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Talleres de Córdoba: 100 anos de história

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É do conhecimento de todos que o Club Atlético Talleres nasceu no longínquo ano de 1913, precisamente no dia 12 de outubro, razão por que completa hoje seu centenário. Também dizer que os explorados trabalhadores das oficinas (talleres, em espanhol) da estação local da ferrovia Central-Córdoba passavam seu pouco tempo correndo atrás de uma bola, e que por isso pouco depois fundariam um clube de futebol, é repetir o que é de conhecimento público, até porque circula hoje pela internet. Mais vale dizer que já nasceu Matador, seu apelido. E que espalhava terror, respeito e bronca. E que disseminava o espírito da agressividade vencedora cujo objetivo era apenas o de vencer, mesmo que no custe-o-que-custasse.

O início do século XX encontrou Córdoba vitimada por um profundo mal-estar econômico. Uma confusão na cidade. A economia local era sustentada por um modelo falido e que então dava lugar a outro, o agroexportador, que colocaria as coisas nos eixos. Mas depois de muito tempo. E para alguns. No campo, os trabalhadores eram massacrados pela falta de regulamentação de sua função. Nas poucas indústrias, submetidos a turnos abusivos de trabalho. Nas ruas, ambos viam apenas uma única coisa a fazer: jogar futebol. Quando? Em duas situações: nos poucos minutos após o almoço e nos fins de semana. Na primeira situação, formavam equipes, que pouco a pouco se estruturavam e ganhavam identidade. Na segunda, treinavam essas equipes e as inscreviam nas inúmeras ligas que se espalhavam por Córdoba e regiões interligadas.

Então tudo se organizou com a fundação de uma liga maior em 1906: a Liga Cordobesa de Futebol. Três anos depois, em 1909, um bando de maltrapilhos ferroviários a ela se associou com o nome de Club Defensa Infantil. Para muitos, tratava-se de vândalos. Para outros, de violentos carniceiros que só buscavam confusão. Para poucos, que em muitos casos se resumiam a eles mesmos, apenas pessoas comuns que como todas, tinham o sagrado direito a um pouco de diversão. Tudo isso é história, mas o fato é que não essência daquele grupo, no canto mais recôndito de sua alma, havia de fato um pouco de loucura, ao passo que de 90 mil habitantes em 1900, a cidade passou a 120 mil em 1910. Isto, graças à massa de imigrantes que viera principalmente da Itália.

Contudo, esses trabalhadores não imaginavam que abandonariam sua pátria para serem quase escravizados no anunciado “Eldorado” que a Argentina representava. Sobretudo Córdoba, que era o interior, e que se não fosse o próprio céu mais valeria àqueles trabalhadores que ficassem em Buenos Aires. Por um lado, detinham a consciência do problema; por outro, eram sugados em seus locais de trabalho sem que pudessem fazer alguma coisa a curto prazo. Não bastasse tudo isso, quando se dirigiam a suas casas, iam para bairros miseráveis e que não conheciam a mesma modernização do centro da cidade. Alguns bairros sequer tinham registro. Pobreza era pouco. Analfabetismo também. Mortalidade infantil nem se fala. O pior era ter de lidar com febre tifoide, gripe e peste bubônica, tuberculose e varíola. Um “tal” de hospital San Roque foi montado. Difícil era encontrar médico.

Formação titular que vestiu pela primeira vez a camisa do Talleres em 1914
Como a contradição entre o alto grau de consciência dos trabalhadores e o seu massacre social não se resolvia, o jeito foi canalizar essa energia para o futebol, para o recém-fundado Defensa infantil. Inscrito na segunda divisão da Liga, seu desempenho na temporada foi marcada pela humilhação dos resultados desfavoráveis e pela agressividade dentro da cancha. A situação era tão grave que muitos árbitros se recusavam a apitar os encontros nos terrenos no bairro Jardín.

