico separado por tanto tempo na Argentina. Um dos mais tradicionais do país, Ferro Carril Oeste-Vélez Sarsfield não ocorre desde 2000. Atlanta-Chacarita Juniors (clique aqui) não aconteceu entre 1999 e 2011. Defensores de Belgrano-Excursionistas não fazem um dérbi oficial desde 1995. Um outro não é travado simplesmente desde 1981. É nada menos que a rivalidade mais antiga do país. Falaremos dela em breve. É a quilmenha: Quilmes-Argentino de Quilmes.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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