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Ubaldo Matildo Fillol, 70 anos!

Ubaldo Matildo Fillol pode ser considerado o maior goleiro argentino, mesmo a quem não os considerem o melhor. Não é pouco, pois o futebol em seu país se notabilizou pela excelência de outros nomes da posição. Deixou sua marca – impedir que o adversário marcasse – em grande estilo tanto em potências decadentes da época (River e Racing) como em elencos das mais celebrados a nível mundial, casos do próprio River e, sobretudo, a seleção: é o arqueiro que mais vezes atuou pela Argentina. Só em jogos oficiais, foram 55 vezes, não sendo vazado em 20 deles. El Pato foi sobretudo, polêmicas à parte, um dos pilares do primeiro título da Albiceleste em Copas do Mundo. Um goleiro que literalmente ditou moda (colegas de posição usaram camisas da marca dele) e que hoje faz 70 anos.

Mesmo quem minimiza El Pato involuntariamente lhe elogia. “Ele só era bom debaixo das traves”, declarou José Luis Chilavert à Placar em 1997. Maior rival de Fillol, Hugo Gatti afirmou quase a mesma coisa à El Gráfico em 2002: “foi o goleiro mais importante que conheci… embaixo dos paus! Um grande solucionador dos próprios erros”. É que enquanto Fillol era do River, Gatti era do Boca, deveria ter sido o titular na Copa de 1978 e tinha um estilo muito oposto, arriscando-se em sair até da grande área para interceptar ataques mais ou menos como Amadeo Carrizo (o outro goleiro que rivaliza com Fillol nos corações hermanos) popularizara. Ele e Gatti, aliás, dividem o recorde de pênaltis defendidos na Argentina: 26 cada, considerando apenas o tempo normal. Mas somando-se decisões por pênaltis e os salvos pela seleção e clubes estrangeiros, a marca do aniversariante é bem maior.

Fillol era isso mesmo: elástico, a puro reflexo, capaz de se recuperar em contrapés a tempo até de pegar rebotes. Mesmo aos 35 anos, seguia na seleção argentina pois não se encontravam substitutos à altura. É um dos mais veteranos que a defendeu e sua ausência na Copa de 1986 (com direito ao técnico Carlos Bilardo chamar Héctor Zelada, que jamais havia defendido a Argentina e atuava no escondido futebol do anfitrião México) após ser vital nas eliminatórias foi criticadíssima na época. Sem falsa modéstia, ele declarou em 2006 à El Gráfico que também estaria apto para ir ainda à Copa de 1990: “mas isso acredito eu. E eu não era o técnico”. É dessa entrevista que tiraremos a maior parte da aspas dessa nota.

Nela, ele já começou explicando que seus dois nomes incomuns, especialmente quando compostos, partiram da insistência da mãe em nomear-lhe com o mesmo Ubaldo que batizara o avô materno do goleiro (“meu velho não deixou por menos e agregou o do seu pai, Matildo”). A vocação para o gol foi diagnosticada por um especialista: Renato Cesarini, quem armara o célebre elenco dos anos 40 apelidado de La Máquina. O detalhe é que Cesarini cravara isso sem sequer observa-lo em um treino e sim ao ver os braços longos e mãos grandes e fortes que Fillol tinha já com 14 anos no restaurante em que El Pato trabalhava (“eu lavava louça, preparava o café, servia as sobremesas. Era difícil um pouco porque era garoto e tinha que pôr um banquinho para alcançar o caixa”)… Fillol de fato já se aventurava como goleiro em seu povoado natal de San Miguel del Monte, mas ainda alternava-se como volante central.

Em 2019, o Quilmes homenageou os três pratas-da-casa que venceram a Copa do Mundo de 1978: Villa (que, na foto esquerda, consola o goleiro no rebaixamento do clube em 1970…), Fillol e Bertoni.