Foram quatro anos de sofrimento até os jovens ferroviários aprenderam a contornar algumas das dificuldades e se configurarem como um time vencedor. Chegaram à final da segundona provincial em 1913. O adversário era o forte Colegio Nacional de Monserrat. O Defensa tinha tudo para vencer, mas, de repente, a partida foi suspensa por uma sucessão de atos de indisciplina dos ferroviários. A equipe foi suspensa.

Sem poder ficar sem o futebol, os jogadores resolveram realizar um amistoso em um domingo do dia 12 de outubro. Depois da partida, alguns dirigentes da ferrovia propuseram que fundassem outra equipe. Surgia o então Club Atlético Central Córdoba, depois alterado para Talleres. Entendendo o fenômeno que o novo clube significava, e os frutos que poderiam colher, os dirigentes do ferrocarril resolveram dar um suporte à nova instituição. Filiaram ao Talleres todos os seus trabalhadores e de cada um passou a descontar um peso por mês, que ia para a tesouraria tallarin.

Tudo foi devidamente pensado para a estreia, que seria no bairro de Alberdi, diante do Belgrano. Seria a primeira edição do clássico mais realizado até hoje do futebol argentino. Na formação titular dos novatos, estavam quase todos os fundadores do Defensa, quatro anos antes: Abel Forelli; Pedro Andrade e Pedro Ledesma; Carbajal, Luis Salvatelli e Miguel Ferreyra; T. Ferreyra, Tomás Lawson, Manuel Martínez, E. Puymale e Agustín Moyano. Na reserva, Horacio Salvatelli, Juan Pax, R. Heredia (talvez o mais violento atleta da história do clube) e Rafael Contreras só puderam atuar pelo perdão da Liga, já que no ano anterior haviam se envolvido em supostos atos de violência dentro e fora da cancha.

Time de 1923, para muitos, o maior da história de “La T”

Tudo pronto para encarar o Celeste de Alberdi. Todavia, o embate durou apenas quatro minutos. Depois de o árbitro validar um gol do Pirata, contra a vontade dos ferroviários, estes simplesmente abandonaram o jogo  revoltados. Poucos dias depois, renunciaram à Liga.

Após muitos amistosos, retornaram a ela no ano seguinte, em 1915, então atuando no terreno próximo à casa dos irmãos Salvatelli. Neste ano, conseguiu seu primeiro título. Porém, o retorno não foi fácil. Já no segundo jogo, contra o Club Juniors, Horacio Salvatelli fraturou a perna de José Carbajal, o que ajudou a aprofundar a aversão e temor que todos já manifestavam em relação ao conjunto Albizaul.

No ano seguinte, outro acidente. Em outra partida conta o Belgrano, Salvatelli disputou a bola com o arqueiro Cardozo e chutou tudo o que viu pela frente. Fez o gol, porém o árbitro David Aird o anulou em razão da grave contusão do arqueiro celeste. Como resposta, jogadores e torcedores invadiram o campo para surrar o árbitro e os atletas piratas. Uma pronta intervenção policial impediu a tragédia. Resultado: Talleres expulso da Liga e o talentoso Salvatelli proibido de praticar futebol pelo resto da vida.

Algum tempo depois, tanto o goleador (que havia ficado vários dias encarcerado) quanto o clube foram perdoados e readmitidos na Liga. A partir daí, os títulos que foram chegando sucessivamente foram acalmando os ânimos. Não que a energia albiazul, vestida às vezes de loucura, houvesse sucumbido. Nada disso. Mas o fato é que ela ganhava a devida canalização às conquistas que fariam do Talleres a maior equipe futebolística de Córdoba.

