Há exatos 50 anos, uma equipe argentina foi campeã pela primeira vez sob um técnico brasileiro. Justo com aquele apelidado de “O Mestre” na função: Osvaldo Brandão, celebrado nos grandes paulistanos, e quem armou o Brasil de 1958 (Vicente Feola só estreou a um mês da Copa). No Independiente, em um título espetacular e desconhecido pelos brasileiros, Brandão uniu riqueza técnica e potência ofensiva, tendo recorde de aproveitamento na era profissional, beirando 87%. Nos quinze jogos da campanha, foram 43 gols, quase três por jogo e dez a mais que o segundo melhor ataque. E, em uma reta final onde enfrentou os demais grandes, sagrou-se campeão exatamente com goleada sobre o rival – que um mês e meio antes havia sido campeão mundial. Em um time tão orgulhoso das Copas internacionais, esse está entre os troféus domésticos mais celebrados.
Diego “Chavo” Fucks, comentarista prestigiado na Argentina, chegou a zombar no ano passado dos órfãos do brasileiro em um clube que, até a chegada do treinador Ariel Holan (campeão nessa semana da Sul-Americana), estava desacostumado a jogar bem: “seguem falando em ‘olhar o arco em frente’. A qualquer momento, pedem que o técnico seja Brandão. Por via das dúvidas, aviso: Brandão morreu em 1989”. Bem, aquele Independiente campeão de 1967 fez dez gols a mais que o segundo melhor ataque, do River. Brandão armara a mesma tática de sucesso do Brasil de 1958, o 4-2-4.
Raúl Bernao e Aníbal Tarabini ficavam nas pontas, e o supergoleador Luis Artime (adquirido do Palmeiras, curiosamente) e a revelação Héctor Yazalde (promovido por Brandão e único argentino a ter sido Chuteira de Ouro na Europa além de Lionel Messi) faziam dupla de centroavantes pelo meio, municiados por Raúl Savoy, canhoto que desequilibrava pela direita e fazia da linha ofensiva quase um quinteto. O outro meia titular era o volantão José Omar Pastoriza, futuro técnico-símbolo rojo. A esses dois meias também se alternavam Osvaldo Mura e Vicente de la Mata filho.
O setor defensivo era cascudo, com gente bicampeã pelo clube nas Libertadores de 1964-65: os laterais Roberto Ferreiro (depois técnico do primeiro mundial vencido pela equipe, em 1973) e Ricardo Pavoni e os zagueiros David Acevedo e Idalino Monges protegiam o goleiro Miguel Santoro, bi na Libertadores também em 1973 e 1974, ano em que esteve na Copa do Mundo.
Brandão não só já conhecia o Independiente como teve a honra de ser justamente o primeiro técnico a treinar o Rojo em uma Libertadores, o torneio tão especialmente adorado pelo clube. O brasileiro já havia passado antes por Avellaneda, em 1961, em um contexto no qual os principais clubes argentinos enchiam-se de tupiniquins. Em alta pelo título mundial em 1958, incluía-se no pacote alguns campeões: Orlando, Dino Sani e o técnico Vicente Feola foram ao Boca e Moacyr, ao River. Paulinho Valentim, nos auriazuis, e Delém, nos millonarios, foram os que mais se destacaram, mas o fenômeno não se restringiu à dupla principal.
Estudiantes (Adamasto, Paulinho de Almeida, ex-River), Argentinos Jrs (Aitor Diogo, Evaldo), San Lorenzo (Belisário), Lanús (Zezé Gambassi), Ferro Carril Oeste (Rudymar Machado, ex-Huracán), Rosario Central (o ex-palmeirense Rodrigues, da Copa de 1954) foram outros clubes que tinham brasucas em 1961, assim como o Independiente. Que havia sido campeão no ano anterior, encerrando seu maior jejum até então, de doze anos. Mas não manteve o técnico Roberto Sbarra e importou do Palmeiras recém-campeão da Taça Brasil o treinador que havia armado o Brasil de 1958: Brandão, substituído por Feola às vésperas do mundial.