“No clube San Miguel, com 13 anos, aos sábados agarrava no time sub-18 e assim que terminava jogava de camisa 5 no C. Fui me testar no Quilmes. Quando o técnico nos perguntou de que jogávamos, eu lhe respondi: ‘de 5 ou como goleiro’. Teve uma irritação tremenda: ‘como de 5 ou goleiro, garoto, está me zombando?’. Havia muitos garotos e em um momento pediram: ‘um camisa 8 e um goleiro’. Eu tapei duas bolas. É raro, mas fui me testar sem saber de que queria jogar. Talvez, se em vez de pedirem por um goleiro, reclamassem um 5, a história mudasse. Não sei se teria tido a carreira que tive como goleiro, confesso, mas jogava bem. Sou torcedor do Quilmes, por tudo o que representa na minha vida: no Quilmes me testei, vivi a adolescência, estreei na primeira divisão, conheci minha esposa, me casei e nasceram meus filhos. Quilmes é o máximo para mim”. Também foi naqueles primórdios no Cervecero que ele ganhou seu apelido característico:

“Ao passar no teste no Quilmes, pediram que levasse o passe, algo que sempre agradecerei ao San Miguel, que não criou problemas. O Quilmes nos fornecia a pensão e um trabalho para paga-la: me colocaram na padaria La Garibaldi. Aí aprendi a preparar pão, tortas, massinhas. No terceiro treino, ninguém me conhecia. El Pato Iglesias, goleiro do sub-18, não veio e o técnico me pediu se poderia treinar com eles. Logo os garotos começaram Pato daqui, Pato dali e ficou”. Fillol não tardou a chegar ao time adulto. Os goleiros titulares não tinham disponibilidade e assim o garoto estreou cerca de dois meses antes de completar 18 anos… mas de forma nada glamourosa: o Huracán venceu de 6-3 naquele 1º de maio de 1968, no estádio do Boca.

“Não fui um desastre, mas levei seis gols. Chorei no vestiário, chorei no ônibus que me deixou na pensão e chorei no quarto até o outro dia de manhã. Foi uma desolação terrível. Depois do jogo, [o técnico Florencio] Doval caiu e chegou [Carmelo] Faraone. Na terça-feira treinamos e não me deu bola, na quarta-feira o mesmo, na quinta-feira houve rachão e Oscar Cavallero defendeu e a mim, nem uma palavra. Quando terminou o treino, golpeei a porta do vestiário e lhe perguntei porque não me considerava. ‘Garoto, você é um cara de pau, acaba de levar seis gols e me pergunta isso’. Com os anos, Carmelo me confessou que nesse momento pensou: ‘esse garoto tem uns colhões bárbaros’. Aí me disse que ficasse tranquilo porque tinha boas referências minhas, mas que pelo momento ia jogar no time B”.

“Este mal começo me fez forte para o resto da minha carreira esportiva e para a minha vida pessoal”, contaria à enciclopédia do centenário do River. Já para a El Gráfico, foi mais detalhista: sobre o titular Cavallero (pai de Pablo Cavallero, goleiro da Argentina na Copa de 2002), assumiu ter copiado um ritual de jogar álcool na camisa antes dos jogos. “Voltei à reserva e comecei a arrebentar. Ao terminar o torneio, fomos de excursão pela América Central. Me disse: ‘garoto, chegou o momento. Vais jogar na excursão, e depois ou voltas a Monte ou ficas aqui’. Era duro El Gordo, mas te falava na cara. Andei bem no primeiro jogo e no segundo me abriram a mão com um plugue de alumínio. Perdi o resto da excursão. Pensava: ‘volto a Monte, volto a Monte, volto a Monte’. Na volta, Carmelo me encarou: ‘garoto, você vai ficar, vejo uma boa atitude em você, tem muita personalidade’. E assim comecei”. Ainda haveria muitos percalços para deixar Fillol cascudo.

Fillol teve dois ciclos no Racing. Chegou na seleção no primeiro (o agachado à direita é Jorge Paolino, que também jogaria no Flamengo) e campeão no segundo, imortalizando a camisa verde

Mesmo com ele e outro futuro campeão da Copa de 1978, o meia Ricardo Villa, o Quilmes foi rebaixado em 1970 – ficando famosa a foto do Pato escondendo as lágrimas no ombro de Ricky. Precisou conciliar a segunda divisão com o serviço militar obrigatório: “vivia no calabouço porque encrencava muito. Como não me deixavam ir treinar, escapava por trás, pelo rio Quilmes, atravessava as favelas, pegava o ônibus, treinava e voltava. Na volta, me mandavam ao calabouço por má conduta”. E até quando era autorizado, ele também não se ajudava:

“O Quilmes estava na Série B e jogamos um partido pegado contra o Lanús. Dois dirigentes apareceram para pedir minha saída e o cara que estava responsável disse: deixou, mas me tragam vocês assim que termine o jogo. Nesse dia arrebentei e me fizeram reportagens pelo rádio. ‘Quero agradecer às pessoas do Quilmes que me foram buscar e ao comandante Fulano que me deu permissão’. Estava emocionado. Quando voltei, o cara queria me matar porque havia deixado tudo público. ‘Tem uma semana mais de calabouço’, me disse. E outra vez à solitária, a limpar e fazer trabalho forçado”.

O Quilmes promoveu mais um futuro campeão de 1978, o ponta Daniel Bertoni, mas esteve longe de subir em 1971, com uma pontuação mais próxima do rebaixado Defensores de Belgrano do que daquele Lanús campeão. Mas o goleiro parece ter impedido coisa pior, pois o Racing viu nele uma solução às piores campanhas até então que a Academia fizera na elite (dois 11º lugares seguidos, em 1970 e em 1971). O salto com o novato foi notável. Mesmo longe de realmente brigar pelo título com o San Lorenzo no Metropolitano de 1972, o clube de Avellaneda saltou para vice. El Pato pegou seis pênaltis em um só campeonato, marca que ainda é recorde no país, e estreou pela seleção – em jogo não-oficial em outubro, contra o combinado da liga de Tucumán. Ficou mais um ano no Cilindro, jogando todo o Metropolitano de 1973.

Nisso, Fillol foi requisitado para uma virtual seleção B apelidada de “equipe fantasma”, usada para acostumar por três meses os jogadores à altitude boliviana para que se vencesse em La Paz e se afastasse qualquer risco de segunda desclassificação seguida da Copa do Mundo, o que em tempos pré-empresariais da FIFA gerava receio de fazer com que o país perdesse o direito de sediar o evento em 1978. Só que a AFA não foi tão organizada assim na preparação; o goleiro, que fez uma segunda partida pela seleção naquela preparação (em outro jogo não-oficial, contra a liga de Santa Fe), foi um dos que não aguentaram a situação de abandono que aqueles jogadores tiveram, pedindo até para sair. Nada que impedisse que o River se interessasse por ele.

River, o time mais associado à carreira de Fillol: muitas glórias e também muita dor de cabeça

O Millo era o clube do coração da família, mas Fillol de início não achava uma boa ideia: na época, o Racing ainda sentia fresca sua gloriosa segunda metade dos anos 60 e o gigante associado a jejum era a equipe de Núñez, há 16 anos sem troféus. A pressão para que saísse, incrivelmente, veio do próprio técnico racinguista. Não porque desprezava Fillol, mas porque amava muito o River: era Ángel Labruna, justamente o maior símbolo riverplatense. Segundo o goleiro, o recado nada sutil do treinador foi “você está louco? Se não for ao River, eu mesmo vou te arrebentar de porrada, me entende? O River é a Casa Branca!”. El Pato obedeceu e, após dois jogos pelo Racing no Torneio Nacional de 1973, virou millonario. Mas de início precisou aguentar a reserva para José Pérez, só vindo a estrear no Metropolitano de 1974.

Parecia sina: a estreia no novo ambiente não foi nada animadora. Em pleno Superclásico, o Boca impôs um 5-2 na tarde de glória de Carlos García Cambón, que por sua vez estreava nos auriazuis marcando quatro gols, ainda um recorde profissional no duelo. Apesar disso, El Pato não só firmou-se como acabou convocado à Copa de 1974. “Observe tudo e some experiência. Você vai ser o goleiro titular no mundial 1978”, declarou-lhe o técnico Vladislao Cap. Fillol, afinal, era originalmente só a terceira opção de gol, sobrepujado pela experiência europeia do titular Daniel Carnevali e pela experiência copeira de Miguel Santoro, de um Independiente que já havia erguido duas das quatro Libertadores seguidas que marcaram aquele período do Rojo. Justamente pela impaciência enérgica de Santoro com a reserva é que Fillol acabou contemplado com um jogo.

