O início do século XX encontrou Córdoba vitimada por um profundo mal-estar econômico. Uma confusão na cidade. A economia local era sustentada por um modelo falido e que então dava lugar a outro, o agroexportador, que colocaria as coisas nos eixos. Mas depois de muito tempo. E para alguns. No campo, os trabalhadores eram massacrados pela falta de regulamentação de sua função. Nas poucas indústrias, submetidos a turnos abusivos de trabalho. Nas ruas, ambos viam apenas uma única coisa a fazer: jogar futebol. Quando? Em duas situações: Nos poucos minutos, após o almoço, e nos fins de semana. Na primeira situação, formavam equipes, que pouco a pouco se estruturavam e ganhavam identidade. Na segunda, treinavam essas equipes e as inscreviam nas inúmeras ligas que se espalhavam por Córdoba e regiões interligadas.
Então tudo se organizou com a fundação de uma liga maior em 1906: a Liga Cordobesa de Futebol. Três anos depois, em 1909, um bando de maltrapilhos ferroviários a ela se associou com o nome de Club Defensa Infantil. Para muitos, tratava-se de vândalos. Para outros, de violentos carniceiros que só buscavam confusão. Para poucos, que em muitos casos se resumiam a eles mesmos, apenas pessoas comuns que como todas, tinham o sagrado direito a um pouco de diversão. Tudo isso é história, mas o fato é que não essência daquele grupo, no canto mais recôndito de sua alma, havia de fato um pouco de loucura.
De 90 mil habitantes em 1900 a cidade passou a 120 mil em 1910. Isto graças à massa de imigrantes que viera principalmente da Itália. Contudo, esses trabalhadores não imaginavam que abandonariam sua pátria para serem quase escravizados no anunciado “Eldorado” que a Argentina representava. Sobretudo Córdoba, que era o interior, e que se não fosse o próprio céu mais valeria àqueles trabalhadores que ficassem em Buenos Aires. Por um lado, detinham a consciência do problema; por outro eram sugados em seus locais de trabalho sem que pudessem fazer alguma coisa a curto prazo. Não bastasse tudo isso, quando se dirigiam a suas casas iam para bairros miseráveis e que não conheciam a mesma modernização do centro da cidade. Alguns bairros sequer tinham registro. Pobreza era pouco. Analfabetismo também. Mortalidade infantil nem se fala. O pior era ter de lidar com febre tifoide, gripe e peste bubônica, tuberculose e varicela. Um “tal” de hospital San Roque foi montado. Difícil era encontrar médico.
Como a contradição entre o alto grau de consciência dos trabalhadores e o seu massacre social não se resolvia o jeito foi canalizar essa energia para o futebol, para o recém-fundado Defensa infantil. Inscrito na segunda divisão da Liga, seu desempenho na temporada foi marcada pela humilhação dos resultados desfavoráveis e pela agressividade dentro da cancha. A situação era tão grave que muitos árbitros se recusavam a apitar os encontros nos terrenos no bairro Jardín. Foram quatro anos de sofrimento até que os jovens ferroviários aprenderam a contornar algumas das dificuldades e se configurarem como um time vencedor. Chegaram à final da Segundona em 1913. O adversário era o forte Colegio Nacional de Monserrat. O Defensa tinha tudo para vencer, mas, de repente, a partida foi suspensa por uma sucessão de atos de indisciplina dos ferroviários. A equipe foi suspensa.
Sem poder ficar sem o futebol, os jogadores resolveram realizar um amistoso em um domingo do dia 12 de outubro. Depois da partida, alguns dirigentes do Ferrocarril propuseram que fundassem outra equipe. Surgia o Clube Talleres de Córdoba. Entendendo o fenômeno que o novo clube significava, e os frutos que poderiam colher, os dirigentes do Ferrocarril resolveram dar um suporte à nova instituição. Filiaram ao Talleres todos os seus trabalhadores e de cada um passou a descontar um peso por mês, que ia para a tesouraria tallarin.
Tudo foi devidamente pensado para a estreia, que seria em Alberdi diante do Belgrano. Na formação titular estavam quase todos os fundadores do Defensa, quatro anos antes: Abel Forelli; Pedro Andrade e Pedro Ledesma; Carbajal, Luis Salvatelli e Miguel Ferreyra; T. Ferreyra, Tomás Lawson, Manuel Martínez, E. Puymale e Agustín Moyano. Na reserva H. Salvatelli, Juan Pax, R. Heredia (talvez o mais violento atleta da história do clube) e Rafael Contreras só puderam atuar pelo perdão da Liga, já que no ano anterior haviam se envolvido em supostos atos de violência dentro e fora da cancha.