A admiração viraria mútua: “os argentinos querem copiar os brasileiros, mas se esquecem de quem um argentino veio ao Brasil há vinte anos para ensinar o futebol a nós. Se chamava Antonio Sastre”, declararia em alusão ao polivalente craque do clube nos anos 30 e que participou ativamente dos primeiros títulos do nascente São Paulo – saiba mais. Além de Brandão, o Rojo buscara em 1961 também os meias Joãozinho (Severiano, para os argentinos), jovem que viria a ser um dos dez maiores artilheiros do Grêmio, e o veterano corintiano Lanzoninho (Lanzoni). Mas não se deu bem. Na Libertadores, que já começava em mata-mata, caiu logo no primeiro, perdendo os dois jogos exatamente contra o Palmeiras.
Já no campeonato argentino de 1961, o Independiente ficou só em sexto. O campeão foi justo o rival Racing, que por sinal não havia entrado, ainda, naquela repentina onda dos brasileiros – e que, ironicamente, foi goleado por 4-0 no clássico com direito a dois gols de Lanzoninho. O trio brasileiro deixou o Independiente, mas Brandão deixara boa impressão: já em 16 de fevereiro de 1962, o Correio da Manhã noticiou que um dirigente, de estadia por São Paulo, tentaria recontratar o treinador, sondado também pelo Racing em dado momento.
A volta deu-se em 1967, ano em que o calendário doméstico da elite do futebol argentino se dividiu em dois torneios. O campeonato argentino, historicamente restrito à Grande Buenos Aires, La Plata e Rosario, se converteu no torneio metropolitano – que, por reunir a tradicional nata dos clubes do país, acabaria o mais valorizado. Em 1967, ele seria obtido pelo Estudiantes, que assim quebrou o oligopólio dos cinco grandes nas conquistas profissionais na primeira divisão.
A outra competição seria o Nacional, a reunir as equipes do Metropolitano com as melhores das ligas provinciais do interior argentino, a receberem assim um conveniente agrado do recém-instalado ditador Juan Carlos Onganía. Virtualmente, seriam dois campeonatos argentinos anuais: os puristas apreciavam mais o Metro, ao passo que o Nacional fornecia as vagas à Libertadores, para campeão e vice (o Estudiantes classificou-se à vitoriosa Libertadores de 1968 não como o campeão do Metro, e sim como o vice do Rojo naquele Nacional). Apenas em 1973 é que, a vaga do vice nacional seria repassada para o campeão metropolitano, valorizando-o ainda mais.
A torcida do Independiente não pôde ficar satisfeita na maior parte de 1967. Nas semifinais do Metro, o clube foi eliminado justo pelo Racing, que, mesmo sem conseguir posteriormente o título, sagraria-se campeão da Libertadores (até então uma exclusividade na Argentina da sala de troféus roja) e da Intercontinental (ainda inédita para um time do país). O consolo viria com o certame nacional. A campanha do campeão foi um passeio, em um torneio de pontos corridos em turno único, com 16 participantes: os seis melhores de cada grupo do Metropolitano juntaram-se ao Central Córdoba de Santiago del Estero, ao Chaco For Ever de Resistencia, ao San Lorenzo de Mar del Plata e ao San Martín de Mendoza (treinado, aliás, por uma lenda roja, Raimundo Orsi).
Em seus 15 compromissos, os diablos só perderiam uma vez e ganhariam 12, marcando quase três vezes por partida e ganhando as 8 primeiras. As goleadas iniciais incluíram um 6-0 no Central Córdoba, um 5-2 no Lanús, um 4-2 no Quilmes, um 6-no Chaco e, fora de casa, um 3-0 no San Lorenzo marplatense. Só o Estudiantes, que segurou o 0-0 em Avellaneda, e o Rosario Central, que cedeu em casa um 1-1, não foram derrotados antes da reta final. Que, por si só, foi outra característica especial da campanha. Afinal, ela recheou confrontos contra todos os outros quatro grandes, o que aumentaria o sabor da conquista, ainda que o caminho tenha começado indigesto: em seu campo, o San Lorenzo impôs a única derrota do campeão, com um 3-1.