A Argentina já não tinha chances na rodada final da segunda fase de grupos, contra a Alemanha Oriental, e muitos jogadores entraram abalados pela morte do presidente Perón na véspera – inclusive o novato (“sempre fui peronista e me afetou, assim como quase todos os rapazes e os dirigentes. Como chorava essa gente!”), que soube valorizar a experiência: “me fez sentir, no retorno, que havia jogado dez anos na Europa”. Ali se deu, enfim, a estreia oficial do Pato pela Argentina. O River ainda não solucionava seu jejum, mas o espaço do goleiro só aumentou quando Labruna veio treinar o clube em 1975 – a ponto de o concorrente José Pérez ter ido ao Independiente em 1975 (inclusive dando-se bem, sendo titular no tetra rojo na Libertadores).

Ninguém se arrependeu para as bandas de Núñez, pois aquele jejum, naquela altura chegando nos dezoito anos, enfim caiu. El Pato destacou-se especialmente na 13ª rodada daquele Metropolitano de 1975, uma vitória por 2-1 no grande rival em plena Bombonera onde ele impediu o empate graças a uma de suas 26 defesas de pênalti registradas no campeonato argentino – ainda que o festejo viesse sob dois anticlímax: o título assegurou-se em rodada onde foram usados os juvenis por conta de uma greve dos profissionais (“escutei o jogo pelo rádio e depois fui dormir. Estava com bronca, porque esse festejo pertencia a nós”). A seca se encerraria em dose dupla, pois o River venceu também o Torneio Nacional. Fillol pintou naturalmente como o novo dono do gol da seleção, atuando em duas partidas não-oficiais em fevereiro de 1976, jogos-treino contra os clubes Kimberley e Excursionistas.

Impecável na Copa de 1978, esse abraço à direita com Tarantini e um torcedor viralizou como símbolo

Mas então veio outro problema: o novo técnico da seleção, César Menotti, havia-lhe avisado de antemão um revezamento entre El Pato e Gatti nas excursões da Albiceleste e encarou como petulância a pergunta de Fillol se seria convocado mesmo como reserva quando fosse a vez do concorrente. Puniu-o com um boicote ao longo de todo o ciclo de preparação para a Copa de 1978, alternando-se principalmente entre Gatti e Héctor Baley, usando ainda Ricardo La Volpe e não descartando até mesmo o veterano Agustín Cejas nas convocações. O ano de 1976 terminou sendo amargo por outras razões: o River perdeu a final da Libertadores para o Cruzeiro, disputando-a remendado por diversas lesões.

Fillol machucou-se na primeira final e não voltou para as outras, onde quem agarrou foi o eterno reserva Luis Landaburu (sobre as queixas dele quanto à falta de espaço, El Pato não se faria de rogado: “Eu vivia para o futebol nas 24 horas, me sentia o melhor, o físico me dava, por que ia deixar outro agarrar? Mais do que egoísta, o goleiro deve ser desconfiado: não tem que confiar no seu zagueiro, nem na bola, nem no pique. Para o goleiro, ser desconfiado é uma virtude”). No fim do ano, houve a única final da história que River e Boca travaram até o ano de 2018 e o rival levou a melhor, sem que Fillol pulasse na perfeita cobrança de falta de Rubén Suñé: “um do nosso time tinha que ir na bola. Estava designado e não foi”, reclamou naquela entrevista, embora se recusasse a nomeá-lo: “caixa preta”.

Em 1977, veio novo título argentino, embora o Boca levasse outra vez a melhor, ao levar a única vaga para a segunda fase da Libertadores que adiante viria a vencer. Ainda assim, as boas exibições de Fillol criaram uma pressão geral para que Menotti revisse sua teimosia. A lesão de Gatti no fim do ano foi o álibi. “Um dia tocou o telefone na minha casa: El Flaco [Menotti] queria falar comigo. A El Gráfico nos juntou e em 28 de dezembro de 1977 voltou a me convocar. Tinha uma moral tremenda. Em 5 de janeiro de 1978, me apresentei na Villa Marista, me sentia um paraquedista, porque os garotos vinham trabalhando há três anos. Gatti não se apresentou, acusou uma lesão, mas não sei, jogava no Boca. Eu teria gostado de mais oposição”, contou aos risos ao relembrar.

