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San Lorenzo do céu para o Botafogo. Ou do Inferno

Desnecessário dizer que o glorioso conjunto de Boedo é chamado por muitos de o “Sem Libertadores”. Todos sabem disso na Argentina, por aqui e em toda a América do Sul. Até por isto, ninguém sabe disso fora dessas fronteiras. E não fosse pelo Papa Francisco quase ninguém saberia sequer que existe o San Lorenzo nas terras europeias. Contudo, o Botafogo precisa se preocupar com o Ciclón. Vejamos por quê?

Glorioso do passado contra um candidato a glorioso no presente

Botafogo, por certo, é o detentor das glórias do passado. O clube de Garrincha e Nilton Santos assombrou o mundo em muitas ocasiões do passado, em tempos nos quais o Flamengo ainda engatinhava para se tatuar na mente de todos como uma potência do futebol carioca e brasileiro. Só dava o Bota. Rival mesmo, apenas o Santos. Tempos maravilhosos para a “Estrela Solitária”, mas tempos que se foram.

O noticiário esportivo anuncia o recente “gol mil” do artilheiro Túlio Maravilha. Desses, 30% foram inventados, 30% foram contra times semiamadores do norte de vários rincões do Brasil: norte de Goiás, norte de São Paulo, norte de Minas, norte do Espírito Santo, norte do Norte. 40% dos gols existiram, ou quase, pois um deles foi justamente o que retirou do Botafogo a fome de títulos, em 1985. À época, o árbitro Márcio Rezende de Freitas inventou um gol do artilheiro na final do Brasileirão, contra o Peixe.

Importa dizer que o árbitro era menos ladrão do que ruim: era horrível. Importa dizer que a esquadra botafoguense de 1995 tinha lá alguns méritos indiscutíveis. Convém mais destacar que aquele caneco rompeu com a fome de títulos que contava já 27 anos em torneios nacionais e que já era suficiente para a chacota geral dos rivais ao conjunto da General Severiano. De lá para cá o Botafogo veio passeando, aos solavancos, para se reafirmar como o grande que é. E o retorno à Libertadores de América de 2014 pode ser decisivo.

Também é certo dizer que entre as duas equipes o San Lorenzo se enquadra mais na definição de glorioso do presente. Assim como o Fogão, o conjunto cuervo de Boedo vem se alimentado muito mal tem um bocado de tempo. Não fica com fome por anos e anos, em jejum, mas tem se nutrido de migalhas, que se materializam em canecos que, quando chegam, seus torcedores pouco se lembram do gostinho da última conquista. Foram 13 títulos na elite argentina (isto na época do profissionalismo), dois internacionais: uma Copa Mercosul/2001 e a Sul-Americana/2002. E só.

Responsável por isso é a bagunça. Sim, o clube é igualzinho à maioria dos grandes brasileiros. Graças às suas enormes torcidas conquistam um caneco aqui e acolá. E isto mascara uma desorganização institucional assombrosa. Aqui no Brasil, gigantes desse grupo – que se vendessem tudo o que têm ainda ficariam endividados – conseguem ainda se impor em termos de conquistas (olha o Galo aí, gente…. ). Na Argentina, a recente conquista do Lanús, e até a do Newell’s, que vive atolado em dívidas, mas com uma proposta decente de se moralizar, provam muito bem o que afirmamos (olha o Boca e River aí gente…onde? Alguém vê?). Piada maior que isso é se deparar com manifestações gigantescas da hinchada cuerva, apenas por que um Hipermercado foi construído no terreno que a ditadura tirou do Ciclón. Mas esta não é páreo para outra: a de que esta mesma torcida apaixonada jamais sentiu o gostinho de comemorar um título do maior torneio de clube da América do Sul.

Porém, este cenário está mudando. Não tanto por projetos sérios como o que ocorre no Lanús. Mas pela força da grana “que ergue e destrói coisas belas”. Destrói onde? Para a comunidade cuerva, o tempo é de construção. Assim foi o sentimento geral, após a conquista do último caneco disputado no país. Sentimento alegre, mas tão profundo como o da tristeza e do alívio depositados no coração dessas pessoas na luta também recente do clube para se livrar do rebaixamento. Não fosse pela grana que constrói e o clube cairia. Foi muito dinheiro: vários jogadores e técnicos chegaram, atraídos não pela nota de que o Papa “pop” é cuervo, mas pela grana de Lammens e sobretudo do empresário – “retardado” – Marcelo Tinelli.