Dessas equipes, se destacam o timaço de 1923, pentacampeão da Liga. Um monumento de time. Sua fama o levou às primeiras aventuras fora do país. Foram recebidos no Chile como a expressão do melhor futebol que pudesse haver na Argentina. As honras oferecidas foram para chefes-de-estado. Na formação titular, estavam Armando Rousset; Bernabé Ponce Everdich e Félix Rosetti; José Contreras, Pedro Falco e Emilio Fernández; Juan Prax, Hugo Salvatelli, Ernesto Pieri, Armando Pimentel e Luis Bustos. No currículo dessa equipe, consta uma vitória de 2-0 sobre o Peñarol, em época em que o Uruguai era campeão olímpico.

Depois da construção do Estádio de La Boutique em 1931, a equipe voltou a ser campeã em 1934. A partir daí, foram doze títulos até 1960. No mesmo movimento, também sua hinchada crescia e se constituía na maior do interior argentino. Contudo, a glória ainda estava por vir.

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La T no auge da projeção nacional, de 1977-78

Um fato chamou a atenção para a grandeza do Matador em 1974. À época, Ángel Labruna era o técnico da vez. El Feo foi contratado pelo Talleres para em apenas um ano de vínculo revolucionar as coisas em La Boutique. O clube chegaria em 4º no nacional daquele ano. No elenco, tinha Daniel Willington, herói do primeiro título argentino do Vélez, em 1968, que retornava à Córdoba e que até hoje é tido como o maior jogador da história tallarin.

O Talleres seria ainda o 6º colocado um ano depois. 3º colocado em 1976; vice em 1977 (na mais épica final do país: clique aqui); 3º em 1978, mesmo posto que alcaçaria em 1980 e 82, então pelo Torneio Metropolitano. Em uma época de ouro do futebol cordobês, e argentino como um todo, com Belgrano, Instituto e Racing de Córdoba também em bons momentos e até com jogadores na seleção, La T brilhou ainda mais que eles nesses aspectos: clique aqui para mais detalhes. Quem conhece o futebol argentino da época sabe bem o que isso significa, sobretudo para uma equipe do interior.

Nessa época, sua torcida se constituía em uma das mais fiéis da Argentina. Tudo começou em 1974, quando invadiram Avellaneda para encarar o River Plate. Foram mais de 15 mil hinchas que percorreram quase 800 km até a cancha do Independiente. Antes disso, no centro e nas praças públicas de Córdoba, pessoas vendiam televisores, geladeiras e tudo o que podiam para conseguir o dinheiro da viagem. Situações como essas propiciaram a La T as maiores arrecadações do futebol argentino da época, atrás somente de Boca e River. Também suscitaram as primeiras discussões sobre o sexto grande do futebol nacional. Porém, tinha mais. Para o bem e para o mal.

Para a Copa de 1978, um dos concorrentes de Maradona que acabaria escolhido em seu lugar era do Talleres: Daniel Valencia. A seleção campeã tinha ainda o zagueiro Luis Galván entre os titulares. Também iriam à Copa de 1982, junto com o goleiro Héctor Baley. Então, as nuvens negras começaram a chegar ao clube. Em 1993, a equipe realizou uma péssima temporada e foi para a B Nacional. Voltaria cinco anos depois, após bater o rival Belgrano na final do então torneio Clausura da Categoria. Parecia que voltava para ser majestoso.

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Abraçado ao assistente, “El Tigre” Gareca chora o dramático título da Copa Conmebol 1999. À direita, Maidana comemorando o gol da conquista

O grande momento do clube viria um ano depois, em 1999, quando conquistou a última edição da Copa Conmebol. Com Ricardo Gareca no seu comando, La T foi às alturas bolivianas estrear na competição. Voltou com uma acachapante derrota de 4-1 para o Independiente Petrolero. O que obrigou os cordobeses a uma vitória por 3-0 em casa e a passagem à fase seguinte nos penais. No entanto, o confronto mais agonizante foi justamente o da final. O adversário era o desconhecido e surpreendente CSA, referido na Argentina como Sportivo Alagoano.