Gatti ficou mesmo de fora após ser o goleiro mais usado no ciclo prévio, bem como o veterano Cejas, incluso na pré-convocação, mas descartado. Fillol logo sobrepujou Baley e La Volpe para ser o titular no Mundial. E justificou a banca: na Copa, pegou até pênalti contra a fortíssima Polônia da época; segurou um chute à queima-roupa de um Roberto Dinamite deixado livre de Daniel Passarella por Zico; e espalmou no reflexo um fuzilamento de Johnny Rep da marca do pênalti, além de interceptou-lhe em outro lance, onde Rep esteve prestes a emendar de carrinho para o gol, dentre tantas outras grandes defesas. A imagem que eternizou o título foi exatamente protagonizada por Fillol, aos abraços com um fã e com o defensor Alberto Tarantini.

Já consagrado para o mundo, lançou uma camisa bordada com sua assinatura, vestida também pelo oponente argentino-peruano Ramón Quiroga. E com Chilavert e Gatti, que só pelas costas conseguem minimizar-lhe

Naquela entrevista, Fillol também ressaltou que não desconfiava da podridão política que manchou aquele título redentor: “fomos à festa no Alvear Palace e às 3 da manhã saímos em uma viatura com Passarella. Me deixaram em Quilmes, estava tudo escuro, em silêncio. Abri a porta e explodiu tudo, estava minha família, meus amigos, com confetes, papel picado. O bairro estava me esperando. [Sabia] que havia uma guerra contra o terrorismo e que os militares nos estavam defendendo. Da ESMA e dos desaparecimentos, não sabia de nada, como a maioria. Um ano depois de ser campeões, jogamos a revanche contra a Holanda na Suíça e quando entramos vi uma bandeira que dizia ‘Videla assassino’. Não entendia nada. ‘O que essa gente diz? Estão atrapalhando o país’. [Anos depois] Senti repugnância, me senti usado, com a euforia da Copa taparam as barbaridades que faziam”.

Na época do título, El Pato era visto como melhor goleiro do mundo até por brasileiros e foi ovacionado por outros rivais, os do Boca, em um Superclásico na Bombonera semanas após a Copa, em 12 de julho de 1978 – em um Metropolitano onde o River, muito desfalcado em função do Mundial, ficou longe do título. Com seus campeões mundiais disponíveis desde o início, o Millo chegaria às semifinais da Libertadores (embora o Boca novamente sorrisse por último) e à final do Nacional de 1978. Ali o Independiente levaria a melhor, em decisões realizadas já em 1979 – ano em que El Pato conseguia ser o atleta mais bem pago na Argentina mesmo durante meses em que ficou sem contrato com o River: as receitas vinham das camisas da marca Olimpia que levavam sobre o peito a assinatura do craque, sendo vestidas até por outros goleiros profissionais. E o vice para o Rojo foi logo superado com outro ano em que o River pôde vencer tanto o Metropolitano como o Nacional.

No Nacional, Fillol onde havia fase em mata-mata, Fillol foi decisivo especialmente na classificação às semifinais, ao pegar dois pênaltis do Vélez; e na própria decisão, ao agarrar tudo contra o surpreendente Unión: o time de Santa Fe, cujo goleiro era o outro arqueiro titular de uma Argentina campeã mundial (o jovem Nery Pumpido), perdeu a taça apenas pelo gol sofrido em casa, pois foi 0-0 no Monumental. O bi anual seguido viria um tricampeonato com a conquista do Metropolitano de 1980, assegurada com quatro rodadas de sobra. Mas engana-se quem pensa que Fillol era unanimidade no River. Ao contrário, foi dos mais xingados ídolos que o time teve, conforme levantamento mostrando matérias da época, por mais que seja obra de torcedores do Boca: veja neste site.

