Quem aqui não se recorda de uma célebre frase que marcou toda uma geração, principalmente, de quem nasceu nos anos 1980, como eu: “Senta que lá vem história”? Pois bem, esse texto escrevo após chegar em “casa” depois de um dia completamente intenso. A palavra ‘intenso’ é até pouco para explicar o que vivi nesta sexta-feira (06/05). No decorrer do texto você vai entender e valorizar o que vivi.
Você que me lê, acredita em Anjos da Guarda?. Descobri seis aqui em Buenos Aires. Se acha besteira isso, calma. Vai achar que sou muito filósofo. Muito romântico. Faz que nem um amigo que me ironizou ou talvez somente brincou dizendo “vai virar cronista agora?”, depois de eu postar meu segundo texto no Instagram. Pois é, cronista era Nelson Rodrigues. Recomendo ler os textos dele, inclusive. Eu sou só um doente mesmo, como bem me disseram.
A história faz entender como as coisas acontecem por alguma razão. Quando planejei jogos e estádios que queria visitar aqui na Argentina, vi na tabela do campeonato que a partida da primeira divisão nesta sexta-feira era Barracas Central x Instituto, de Córdoba. Sinceramente, havia ouvido falar um pouco do Barracas, porque um dia desses li que o Ricky Centurión, ex-Racing e São Paulo, jogava lá. Do Instituto, nunca havia ouvido falar.
Te digo uma coisa: se tivesse ido lá hoje, sem ter conhecido as pessoas que conheci nos dias anteriores, eu não teria nem conseguido chegar perto. Desistiria bem antes. O que descobri do Barracas Central nesses dias é que ficava numa favela (villa) de Buenos Aires e que era conhecido como o “Time da Máfia”. Esses dois ingredientes são suficientes para assustar qualquer brasileiro com bom senso. Por sorte, na quarta-feira resolvi ir no jogo do Platense x Defensores de Belgrano, em Quilmes. Por mais sorte ainda, lá conheci o instrumentista Joel. Esse é um dos Anjos da Guarda que ganhei em Buenos Aires.
Joel me apresentou sua turma de percussionistas, que tocam Trombeta e Trompete nos jogos. Ganham sei lá, 4.000 ou 5.000 pesos, dependendo do jogo, para tocar para as Barra Bravas (torcidas organizadas) nos estádios argentinos. Cerca de 45 a 60 reais por partida. Para ser sincero, pelo o que esses caras fazem – tocam sem parar por cerca de 120 minutos – eles merecem uns 20.000 pesos. Sem brincadeira, é pura arte mesmo, o que esses pibes fazem.
Bom, o chefe da turma é o jovem Ariel, o mais velho deles e quem tem entrada nas Barras Bravas. 26 anos, postura de líder e carisma de um. Pai de três filhos. Inclusive, o terceiro acaba de nascer, de 35 semanas. Eu nada entendo do assunto, mas logo ele me explicou que o bebê é prematuro. Quando o conheci em Quilmes, Ariel me convidou para ir a Barracas, assistir ao time do atual presidente da AFA (Associação de Futebol da Argentina): Claudio Fabián “Chiqui” Tapia. PS: Os sul-americanos hispanohablantes são muito bons de apelidos, nada chega aos pés deles. Chiqui Tapia começou sua história como coletor de resíduos. Hoje, é presidente da Federação dos atuais campeões do mundo.
El Guapo, como é conhecido o Barracas Central, fica na Villa 21 y 24. Me lembrou muito a Favela da Maré, que só sei do que se trata, porque quando você está chegando ao Rio de Janeiro pela Linha Vermelha, você passa por ela. Se tiver trânsito, a preocupação é real para quem entra no Rio. Quando Ariel me passou o ponto de encontro na Luna y Olavarria, eu ainda não tinha ideia do que encontraria. Não olhei no Google Maps, aquela opção que você vê como é a rua…
Para começar, quando coloquei no Uber o endereço, consegui errar. Coloquei o endereço errado, uma rua abaixo, e ao invés de ir para o estádio, caímos, meu motorista (o venezuelano Alfredo) e eu, no centro da Favela. Alfredo logo me disse, “não vou te deixar aqui, não saia do carro”. Eu tentei acalmá-lo, dizendo que conhecia alguém de lá. Ele se recusou outra vez, porque não acreditava em mim. Neste instante, me liga no WhatsApp o Ariel. Explico meu erro, logo ele aparece em 15 segundos, após cruzar uma viela e aí me encontra. Eu fiquei tranquilo. Alfredo deve ter pensado, “esse rapaz tem problema”.