Em Maceió, diante de 30 mil pessoas, no estádio Rei Pelé, a equipe argentina foi humilhada na primeira etapa e perdeu por 3-1. Aos dois minutos da etapa complementar, Missinho fez o quarto. Nos minutos finais, e na base do coração, La T descontou com Rodrigo Astudillo. Na partida de volta, abriu o marcador somente aos 40 da primeira etapa. No segundo tempo, o CSA se trancou atrás e passou a explorar o desespero dos locais, que se perdiam em seus nervos devido às inúmeras chances de gol não convertidas: foram mais de 15 chances claras, inclusive um pênalti.

Porém, aos 30, Darío Gigena, o mesmo pontepretano que abordamos ontem (clique aqui), faria o segundo gol. Tanquilidade? Não para os para os hinchas que lotaram o estádio Olímpico de Córdoba. Mesmo com o sufoco albiazul, a impressão era que não sairia o terceiro gol. Até que aos 45 minutos, o futuro gremista Julián Maidana deu o almejado presente à sofrida hinchada cordobesa: 3-0 e um título que apresentava o Talleres à América do Sul.

Na temporada seguinte, La T terminou em 4ª e foi classificada à Copa Mercosul de 2001 e à Libertadores de América de 2002. No primeiro torneio, chegou às quartas-de-final. Na Libertadores, não passou da primeira fase. Então, o que poderia ser o início da real trajetória do Talleres rumo ao posto de o sexto grande do futebol argentino foi bruscamente interrompido por uma decadência assustadora.

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Camisa retrô oficial do centenário feita pela Penalty e o elenco que em 2013 tirou La T da terceirona

Ao fim da temporada 2002/03, o clube se deparou com a promoción. Permanceu na elite, ao vencer o San Martín (Mendoza). No ano seguinte, voltou à promoción e foi derrotado pelo Argentinos Juniors. El Matador estava novamente na segunda divisão e não retornaria até os dias de hoje ao futebol de elite que tão bem conheceu. Em 2009, as coisas pioraram e caiu para o Torneio Argentino A, a terceirona. A volta à segunda veio como presente de centenário: campeão da terceira neste 2013, ano em que também se deu ao gosto de vencer duas vezes o Belgrano, eliminando-o da Copa Argentina e no jogo festivo que marcou o centenário que a liga cordobesa também completou em 2013.

Embora uma nova administração tente dar ares mais profissionais ao clube e de um aparente ressurgimento paulatino, o fato é que La T não é sequer uma sombra da gloriosa equipe que ora completa cem anos de vida. Até mesmo o posto de maior torcida do interior parece ter sido tomado pelo Rosario Central. A decadência impressiona quem conheceu o passado glorioso do Talleres. Além disso, oferece uma noção precisa do que cartolas podem causar a um clube de futebol quando pensam apenas em seus interesses pessoais.

Mas se os albiazuis não se deparam com aquela energia mágica e louca que estavam no coração dos jovens atletas do Defensa Infantil, um século atrás, isto não impede que comemorem e celebrem o seu aniversário: basta dar uma olhada em álbum no perfil oficial da instituição no facebook (clique aqui). Até porque se não há glórias no presente elas sobram no passado para o El Matador cordobês. Sobretudo nos seus fundadores, que, naquela época, trabalhavam quase como escravos, mas que nos fins de semana iam para a desforra; para um custe-o-que-custasse em que a única coisa que importava era algum tipo de vitória.

*Reprodução quase total de Especial publicado há dois anos: veja-o clicando aqui.

*Conheça também o filme Talleres La Película: aqui.

httpv://www.youtube.com/watch?v=j_sIH5eGCXI

Joza Novalis

Mestre em Teoria Literária e Lit. Comparada na USP. Formado em Educação e Letras pela USP, é jornalista por opção e divide o tempo vendo futebol em geral e estudando o esporte bretão, especialmente o da Argentina. Entende futebol como um fenômeno popular e das torcidas. Já colaborou com diversos veículos esportivos.

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