Tudo pronto para encarar a Celeste do bairro de Alberdi. Todavia, o embate durou apenas quatro minutos. Depois de o árbitro validar um gol do Pirata, contra a vontade dos ferroviários, eles simplesmente abandonaram a cancha revoltados. Poucos dias depois, renunciaram à Liga. Após muitos amistosos, retornaram a ela no ano seguinte, em 1915, então atuando no terreno próximo à casa dos irmãos Salvatelli. Neste ano conseguiu seu primeiro título. Porém, o retorno não foi fácil. Já no segundo jogo, contra o Club Juniors, Horácio Salvatelli fraturou a perna de José Carbajal, o que ajudou a aprofundar a aversão e temor que todos já manifestavam em relação ao conjunto Albizaul.
No ano seguinte, outro acidente. Em outra partida conta o Belgrano, Salvatelli disputou a bola com o arqueiro Cardozo e chutou tudo o que viu pela frente. Fez o gol, porém o árbitro David Aird o anulou em razão da grave contusão do arqueiro celeste. Como resposta, jogadores e torcedores invadiram o campo para surrar o árbitro e os atletas piratas. Uma pronta intervenção policial impediu a tragédia. Resultado: Talleres foi expulso da Liga e o talentoso Salvatelli proibido de praticar futebol pelo resto da vida.
Algum tempo depois, tanto o goleador (que havia ficado vários dias encarcerado) quanto o clube foram perdoados e readmitidos na Liga. A partir daí os títulos que foram chegando sucessivamente foram acalmando os ânimos. Não que a energia albiazul, vestida às vezes de loucura, houvesse sucumbido. Nada disso. Mas o fato é que ela ganhava a devida canalização às conquistas que fariam do Talleres a maior equipe futebolística de Córdoba.
Dessas equipes se destacam o timaço de 1923, pentacampeão da Liga. Um monumento de time. Sua fama o levou às primeiras aventuras fora do país. Foram recebidos no Chile como a expressão do melhor futebol que pudesse haver na Argentina. As honras oferecidas foram para chefes-de-estado, Na formação titular estavam: Armando Rousset; Bernabé Ponce Everdich e Félix Rosetti; José Contreras, Pedro Falco e Emilio Fernández; Juan Prax, Hugo Salvatelli, Ernesto Pieri, Armando Pimentel e Luis Bustos. No currículo dessa equipe consta uma vitória de 2×0 sobre o Peñarol, base da Seleção do Uruguay, campeã da Olimpíada de 24.
Depois da construção de La Boutique em 1931 a equipe voltou a ser campeã em 1934. A partir daí foram 12 títulos até 1960. No mesmo movimento, também sua hinchada crescia e se constituía na maior do interior argentino. Contudo, a glória ainda estava por vim.
Um fato chamou a atenção para a grandeza do Matador em 1974. À época Ángel Labruna era o técnico da vez. Prestes a assinar contrato com o River, el Feo foi contratado pelo Talleres para em apenas um ano de vínculo revolucionar as coisas em La Boutique. O clube chegaria em quarto no nacional daquele ano. No elenco tinha Daniel Wellington, que retornava à equipe e que até hoje é tido como o maior jogador da história tallarin. O Talleres seria o sexto colocado um ano depois. Terceiro colocado em 76; vice-campeão em 77; terceiro em 78. O mesmo posto que alcaçaria em 1980 e 82, então pelo Torneio Metropolitano. Quem conhece o futebol argentino da época sabe bem o que isso significa; sobretudo para uma equipe do interior.
Nessa época, sua torcida se constituía em uma das mais fiéis da Argentina. Tudo começou em 1974, quando invadiram Avellaneda para encarar o River Plate. Foram mais de 15 mil hinchas que percorreram quase 800 km até a cancha do Rojo. Antes disso, no centro e nas praças públicas de Córdoba, pessoas vendiam televisores, geladeiras e tudo o que podiam para conseguir o dinheiro da viagem. Situações como essas propiciaram a “La T” as maiores arrecadações do futebol argentino da época, atrás somente de Boca e River. Também suscitaram as primeiras discussões sobre o sexto grande do futebol albiceleste. Porém, tinha mais. Para o bem e para o mal.
Então, as nuvens negras começaram a chegar ao clube. Em 1993, a equipe realizou uma péssima temporada e foi para a B Nacional. Voltaria cinco anos depois, após bater o Belgrano de Córdoba na final do então torneio Clausura da Categoria. Parecia que voltava para ser majestoso.
O grande momento do clube viria um ano depois, em 1999, quando “La T” conquistou a primeira edição da Copa Conmebol. Com Ricardo “el Flaco” Gareca no seu comando, “La T” foi às alturas bolivianas estrear na competição. Voltou com uma acachapante derrota de 4×1 para o Independiente Petrolero. O que obrigou os cordobeses a uma vitória por 3×0 em Córdoba e a passagem à fase seguinte nos penais. No entanto, o confronto mais agonizante foi justamente o da final. O adversário era o desconhecido e surpreendente CSA (Brasil).
Em Maceió, “La T” perdeu por 4×2. Diante de 30 mil pessoas, no estádio Rei Pelé, a equipe argentina foi humilhada na primeira etapa e perdeu por 3×1. Aos dois minutos da etapa complementar Missinho fez o quarto. Nos minutos finais, e na base do coração, La T descontou com Astudillo. Na partida de volta, “La T” abriu o marcador somente aos 40 da primeira etapa. No segundo tempo o CSA se trancou atrás e passou a explorar o desespero dos locais, que se perdiam em seus nervos devido às inúmeras chances de gol não convertidas (foram mais de 15 chances claras, inclusive um pênalti).
