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O Papa é Copa: 10 anos da canônica Libertadores do San Lorenzo

“Porque isto é algo mais do que uma simples partida, bastante maior do que uma complexa Libertadores. Isto não é só futebol, um esporte lindo que cativa o mundo. Na Argentina, 90% das pessoas se tornam torcedores de uma equipe por influência paterna. Teu pai te faz de um time, te compra a camiseta e sela para o resto da tua vida um pacto de cumplicidade indestrutível. E muitos desses pais que viraram avós, ou ficaram como pais, muitos desses já não estão e então neste instante de malefício quebrado, de feitiço voado pelos ares, de gozações sepultadas para sempre, os pensamentos vão direto até eles. Expressou isso com palavras exatas o presidente Matías Lammens no mesmo meio-dia da final, na apresentação feita pelo patrocinador oficial da Libertadores. ‘Sentimos muitos nervos, mas também estamos atravessando emoções pessoais difíceis de expressar’, se comoveu, pensando em seu pai, falecido quando era muito garoto. Marcelo Tinelli também chorou por dentro evocando seu pai, que já não está. Se simboliza neles dois, que são a cabeça do clube. Mas quando ocorre um feito tão extraordinário como este, um acontecimento batismal deste calibre, se multiplica em milhares de casos. Não deve ter existido um só torcedor do San Lorenzo que na gélida meia-noite desta quarta-feira (…) não soltasse uma lágrima ou apertasse um punho pensando em seu pai, em seu avô, em seu padrinho, no bendito homem que os cruzou de azul e vermelho para sempre. Esses segundos de conexão são um modo de agradecer, de devolver-lhes o favor. Por isso lhes custas tanto de desatar. Não lhes sai o grito”.

As palavras acima, publicadas na edição especial em que a revista El Gráfico lançou sobre quando a sigla CASLA passou a significar apenas Club Atlético San Lorenzo de Almagro e não mais também a piadinha Club Atlético Sem Libertadores da América soam ao mesmo tempo atualíssimas e, ao mesmo tempo, algo irônicas. Atualíssimas porque, há cerca de apenas três meses, viralizou-se exatamente pelo lado “não é só futebol” os registros de torcedor sanlorencista virado aos céus numa arquibancada do Nuevo Gasómetro, festejando com a memória de algum ente querido já em outro plano, um triunfo de Libertadores (contra o Liverpool uruguaio, no caso). E a ironia, captada pelo Futebol Portenho nos dias seguintes àquele 13 de agosto de 2014, é que o personagem principal da redenção azulgrana no torneio é filho (pródigo?) justamente de um torcedor do tradicional rival do Ciclón. Nos dez anos da glória cuerva em La Copa, alcançada às custas de três torcidas brasileiras, vale resgatar nosso material da época e complementa-lo ao daquela edição especial.

Prólogo

“Como o San Lorenzo quase perdeu a Libertadores”, nota publicada em 15 de agosto de 2014, não se referia a algum lance de perigo adversário na decisão encerrada já nas primeiras horas do dia 14. A bem da verdade, a final foi justamente o capítulo mais tranquilo da trajetória do Sanloré campeão continental. A nota em questão compilava diversas outras reportagens do Futebol Portenho pelos dois anos anteriores, retratando as desventuras vividas pelos bairros de Bajo Flores (onde se situa o estádio Nuevo Gasómetro) e Boedo (cujo terreno do primeiro Gasómetro veio a ser devolvido exatamente naqueles tempos ao clube, ali originado), os redutos portenhos mais ligados ao Ciclón.

É que, dois anos antes de vencer a América, o San Lorenzo flertava seriamente com o rebaixamento – teria sido o segundo de sua história. Já estavam no plantel algum dos componentes da ressurreição: Julio Buffarini chegara em março de 2012, exatamente sob ajuda dos sócios do clube. Um mês depois, o então treinador Leonardo Madelón não resistiu à série desanimadora de resultados e era noticiado o racha interno do elenco. Contexto em que a necessidade de “lavar a roupa suja” ganhava contornos literais: Néstor Ortigoza, o iluminado autor do gol do título continental, chegara a publicamente reclamar em junho de 2012 que os jogadores, sob precariedade estrutural, precisavam treinar com uniformes não lavados.