A metade vermelha de Avellaneda, em seguida, comemorou um 3-2 no Boca e, no Monumental de Núñez, um 2-0 no River. Mesmo assim, o clube ainda não havia faturado a taça, com o time campeão do Estudiantes firme na disputa por novo título, querendo fazer ainda mais história e ser o primeiro vencedor dobrado no país. Os platenses, invictos, estavam 2 pontos atrás – na época, este era o valor de uma vitória, de forma que eles poderiam forçar um jogo-extra caso ganhassem do River e o líder perdesse em 17 de dezembro de 1967. Ao Independiente, restava poder até empatar dentro de sua Doble Visera contra La Academia, campeã mundial um mês e meio antes.
A água no chope do rival seria um folclore hoje em dia, mas na época a rivalidade era sadia. Um dos racinguistas era brasileiro e havia jogado justamente no Independiente em 1966, João Cardoso (autor de um dos gols na finalíssima da Libertadores): “a transferência para o Racing foi discreta e tranquila, fui vendido normalmente, sem problema nenhum. Quando vieram falar comigo, já estavam acertados com o Independiente. Naquela época, até a rivalidade entre os clubes era normal. Quando a imprensa soube, eu já estava contratado pelo Racing”, contou Cardoso nesta entrevista ao Futebol Portenho.
Tanto é verdade que aquele encontro teve, antes do pontapé inicial, homenagens do Independiente ao feito do rival, com direito a mascotes de ambos desfilando juntos com as taças. O clássico ficou sem gols no 1º tempo, mas na 2º os mandantes espantaram qualquer temor: Tarabini, aos 2, abriu o placar, ampliado aos 10 pelo matador Artime, o Gerd Müller argentino. O atacante, numa das maiores ironias do futebol argentino, é quem mais balançou as redes do Racing na soma de gols marcados por todos os clubes onde passou. Sendo que o clube de seu coração é justamente La Academia…
Artime fez também o terceiro gol, aos 23, superando o colega Yazalde (que não jogou) na artilharia do torneio, com 11 gols. Savoy, aos 43, aplicou a última carimbada no ano histórico do rival. Ao fim, os campeões recordistas (ninguém superou até hoje na Argentina os 86,67% de aproveitamento do título do Independiente de Brandão) carregaram nos ombros seu técnico brasileiro. A estadia vitoriosa dele não durou tanto, porém. No dia seguinte, regressou ao Brasil, para ser supervisor técnico da seleção, recusando proposta do Boca e os apelos dos pupilos rojos para ficar.
De todo modo, Brandão abriu portas para um conterrâneo: o campeonato seguinte, o Metropolitano de 1968, seria faturado pelo San Lorenzo, treinado por Tim, ex-atacante da Copa de 1938. Foi justamente sob Tim que um clube conseguiu o primeiro título invicto do profissionalismo argentino. Ainda hoje, são os únicos treinadores brasucas campeões argentinos. Brandão segue recordado em Avellaneda como um mestre no uso da preparação física e no discurso motivacional e, paternal do jeito que era, até no auxílio aos jogadores na elaboração dos contratos. Santoro, em 2015, lembrou-se do “Mestre” ao responder indagação da revista El Gráfico: “escolho o brasileiro. Levou muito bem o time em 1962 (sic) e em 1967 e nos deixou ensinamentos”. Falamos aqui: foi para definir o técnico do “time dos sonhos” do goleiro, vitorioso com tantos outros treinadores no Rey de Copas.
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Caio, tens informações acerca do Belgrano Atlethic, primeiro campeão da Tie Cup, em 1900?