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Supersemana – A Origem do Superclássico

Qualquer brasileiro medianamente informado sabe que o Boca Juniors nasceu e ainda é sediado no bairro portenho de La Boca. Menos comum é encontrar quem saiba que o mesmo bairro gerou outro clube argentino mundialmente famoso: o River Plate.

La Boca del Riachuelo, ou simplesmente La Boca, é um bairro situado logo ao sul do porto e da área central de Buenos Aires. A localidade bucólica se transformaria radicalmente com a chegada de levas de imigrantes europeus, em sua maioria italianos da região de Gênova.

E essa multidão de trabalhadores braçais logo começaria a praticar o futebol em sua nova terra. Como conseqüência, nasceriam as pequenas agremiações de bairro. Entre elas, o Club Atletico River Plate (25 de maio de 1901) e o Club Atletico Boca Juniors (3 de abril de 1905).

Até aí nada demais. La Boca apenas presenciava o mesmíssimo fenômeno que acontecia por toda a cidade. Impulsionada pela riqueza trazida pelas exportações de carne e trigo, a economia argentina se industrializava, levando o país a ser o sexto mais rico do mundo. Com isso, atraía grandes levas de imigrantes (italianos, espanhóis, portugueses, alemães, russos, judeus, turcos), fazendo com que a capital, Buenos Aires, deixasse de ser um simpático porto para se transformar na mais importante cidade latino-americana.

Esse crescimento fez com que o povoamento deixasse de se restringir à área central. Novos bairros nasciam a cada dia para acomodar a multidão de recém-chegados. Esses bairros tenderam a construir identidades próprias, até por serem muitas vezes formados por moradores de uma mesma origem nacional.

Com isso esses bairros tinham cada um sua característica, e seus clubes de futebol eram parte disso. Nascia a paixão dos moradores de cada bairro por seu clube e o ódio pelo vizinho rival. Isso aconteceu em toda a capital argentina, e La Boca não ficou de fora do processo.

Há informações pouco confiáveis de encontros anteriores, mas o primeiro confronto cuja existência há mais registros ocorreu em 2 de agosto de 1908. Se deu no campo de Darsena Sur, bairro vizinho a La Boca onde os xeneizes mandavam seus jogos à época. Desse enfrentamento só se sabe o placar: Boca Jrs. 2 x 1 River Plate.

Como tudo o que envolve o superclássico, há controvérsia sobre esse primeiro encontro. Muitos preferem apontar o encontro de 24 de agosto de 1913 na cancha do Racing como a primeira vez comprovada em que ambos se enfrentaram. Vitória de 2 a 1 do River Plate. Essa versão é a preferida dos torcedores milionários, até porque ela faz com que a primeira vitória do Boca no confronto só tenha ocorrido a 18 de setembro de 1918, na oitava partida disputada entre ambos.

Como era comum à época, nenhuma das duas equipes tinha patrimônio (estádios, terrenos, clube social) que lhes permitisse se fixar em um mesmo local. A idéia, muito difundida, de que o Boca Juniors nunca saiu de La Boca, simplesmente não é verdadeira. A equipe rodou pelos bairros da zona sul de Buenos Aires até se fixar em definitivo em seu bairro original, em 1916.

Já o River tem uma história mais variada geograficamente. O clube fez um deslocamento semelhante ao do Boca em seus primeiros anos. Rodou por outros bairros vizinhos até conseguir se fixar no bairro onde nasceu. Mas em 1923 teve de novamente abandonar seu bairro, desta vez em definitivo. Nascia uma nova etapa da rivalidade.

O River Plate optou por não apenas deixar seu bairro de origem, como mudou-se para uma zona totalmente diferente da cidade. Sua escolha foi pela parte norte da cidade, primeiro em Palermo, depois em Nuñez. Ao contrário das vizinhanças de La Boca, esses bairros do norte eram (e ainda são) espaço de um público mais elitizado, que passou a adotar o clube recém-chegado.

O que havia nascido como rivalidade entre vizinhos agora assumia um ar de confronto social. O Boca Juniors, à medida que consolidava seu papel de time vencedor, se transformava no clube favorito das classes trabalhadoras argentinas. Já o River, que também rumava ao topo, passava a contar com a especial admiração dos setores mais elitizados da cidade.

Tudo isso pode parecer muito distante de nós, mas os argentinos são um povo que preza sua história. E na identidade dos clubes e de seus hinchas, ainda se localizam facilmente os ecos daquele passado. Chamamos o Boca de “xeneizes”, quase sempre sem saber que a palavra significa “genoveses”, no dialeto daquela região ao norte da Itália, de onde vieram grande parte dos fundadores do clube.

Quando pensamos nos hinchas do Boca como “bosteros”, devemos lembrar que a Bombonera está edificada sobre um terreno onde há 100 anos havia várias olarias, que fabricavam tijolos misturando argila a fezes de bois e cavalos. Essas duas referências mostram a continuidade histórica na mesma região da cidade e também seu caráter popular.

Já o apelido dos hinchas do River é ainda mais explícito: millionários. O termo surgiu nos anos 1930, quando a equipe, já situada na parte norte da cidade, investia fortunas para reforçar sua equipe.

Também usado para se referir à hinchada do River (ainda que de forma pejorativa), o termo “gallina” é bem posterior, e foi cunhado quando o River perdeu uma final praticamente ganha de Libertadores para o Peñarol em 1966. Mas dificilmente se pode esquecer que esse tipo de alusão à falta de “huevos” aparece de formas variadas em clubes associados à elite aqui no Brasil.

De toda forma, o que é importante lembrar é que o Superclássico já foi algo muito diferente de hoje. Quando pensamos nele, nos vêm a mente um dos confrontos mais importantes do planeta, que mobiliza milhões de pessoas e uma infinidade de dinheiro, mexe com a paixão de todos e rende com freqüência jogos espetaculares.

Mas houve um dia em que isso foi muito diferente. Em humildes campos suburbanos na zona sul de Buenos Aires, tudo começou como jogos entre operários imigrantes que praticavam desafios entre vizinhos. E até hoje os hinchas de ambos os lados não se cansam de reencenar esse duelo a cada encontro entre os dois gigantes argentinos.

Tiago de Melo Gomes

Tiago de Melo Gomes é bacharel, mestre e doutor em história pela Unicamp. Professor de História Contemporânea na UFRPE. Autor de diversos trabalhos na área de história da cultura, escreve no blog 171nalata e colunista do site Futebol Coletivo.

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