As contínuas decepções na Libertadores tiveram ápice em 1981, quando o Millo caiu na fase de grupos e a torcida, enfurecida, esvaziou o Monumental. Acabava a vitoriosa Era Labruna. O time ainda conseguiria vencer o Nacional de 1981 sob as ordens de Alfredo Di Stéfano, mas após uma campanha bastante acidentada, onde a eliminação na fase de grupos só foi evitada graças a uma ajuda do novo clube de Labruna, o Talleres. Havia ainda contratempos extracampo: único que recebia em dia no River, o goleiro já compartilhava o salário com colegas. A crise econômica “presenteada” pela desastrada ditadura só se agravou nas Malvinas e o clube sofreu debandada após a guerra, perdendo Mario Kempes, Daniel Passarella e Ramón Díaz para o futebol europeu. Quando passou a ter atrasos, o goleiro combateu os dirigentes e saiu de modo péssimo: sob repressão de militares a si e a seu pai. “Até pensei em deixar o futebol. Me levaram a um escritório deles e me ameaçaram. Toda a gente armada”.

No Argentinos Jrs, ficou pouco. Restou o trauma pela morte do mentor Ángel Labruna

A relação ruim que ficou com a instituição River só viria a ser cicatrizada quase 30 anos depois. Embora o clube não tenha chegado ao nível de barrar-lhe de festividades nos anos 90, ele só veio a ser reempregado justamente na fatídica temporada 2010-11, já como treinador de goleiros, seguindo em Núñez como coordenador de futebol amador. Mas naquele 1983 Fillol preferiu refugiar-se no Argentinos Jrs – onde reencontraria Labruna, que gestava a base daquele elenco da modesta equipe de La Paternal que venceria a Libertadores de 1985. Mas sem eles: ainda em 1983, um ataque cardíaco matou o técnico quase nos braços do goleiro.

“Foi muito feio. Eu havia ido jogar no Brasil com a seleção e um dirigente me contou que o haviam operado por uma hérnia que tinha na pança e que sempre nos mostrava. Assim que cheguei em Ezeiza, fui à clínica e quando entrei estavam tirando chorando a Anita, sua mulher. Olho ao lado e vejo os médicos que tratavam de reanima-lo. Havia infartado e davam choque elétricos no chão, dava uns saltos tremendos, mas não lhe puderam salvar. O que ainda não me perdoo é que não cheguei a agradecê-lo por tudo o que fez por mim. Essa foi a dor maior: tê-lo perdido sem poder dar graças ao homem que foi meu pai futebolístico, o que mais confiou em mim. Ángel começou a adoecer quando o traíram no River. Lembro que nesse dia fiquei com Anita, liguei ao Argentinos, ao River. Foi duríssimo. Não quero seguir falando, me faz mal”.

Fillol ainda seguiu na Argentina no início da redemocratização, sendo até mesário na eleição presidencial de 1983. Mas, desejado pelo Flamengo desde setembro de 1982, Fillol (que segundo nota da Placar ainda em 1979 tinha interesse em apartamentos em Ipanema), logo acertou com os rubro-negros – cujos dirigentes buscavam de uma vez suprir a ausência do aposentado Raul e também dar à massa órfã de Zico um ídolo novo quase à altura. A passagem pela Gávea teve altos e baixos. Fillol foi bem especialmente no início, com a Placar lhe absolvendo até quando tomava quatro gols: levou nota 7 após um 4-0 do Internacional e um 9 naquele dramático 4-1 contra o Corinthians, que assim se classificou às semifinais do Brasileirão após ter perdido de 2-0 no Maracanã. Faltaram os títulos: a Libertadores de 1984 pareceu o mais perto, onde os cariocas foram às semifinais com direito à sua estrela defender pênalti fora de casa aos 45 do segundo tempo em um 2-1 no Junior de Barranquilla.