Porém, aos 30 Gigena faria o segundo gol. Tanquilidade? Não para os para os hinchas que lotaram o estádio Olímpico de Córdoba. Mesmo com o sufoco albiazul a impressão era que não sairia o terceiro gol. Até que aos 45 minutos, Maidana deu o almejado presente à sofrida hinchada cordobesa: 3×0 e um título que apresentava o Talleres à América do Sul.
Na temporada seguinte, “La T” terminou em quarto e foi classificado à Copa Mercosul e à Libertadores de América. No primeiro torneio chegou às quartas-de-final. Na Libertadores, não passou da primeira fase. Então, o que poderia ser o início da real trajetória do Talleres rumo ao posto de o sexto grande do futebol argentino foi bruscamente interrompido por uma decadência assustadora.
Ao fim da temporada 2002/03 o clube se deparou com a promoción. Permanceu na elite, ao vencer o San Martín (Mendoza). No ano seguinte, voltou à promoción e foi derrotado pelo Argentinos Juniors. El Matador estava novamente na segunda divisão e não retornaria até os dias de hoje ao futebol de elite que tão bem conheceu. Em 2009 as coisas pioraram e “La T” caiu para o Torneio Argentino A.
Embora uma nova administração tente dar ares mais profissionais ao clube, o fato é que el Matador não é sequer uma sombra da gloriosa equipe que ora completa 98 anos de vida. Até mesmo o posto de maior torcida do interior parece ter sido tomado pelo Rosário Central. A decadência impressiona quem conheceu o passado glorioso albiazul. Além disso, oferece uma noção precisa do que cartolas podem causar a um clube de futebol quando pensam apenas em seus interesses pessoais. Estar perdido e sem rumo no futebol atual não é nada perto das chacotas a que “La T” e sua hinchada fiel são submetidos na atualidade.
Mas se os albiazuis não se deparam com aquela energia mágica e louca que estavam no coração dos jovens atletas do Defensa Infantil, um século atrás, isto não impede que comemorem e celebrem o seu aniversário. Até porque se não há glórias no presente elas sobram no passado para o el Matador cordobês. Sobretudo nos seus fundadores, que, naquela época, trabalhavam quase como escravos, mas que nos fins de semana iam para a desforra; para um custe-o-que-custasse em que a única coisa que importava era algum tipo de vitória.
httpv://www.youtube.com/watch?v=j_sIH5eGCXI
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Cara que emocionante essa história. Eu li junto com minha gata e ela virou torcedora do Talleres. Incrível essa história.
Parece-me que ha um erro no texto quando se refere a um jogo disputado em Avellaneda. Onde esta "River Plate" deveria estar "Independiente".
"Talleres", que significado tem ?
João Moreira
Sensacional! E esse final com Fito Paez...
João, os jogos decisivos do Nacional eram disputados em campos neutros. Ou seja, a AFA considerava que Avellaneda seria uma cancha neutra para o confronto entre River e Talleres. Por isso a partida não foi em Núñez. Quanto ao significado de "Talleres" seria "Oficinas". No sentido de local de trabalho, como escritórios ou oficinas como conhecemos. Também tem o sentido de "Workshops". Um abraço e grato pelo prestígio de sua audiência.
Muito bom mesmo. Parabéns, Joza.
Teu relato acabou comigo, haha! Tinha certa antipatia pelo Talleres por causa daquele Nacional de 77, mas depois de ler isso... caramba!! Que texto...
Esse Daniel Wellington não seria o Willington de sucesso também no Vélez? E esse Gigena é aquele que marcou os três gols pontepretanos nos 3 a 1 da Macaca em um dérbi campineiro de 2003? E o Maidana, é o mesmo que esteve no Grêmio lá por 2005?
Comovente esse relato. Incrível como o futebol é um esporte de massas e capaz de mudar tanto a vida das pessoas. Eu já tava comovida com a história, mas depois do vídeo com a voz de La Negra e as imagens do clube confesso que chorei. Muito, muito bom.
Joza,
Obrigado pelos esclarecimentos.
joao moreira
Outra coisa. Esse Salvatelli talvez seja o primeiro Edmundo da história do futebol. Mas vai ser animal assim no inferno. figura apaixonante.
Maidana é o do Gremio sim, e o Gigena é o proprio do historico hat-trick naquele derby do Majestoso. O post do amigo Joza é sensacional, com informações que só um conhecedor tem, e narrativa absolutamente envolvente. Tremendo post.
Concordo com tudo o que a Luciana disse (o retrato de como o futebol pode ser importante para as pessoas, a historia emocionante, a voz de La Negra, o incrivel Salvatelli), mas acrescento: a foto do Tigre Gareca emocionado tambem é sensacional