A postagem que viralizou há alguns meses e complementa a introdução dessa nota

Se Buffa chegara em março de 2012 e Orti aparecera no ano anterior, Leandro Romagnoli voltara ainda em 2009. Embora seu pai Atilio Romagnoli tenha jogado no rival Huracán e seja assumido torcedor desse vizinho, a ponto do meia ter mesmo se testado nos infantis huracanenses, em El Pipi (a pronúncia é Pípi) a influência materna falou mais alto para que ainda nos anos 90 ele se projetasse como azulgrana. Em tempos em que o San Lorenzo era o gigante sem qualquer título internacional, Romagnoli orquestrou os primeiros: a Copa Mercosul 2001, emendada na Sul-Americana 2002. Angústia amenizada, mas nunca encerrada por completo enquanto a Libertadores não chegasse.

O meio-campista voltara do Sporting Lisboa para ser “um dos últimos pratas-da-casa pelo qual vale a pena pagar um ingresso”, contextualizava em 2012 outra edição especial de revista El Gráfico – a que escolhia os cem maiores ídolos do San Lorenzo, revista em cuja capa Romagnoli era o único membro daquele ciclo 2001-02, e, ainda assim, deslocado em um canto. Quando Romagnoli chegara, seu time do coração vinha de boas campanhas recentes: campeão em 2007 sob a batuta de revelação Ezequiel Lavezzi e do temperamental treinador Ramón Díaz, sonhara em festejar o centenário em 2008 com a inédita Libertadores. Lavezzi havia saído, mas bem substituído pelo astro D’Alessandro e mais gente renomada. Mistura argentina de Faustão com Ratinho, o apresentador Marcelo Tinelli, mencionado no parágrafo inicial, se projetava para além de torcedor famoso, se enveredando na administração sanlorencista como mecenas e, gradualmente, cartola oficial.

Houve uma epopeia com dois homens a menos para causar um silêncio atroz em pleno Monumental diante do River, mas no mata-mata seguinte o CASLA seguiria sendo o Club Atlético Sem Libertadores da América: a LDU Quito, treinada pelo argentino Edgardo Bauza, frustrou a plateia cuerva nas quartas-de-final. Foi a vez de D’Alessandro partir e iniciar sua vitoriosa trajetória no Internacional, mas já sem ele quase que o centenário pôde ser comemorado com título. O Apertura 2008 precisou de um triangular extra do Sanloré com o Tigre e o Boca, que acabaria campeão. No torneio seguinte, o Clausura 2009, o 11º lugar sinalizava o desânimo. O regresso de Romagnoli era a resposta e, em primeiro momento, o 7º lugar no Apertura 2009 mascarava que o time ficou apenas dois pontos abaixo do pódio.

Só que a andorinha, sozinha, não fazia verão por muito mais tempo. O Clausura 2010 viu um 15º lugar, emendado com o 14º tanto no Apertura 2010 como no Clausura 2011, marcado pelo descenso do River. O sinal amarelo da situação do gigante de Núñez não pareceu observado: o 17º lugar no Apertura 2011 pulverizava de vez, na tabela de promedios, a campanha quase campeã de 2008. O Clausura 2012 começou com o time sob risco real de queda. E, naquele semestre tumultuado, um primeiro milagre com o filho pródigo veio em maio: o Newell’s abriu 2-0 em pleno Nuevo Gasómetro. Em tempos em que o torcedor mais famoso do Ciclón era Viggo Mortensen, o próprio intérprete de Aragorn quase foi detido em um aeroporto por comemorar demais a epopeia regida por Romagnoli, cujo cérebro construiu as jogadas do primeiro e do terceiro gol da espetacular virada arrancada a fórceps no segundo tempo.

Kannemann, protagonista da imagem que abre a matéria, festejava dois anos antes a permanência na primeira divisão: pior para o favorito Instituto, do garoto Dybala

Mas veio junho e, junto, a confirmação de que o clube precisaria jogar repescagem para safar-se do rebaixamento. Já era muito: na maior parte do semestre, os cuervos estiveram na zona de rebaixamento direto. Romagnoli, ainda assim, vociferava no dia 20: “setores da imprensa e dirigentes da AFA querem o San Lorenzo na B Nacional“. O oponente na repescagem foi o 3º colocado da segunda divisão de 2011-12: o Instituto de Córdoba, da revelação Paulo Dybala e dono do melhor futebol do país naquela temporada, na opinião de Riquelme. Mas os cordobeses vinham sob espiral descendente e foram abatidos com relativa facilidade nos duelos. Nada que desse tranquilidade real aos sobreviventes, que dali a uma quinzena viram demissão coletiva de dirigentes.