Chegamos na concentração da torcida, logo após passar a viela. Naquele momento, virei a atração do local, que tinha umas 200 pessoas mais ou menos. O que Ariel fez? Fez questão de me apresentar para todos seus amigos, até os conhecidos. Todos que passavam, ele me apresentava como o brasileiro jornalista esportivo, que estava percorrendo a cidade para ver estádios. Conheci os chefes da Barra Brava, me perguntaram tudo sobre o São Paulo. Disseram que haviam conhecido o presidente da Independente. Me ofereceram bebidas (mesmo não querendo beber, aceitei por respeito e educação), me pagaram um latão de Brahma, inclusive.
Naqueles 30 minutos, tudo passava pela minha cabeça. E eles só diziam “fica tranquilo brasileiro, sem medo”. Eu só pensava como ou porquê estavam me tratando tão bem. Quem sou eu na fila do pão, para ser recebido como um rei por eles. Tratamento especial, como os torcedores do Platense fizeram comigo, como foi com meus amigos do Racing. Sinceramente, brasileiro é tratado bem demais pelos argentinos. Senti isso há 15 anos, na primeira vez que vim. E, assim como na partida do Racing x Flamengo, não me deixaram gastar 1 peso que fosse.
Por um motivo especial, neste jogo fui com mochila nas costas. Isso aconteceu porque antes, fui ao Estádio do Vélez Sarsfield, buscar uma camiseta e um cachecol de um amigo, que ele havia comprado pelo site do clube. Assim, levei a mochila para guardar os itens comprados. Ao chegar na porta do Barracas Central, me dei conta de que não iriam me deixar passar com o uniforme do clube de Liniers na mala. O que Ariel fez? Arranjou uma lanchonete de pau a pique para guardarem.
Entramos no jogo, logo comecei a fazer o que eu já havia feito no duelo em Quilmes, o que de fato me deixa feliz dentro de estádios: fotografar e registrar vídeos da torcida alentando e dos meus novos amigos tocando seus instrumentos. Após o primeiro vídeo, Ariel fez um pedido. “Não faça fotos e nem faça filmes dos rapazes da bateria, eles podem ter problemas com isso”. Para bom entendedor, meia palavra basta.
Após começar o jogo, saí da muvuca. Cinco minutos depois, Ariel me ligou e disse para eu voltar. O que ele queria? Minha companhia! Eu juro, era só isso. Por incrível que pareça, fez questão de ficar o tempo todo ao meu lado no jogo. Era um anfitrião, fazendo a questão de que seu convidado de honra estivesse com ele e fosse bem recebido por todos. Conversei com seus primos (Cristian e Francisco), com diversos amigos, como o jovem Tiziano. Resumidamente, queriam entender o que o brasileiro fazia lá, no meio deles.
Um fato me chamou atenção. Um dos rapazes me perguntou se eu também morava na favela no Brasil. Evitei o assunto, porque é triste se pararmos pra pensar. Eles vivem uma dura realidade lá, tanto quanto as milhares de pessoas que moram em favelas pelo Brasil. Sendo realista, me arrisco a dizer que nenhuma pessoa que mora em comunidade no Brasil teria a oportunidade que eu estou tendo aqui, de fazer turismo em outro país. Se parar para pensar, eu sou muito sortudo. Não só pelas oportunidades que tive na vida, mas porque fui a jogos em lugares difíceis aqui. E não tive qualquer preocupação, nenhum problema real, se eu analisar friamente.
Bom, vou confessar. Minha única preocupação durante todo o jogo, era minha mochila. Havia roupas minhas, havia a encomenda de meu amigo. Tudo bem, não era nada de um valor alto, mas… Fato é que ninguém quer perder nada.
Sobre o jogo: 3×0 para o Barracas. Um verdadeiro baile dentro de campo. Fora dele? Carnaval. É isso que eles fazem na arquibancada. O jogo para aqueles rapazes que pulam na arquibancada por 90 minutos, é uma pura festa. É a alegria do seu dia, ou da semana. Dão risadas entre si, cantam pelo seu time, brincam entre eles. Felicidade genuína, como nunca havia visto tão de perto num estádio.