A chegada de Pizzi

Todo mundo deu errado por lá. Até que chegou Pizzi. E deu certo. Verdade, mas em termos. O esquema preferido era o 4-4-2, com variação principalmente para um 4-2-3-1 com Piatti e Romagnoli pelos lados e Correa centralizado. Buffarini “Pulmão de Aço” no papel era o guardião do lado direito ante os ataque rivais; na prática, precisava socorrer o ineficiente Romagnoli, perdido numa posição com a qual não tinha a menor intimidade.

E Buffarini usava seu pulmão para arrumar a bagunça no meio-campo, pois os dois homens que protegiam a defesa, Mercier e Ortigoza, ficavam sobrecarregados. E por quê? Dentre outras coisas, pela obrigação de cobrir as falhas defensivas do péssimo Walter Kannemann, na esquerda, e por verem um campo aberto a sua frente e se arriscarem ao ataque, em razão de Correa se comportar mais como um atacante do que como meia. Porém, o time ganhava e encantava. Voltou ao título com Pizzi. Mas para a disputa da Libertadores, foi ótimo para o San Lorenzo que ele desprezou o clube ante a proposta do Valencia. Se mandou para a Espanha na “calada da noite”, deixando nos lábios de muitos a expressão “traidor”. A paixão tem faces e uma delas é a da cegueira. É preciso ver o quanto o clube teve sorte com a saída de Pizzi e o quanto o Botafogo teve azar.

A chegada de Patón Bauza

Diríamos que ele até parece o San lorenzo, se considerarmos as conquistas espaças. Mas concluímos que é um engano se analisarmos o caráter de seus triunfos. Levou o Rosário Central à semifinal da Libbertadores/2001 e levou a inexpressiva LDU à conquista da Libertadores/2008 e Recopa Sul-Americana/2010. Chegou no Ciclón após um momento complicado na Liga de Quito, que passa por transformações institucionais. Chegou e resolveu se retirar com todo o elenco para a belíssima cidade de Los Cardales. Era a sua primeira grande ação em prol da construção de uma possível equipe vencedora.

Retiro em Los Cardales

Bauza é um estudioso de pompa. Um teórico do futebol que faria nossos melhores técnicos ficarem de queixos caídos diante de seu vasto conhecimento sobre todas as coisas. Mano Menezes se assombraria com o trato que o Patón oferece à sua língua materna. Não acreditaria nos detalhes que antigo comandante da LDU lhe daria até mesmo sobre futebol brasileiro. Não estamos falando só em estatísticas, mas da capacidade de Bauza em analisar clubes brazucas do passado e do presente. E o Botafogo por certo é um deles.

Contudo, algo aparentemente corriqueiro chama a atenção: sua proposta em fechar um elenco em torno de uma ideia futebolística.

Esqueçam aquelas fanfarronices como “família Felipão” ou outros refugos mentais tupiniquins. Estamos falando de fazer o jogador se apaixonar e se entregar feito um louco por uma ideia de time, por uma proposta de jogo e por uma posição a ocupar dentro de campo. Polivalentes que se escondam, pois Bauza gosta de cada um cumprindo perfeitamente a sua função. Esgotada a entrega à esta proposta, dentro das quatro linhas, somente então o jogador pode se dar ao luxo de variar um pouco sua atitude tática dentro de campo. De preferência, todos têm de jogar pelo homem-referência, no comando do ataque. A este jogador, o técnico concede o direito de ser apenas o atacante, em alguns casos. O cara vai precisar ser preciso quando os contragolpes rápidos levarem a pelota aos seus pés, na hora da finalização.