Aquele foi justamente o único pênalti que Fillol pegou em seis enfrentados pelo Flamengo e abriu uma série de seis jogos onde o argentino não sofreu gols, a melhor sequência que teve na Gávea – a incluir um 5-0 sobre o próprio Santos por aquela Libertadores. Mas a vaga na decisão seria gremista após um jogo-extra onde o empate favorecia os retrancados gaúchos. Em 1985, a perda da vaga nas semifinais do Brasileirão foi tão traumática quanto a anterior, para a zebra Brasil de Pelotas. E os Estaduais eram ganhos pelo Fluminense. Mal acostumada por tantos títulos entre 1978 e 1983, a torcida àquela altura já pedia por Cantarelli e Fillol acertou com o Atlético de Madrid. Mas vale lembrar que no Rio o argentino conseguiu levar menos de 1 gol por jogo: foram 60 em 71, dos quais não foi vazado em praticamente metade, 34. O especialista Emmanuel do Valle, do Flamengo Alternativo, ressaltou ainda o seguinte sobre a carreira flamenguista do goleiro:

A parceria com Zico no Flamengo, infelizmente, durou pouco: à esquerda, a foto da noite do retorno do Galinho desde a Udinese. Mas o argentino logo faria o caminho inverso à Europa, ao Atlético de Madrid

“O Fillol foi muito elogiado, mas também recebeu algumas críticas. Uma coisa que chamava sempre muita atenção era o jeito dele jogar com os pés, as saídas de gol. Muitas vezes, ele chegava até o meio-campo com bola dominada. Dava passes, fazia lançamentos. Na estreia, contra o Palmeiras no Maracanã, chegou a dar um chapéu no Baltazar. E era um goleiro muito firme nas defesas, teve algumas atuações monstruosas. Por outro lado, diziam que o Fillol levava muito gol de cobertura, exatamente por jogar um tanto adiantado. E, de fato, ele levou alguns. Num certo momento, em todos os jogos adversários passaram a arriscar chutes desse tipo. [Mas] havia também um tabu de ele nunca ter levado gols do Roberto Dinamite. Quando ele veio pro Fla, essa história foi bastante explorada. E de fato, continuou não levando: foram três Fla x Vasco em 1984 e o Roberto seguiu sem fazer gol nele”.

Enquanto foi flamenguista, Fillol disputou as eliminatórias à Copa de 1986 como um dos quatro remanescentes de Menotti no time de Carlos Bilardo: os outros eram Maradona, Passarella e Juan Barbas. Na dura classificação contra os peruanos, El Pato foi essencial sobretudo em um mano-a-mano contra Julio César Uribe (“segundo Grondona, foi uma das melhores defesas que viu em sua vida: veio só, definiu rasteiro e pude agarra-la. Era o 3-1 e fora da Copa”). Mas, em convocação polêmica, Bilardo levou ao México apenas Maradona e Passarella. Fillol, com 36 anos, havia acabado de ser vice da Recopa Europeia pelo Atleti. Prosseguiu brilhando no Racing, que em 1986 vivia uma situação ainda pior que a do River em 1973: eram dezenove anos sem títulos e até um rebaixamento recente, em 1983. O goleirão assumiu a braçadeira de capitão para quebrar esta seca, erguendo a primeira edição da Supercopa Libertadores, em 1988.

A Supercopa foi em pleno Mineirão, sobre o Cruzeiro, uma pequena vingança pessoal do goleiro sobre o algoz da Libertadores de 1976. Outros trocos foram no próprio River, eliminado nas semifinais – ele já havia se desentendido com o ex-clube em 1988, quando uma confusão sua com Carlos Enrique começou no campo rendendo a expulsão de ambos e terminou simplesmente no prédio da AFA, onde voltaram a trocar sopapos (“eu era dos que desciam do carro para brigar porque te xingavam. Hoje, não. Era outra época, também, hoje correrias riscos pela droga, o álcool, todos estavam armados”). Mas El Pato ainda teria uma última resposta a quem tanto lhe xingou, já pelo Vélez. O clube do bairro de Liniers foi o refúgio do veterano e do técnico Alfio Basile após a desilusão vivida pelo Racing em 1989; embalado pela Supercopa, La Academia terminou o primeiro turno na liderança, mas perdeu pontos nos tribunais e terminou só em nono. E a taça ainda ficaria com o Independiente

No Fortín, Fillol já não parecia o mesmo. Mantinha o nível de um goleiro comum, ainda que um goleiro comum de alto nível. Então com um único título na elite, no longínquo 1968, La V Azulada ficou a quatro pontos do vice-campeonato na temporada 1989-90. O mito estendeu a carreira por mais um semestre. Outros quatro pontos separaram o clube do título, embora o Vélez tenha chegado à rodada final já sem chances, contra um River postulante à taça. El Pato presenteou por tabela outro aniversariante de 21 de julho: Marcelo Bielsa, que treinava um Newell’s campeão graças ao que o veterano produziu no Monumental. Os visitantes venceram por 2-1 com direito a Fillol exibir todo um repertório de defesas que incluíram a de um pênalti, igualando-se ali ao recorde de Gatti. O goleiro saiu carregado em volta olímpica pelos colegas, sob os aplausos da antiga torcida também.