Foi nesse vácuo de poder que o barco terminou assumido por Tinelli e Matías Lammens, os cartolas mencionados no início. Por conta dos promedios, a tônica da temporada 2012-13 seguiria sendo a luta para não cair, missão complicada desde o início: já em agosto de 2012, Romagnoli rompeu os ligamentos do joelho. O reforço veio dos céus: em março de 2013, o Vaticano fez de Jorge Mario Bergoglio o novo torcedor mais ilustre do clube, no conclave que o elegeu como Papa Francisco. Até os ateus reconheceram o peso psicológico dessa injeção anímica e da gestão azeitada da dupla Lammens-Tinelli; o 12º lugar do Clausura 2012 e o 11º lugar no Apertura 2012 viraram um 4º lugar (a três pontos do vice) naquele Clausura 2013 transcorrido em paralelo ao início do novo papado.

Encerrada a temporada 2012-13, advertíamos, em julho de 2013: “um grande time está sendo montado em Boedo”. Uma das caras novas naquela temporada havia sido Juan Mercier, que reeditava com Néstor Ortigoza uma dupla de volantes campeã em 2010 no último título do Argentinos Jrs. Fase que fizera El Pichi Mercier inclusive ser convocado por Maradona para alguns daqueles amistosos de seleções argentinas caseiras. Dieguito posteriormente o treinara também no futebol dos Emirados Árabes e recomendara o veterano de 34 anos, logo comparado a Mascherano, então no auge do prestígio – afinidade que Mercier, naquela El Gráfico pós-Libertadores, minimizava com humildade: “não tenho o passe largo e interior que ele dá, eu trato de estar bem parado, olhar o jogo, prestar atenção para seguir a jogada e dar a bola quem esteja melhor posicionado; esse é o meu básico. Antes abusava dos chutões; de dez bolas que tinha nos pés, era capaz de atirar nove petardos. Hoje, talvez atire somente dois”.

A imprensa entendia que “não inventa uma genialidade em três quartos do campo, mas tem sim a capacidade de limpar o jogo e dar o primeiro passe para iniciar o ataque”, já trabalhando desde os idos de 2023 em começar as jogadas para que Romagnoli ou os jovens Ángel Correa e Héctor Villalba tratassem de conduzi-las à frente para as conclusões de Martín Cauteruccio e Ignacio Piatti. Este logo se sagraria o principal homem-gol do segundo semestre de 2013. O protagonista que havia escapado do nosso diagnóstico fora o goleiro Sebastián Torrico. Que, como Mercier, também já tinha 34 anos e passagem marcante pelo Argentinos Jrs, embora calhasse de não integrar o time colorado campeão em 2010. E que, a bem da verdade, só trabalhara em duas partidas na temporada 2012-13 inteira.

Romagnoli ainda “só” em um canto na capa da revista El Gráfico que, em 2012, elegeu os cem maiores ídolos do San Lorenzo. Só o outro de calça azul jogou no Bahia: é Sanfilippo

Torrico se forjara inicialmente em jogos provinciais de sua Mendoza natal: os ignotos clubes YPF e Andes Talleres foram conciliados respectivamente com a escola e o início da faculdade de sociologia. Aos 19 anos, em 1999, deu seu salto para o Godoy Cruz, uma das principais forças locais. Integrara o elenco que chegara à primeira divisão em 2006, ainda que rebaixado instantaneamente em um primeiro momento. Subiu novamente em 2008, quando, na sequência, passou ao Argentinos Jrs. Àquela edição especial da El Gráfico, reconheceu que apenas no Argentinos, já com oito temporadas de carreira profissional, é que começou a ser orientado devidamente, corrigindo algumas falhas na hora de agarrar a bola, como cair e levantar e até como se posicionar. Também se fogueou no continente, na campanha semifinalista da Sul-Americana. Mas enquanto Mercier e Ortigoza davam a volta olímpica do Clausura 2010, Torrico estava de volta ao Godoy Cruz, justamente um dos concorrentes ao título.