Bauza tem verdadeira ojeriza por estrelismo. Prefere até montar elencos com jogadores desconhecidos e simples. Nada de individualidades estremadas ou o cara vai logo para o banco de reservas. Com raras variações, adota o 3-5-2 ou o 4-4-2 dependendo do local onde joga. No Maracanã, vai adotar duas linhas no meio campo, mas com Mercier e Ortizoza na proteção irrestrita à zaga. Acreditem, poucos técnicos conseguem colocar o seu esquema de jogo tão bem nas “cabecinhas” dos jogadores como Bauza.

Isto ocorre porque estamos falando de um homem de ideias e argumentos penetrantes. Juntando isto ao retiro em Los Cardales e a fórmula está praticamente feita e compreendida. Daí a razão por que o técnico chegou em Boedo e se mandou com o elenco para a pequena e belíssima cidade argentina.

Foi a pré-temporada dos sonhos para o Patón. Do pesadelo para o elenco cuervo pois, de certa forma, uma verdadeira lavagem cerebral (para o bem ou para o mal) foi processada na sua memória individual e coletiva. Da pré-temporada voltou um time que pouco a pouco não terá absolutamente nada a ver com a equipe de Pizzi. E a principal mudança foi na mentalidade. Um dos realces foi dado à autoestima do elenco e à compreensão de que a grandeza do San Lorenzo legitima o sangue derramado em campo em prol de uma conquista internacional. No plano tático, a principal modificação foi na defesa. Ponto fraco na era Pizzi, ela será o centro nervoso do time, com a perfeição das bolas aéreas e com a precisão na perseguição e retirada dos espaços aos atacantes, quando eles frequentarem as proximidades da área de Torrico.

Analisando o time que entra em campo contra o Bota, o clube carioca vai ter de se ater ao jogo paciente do Patón. Vai ser contra-ataque sempre que possível e à medida que os brasileiros se desesperarem no jogo. É cotejo para poucos gols, mas eles podem sair tanto para um time como para outro. Em teoria, apenas o Ciclón ficaria feliz com um 0-0. O Botafogo, não. Mas na prática, não seria ruim para o Fogão que não perdesse em sua estreia nesta fase para o San Lorenzo. Se perder, terá de rever seus planos e se enquadrar na luta pela segunda vaga do grupo. O efeito psicológico disto pode ser decisivo para o clube carioca abandonar o torneio ao fim da fase atual.

No fim do túnel uma luz: para o Botafogo

No único jogo importante desde que chegou, o San Lorenzo perdeu. Visitante em Bahía Blanca, o time de Bauza foi derrotado pelo Olimpo por 2-0 na estreia do Torneio Final. Nada disso de que era um jogo qualquer diante da esteia na Libertadores. Não foi por isso que perdeu, mas por uma situação que pode ser benéfica para o Botafogo: o esquema Bauza ainda não fez o devido efeito na mente do elenco azulgrana. Falta aproximação entre as linhas, falta compactação no setor defensivo e as falhas das bolas aéreas, ponto forte de Bauza, ainda estão presentes. Os dois defensores centrais ficam muito próximos de Torrico e não contam ainda com o chegada dos laterais para comporem a defesa. Os dois protetores da zaga, Mercier e Ortigoza, estão distantes, sem entenderem bem se ainda estão sob o comando de Pizzi ou de Bauza.

Falta entendimento sobre a proposta e o time sonhado pelo treinador vai precisar amadurecer durante a competição. Neste sentido, tudo pode acontecer no Maracanã. O caráter do jogo pode esquentar as ideias de Bauza na “cabecinha” do elenco” ou pode esfriá-las ainda mais. Disto pode surtir uma boa vitória da esquadra carioca ou uma apertada, mas vital vitória da equipe argentina. De qualquer forma, e a despeito de ser a estreia do Fogão na fase de grupos, este é o melhor momento para o conjunto brasileiro encarar o mais complicado rival do Grupo 2 da maior competição entre-clubes da América Latina.

Joza Novalis

Mestre em Teoria Literária e Lit. Comparada na USP. Formado em Educação e Letras pela USP, é jornalista por opção e divide o tempo vendo futebol em geral e estudando o esporte bretão, especialmente o da Argentina. Entende futebol como um fenômeno popular e das torcidas. Já colaborou com diversos veículos esportivos.

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