Explosivo nas defesas e também no temperamento: ainda engasgado pelas ameaças sofridas ao deixar o River, foi expulso nesse reencontro pelo Racing em 1988

Ele só não pôde saborear tanto a última glória: “no dia seguinte me dobrava de dor e terminei no hospital, operado de apendicite. Dois dias depois de sair, me avisaram que meu pai tinha leucemia, que podia morrer em duas semanas ou dois anos, então decidi ficar com ele e não me dedicar a outra coisa. Viveu dois anos mais e uns dias depois de sua morte, sofri a doença da minha filha [a anorexia] e voltei a desaparecer do mundo. Quando quis acordar, já era 1998, e salvo uns meses com Basile no Racing não havia feito nada. Não me arrependo, claro. Durante toda a minha carreira vivi dentro de uma bolha. E quando aconteceu o sucedido com meu pai e depois o da minha garota, me dei conta de que eu era de carne e osso. Fez-se um clique na minha cabeça”.

Essa longa sequência de compromissos familiares explicaram sua tardia carreira de técnico. Começou como treinador de goleiros da seleção, no ciclo de Bielsa, embora um desentendimento quanto aos goleiros chamados à Copa de 2002 tenha-o feito ser desligado da delegação (“discrição é meu nome, cautela é meu sobrenome”, respondeu ao recusar-se a esclarecer o tema – “fica entre mim e Marcelo”). Ele então agarrou o Racing em 2004, armando em um clube ainda falido o plantel que lutaria pelo título no Clausura 2005, embora a falta de resultados iniciais não o tenha segurado no cargo; ele já havia tido duas renúncias negadas.

Foi sua única experiência como técnico de uma equipe e ele se defendeu sobre a falta de resultados: “me irrita que me perguntem se tenho medo ou se vou me arrepender, como se não conhecesse os vestiários desde que tenho 14 anos. Conheci e conheço as regras do jogo. Então não me surpreendeu nem me machucou nada. Não sinto em absoluto ter fracassado”. Ele voltou à seleção como preparador de goleiros, já no ciclo de José Pekerman. Naquela entrevista de 2006, ele já dizia o que ainda não era lugar-comum: “Através do que vi, creio muitíssimo na potência das pernas, no caráter e nos reflexos do goleiro. Hoje, também é decisivo saber jogar com a bola. Todo goleiro que não tenha um bom jogo de pé não está em condições de jogar um Mundial nem de defender em alto rendimento”.

“Há goleiros que se levantam em 3 ou 4 movimentos e eu os obrigo que o façam em um só. Eu me matei por aprender até o último treino da minha carreira. E se você quer aprender, aprenderás, é o que insisto com os garotos: têm a grande possibilidade de aprender trabalhando, vendo, apertam um botão e assistem qualquer jogo, e escutando. Nós aprendemos sem trabalhar, nem ver, nem escutar”. E, em outro lance sem falsa modéstia, não se segurou: “explico a eles me atirando no chão. Mesmo que haja muitos vídeos e livros, estes exercícios eu inventei. Antes eu era matéria-prima agarrando e agora sou matéria-prima armando exercícios”.

Em seu último clube, o Vélez do também veterano Ricardo Gareca (agachado) e do jovem Alejandro Mancuso – a seu lado na imagem esquerda e que o carrega na volta olímpica ao fim do triunfal jogo final de Fillol, contra o River em 1990. Veja o porquê no vídeo inserido no tweet abaixo…
https://twitter.com/futebolportenho/status/1285753149198925824
https://twitter.com/FIFAWorldCup/status/1285560658961018880
https://twitter.com/Argentina/status/1285575254782484483
https://twitter.com/qacoficial/status/1285545056435179521
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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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