Divertem-se tanto, que acabado o jogo, foram mais 10 minutos lá tocando músicas na chuva, celebrando mais a companhia deles, do que o resultado em si. Saímos, busquei a mochila. Tudo em ordem. Quando dei uma geral, percebi que por besteira minha, todo dinheiro que eu havia trazido para cá, estava nela, num bolso extra. Não me lembrava disso, mas em resumo, metade do que eu trouxe na viagem estava lá, guardadinho. A outra metade, já gastei em choripan, hamburguesa e super pancho.
Saindo de lá, Ariel me reafirmou o convite para o próximo compromisso dos seus músicos: All Boys x Morón, no bairro de Floresta (classe média em Buenos Aires, apenas 5 km de onde estou hospedado). Dei de presente minha blusa corta-vento do São Paulo, aquela que levo para todo lado. Foi difícil, mas fiquei decidido durante o jogo que faria isso. Chegando no Brasil, comprou outra (umas 300 pilas “só”).
O que fizeram os cinco que me levaram ao jogo seguinte, após nos despedirmos de Ariel? Me deram o mesmo tratamento que Ariel me deu. Licha, Lionel, Isaias, Brian e Franco. Os cinco ganharam um amigo para quando quiserem estar no Brasil, serem recebidos da melhor forma.
Lá no Estádio do All Boys, o Isla Malvinas, deixamos as mochilas no carro de um dos integrantes da Barra Brava do clube. Dessa vez, guardei comigo os “trocados” que eu tinha. Uns 800 reais. As roupas ficaram intocadas lá também (e agora estão comigo no aconchego de casa, não se preocupe Ferme). Fomos para o jogo, assisti alguns minutos com eles e resolvi ir ao banheiro. O All Boys perdeu, os torcedores com quem conversei estão seguros que irão cair para a terceira divisão. E, pior do que isso? Choveu. Choveu muito durante o jogo. Eu? Fiquei debaixo da arquibancada, caçando assunto com quem não queria se molhar. Mas, a única coisa que me vinha na cabeça, era o quinteto sinfônico.
Acabou o jogo, encontrei eles. Todos encharcados. Bravos? Nervosos? Cansados? Nada. Estavam felizes, por completarem mais um trabalho com êxito. Eles me deram aula, principalmente porque ainda teriam mais umas 2 horas cada um, de ônibus ou trem até suas casas. E, posso te assegurar uma coisa. Eles não tiveram as mesmas chances do que eu tive nessa vida, mas estavam muito mais felizes tomando chuva do que eu, no coberto esperando o sofrimento dos “Los Albos” acabar. Todos eles são de regiões periféricas da Grande Buenos Aires, mas definitivamente são muito felizes (assim como eu) por poderem fazer aquilo que tanto amam.
Cheguei em casa, recebi uma mensagem do Tiziano (amigo de Ariel). O que ele queria? Que eu fosse visitar o clube do seu bairro. No fim do dia, todos os fanáticos dos times da Argentina, querem fazer com que seu “equipo” seja mais conhecido por um maior número de pessoas. Foi essa conclusão que cheguei nesses dias. Tiziano é do Club Atletico Victoriano Arenas. Um time da quarta divisão da Argentina, que fica em Avellaneda. Tem as mesmas cores do Racing, símbolo até que parecido. O convite está feito para a próxima segunda-feira. Preciso quebrar a cabeça, em como ir até lá, no bairro que é vizinho ao Barracas Central.
Em tempo, para não perder o registro: além dos dois jogos, fui visitar mais cedo o Estádio do General Lamadrid, que fica na Villa Devoto, região Oeste de Buenos Aires. Depois, como já disse, passei pelo José Amalfitani (Estádio do Vélez). E, antes de ir a Barracas, tentei visitar o Estádio do Ferro Carril Oeste. Como no Lamadrid consegui recorrer a “cancha” inteira e tirar fotos, e no Estádio do Vélez já assisti jogo uma vez, meu objetivo único até o fim desta viagem é conhecer melhor o Estádio do Ferro. Sinceramente, depois de tudo que vivi nos últimos dias, já me darei por satisfeito. Já vivi demais! O que vier de experiência em estádio, para mim é lucro.
Estadio do Ferro Carril, em obras
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