O goleiro, todavia, não foi figura ativa naquela surpreendente campanha do Godoy Cruz, chegando a ausentar-se por nove meses. Foi como reforço bom e barato que chegara ao San Lorenzo, emergencialmente: o goleiro titular Pablo Migliore encontrava-se simplesmente PRESO e o reforço havia sido contratado inicialmente por apenas dois meses. A titularidade veio no decorrer daquele segundo semestre de 2013, inicialmente marcado pelo tropeço em outubro, com o humilhante 3-0 aplicado pelo Arsenal na final da Copa Argentina. Sem desandar, o Ciclón, então treinado por Juan Antonio Pizzi, assumiu a liderança do campeonato argentino em novembro. E, em dezembro, voltou enfim a ser campeão – em duelo direto com o Vélez, o clube contra quem desde os anos 90 os encontros vinham ganhando aura de clássico.

Já dedicamos este outro Especial para o título do Torneio Inicial 2013, assegurado por defesas miraculosas de Torrico contra os velezanos. O goleiro, acompanhado do veterano zagueiro Mauro Cetto (integrante da Argentina campeã mundial sub-20 de 2001 em casa, junto de Romagnoli), dos cartolas Tinelli e Lammens, logo esteve na Santa Sé (em 18 de dezembro) para presentear as luvas ao Papa. Que as benzeu, pedindo em contrapartida: “vamos por outro milagre”. Se o Sumo Pontífice foi implícito, o filho pródigo foi taxativo: “quero ganhar a Taça Libertadores, não há meio termo”, impunha em conversa com El Gráfico na edição de janeiro de 2014, da qual foi capa. “Não basta chegar às semifinais e perde-las. Tomara que o San Lorenzo a possa ganhar algum dia, seja eu jogador, treinador ou um torcedor a mais”.

Não precisou-se esperar tanto, Pipi. Faltavam apenas sete meses…

Bastidores: em 1995, Marcelo Tinelli (o homem mais à esquerda) era só um convidado ilustre na festa do fim do jejum de 21 anos sem títulos na primeira divisão – destaque ao brasileiro Silas. Em 2014, era o cartola dono da festa

Fevereiro a abril de 2014: saindo outras duas vezes da extrema unção

Técnico campeão de 2013, Pizzi surpreendentemente preferiu deixar o cargo. Lammens e Tinelli o substituíram pelo carrasco daquela agridoce Libertadores 2008 – Edgardo Bauza, que, além de ter conduzido naquele ano o primeiro título equatoriano no continente, havia sido semifinalista da edição 2001 com o seu Rosario Central da coração. El Patón Bauza manteve a espinha-dorsal, mas isso não significou ausência de oscilação.

Como bem pontuaria Torrico à El Gráfico pós-título, a primeira coisa que Bauza queria era justamente que se encontrasse equilíbrio. “A partir daí, fomos inteligentes para estar ordenados e pujantes ao criar situações. Entendemos como atacar e como defender. (…) Sua experiência foi importante, porque ele havia vivido etapas decisivas na Libertadores que muitos de nós estávamos vivendo pela primeira vez. Então, tínhamos uma ferramenta a mais ao escuta-lo”.

E como esse equilíbrio demorou. Como enfatizado na mesma revista, até o título “houve condimentos de todo tipo: sofrimento, dramatismo, atuações inesquecíveis, uma pitadinha de sorte em momentos chave, golaços, rivais de todos os calibres, notáveis atuações individuais, um apoio comovente de sua torcida e, fundamentalmente, argumentos futebolísticos para superar todos as armadilhas e terminar como o que é: um grande campeão”.

Sobre aquele começo angustiante, as palavras da El Gráfico começavam por dissertar que “se sabe que no futebol não há nada mais traiçoeiro que os pré-julgamentos. E o San Lorenzo viveu isso na própria carne durante as seis partidas que disputou no marco do Grupo 2. Comparando a categoria individual dos elencos e a hierarquia de um treinador experiente como o Patón Bauza, era muito fácil imaginar uma cômoda classificação azulgrana em seus cruzamentos com Botafogo, Unión Española e o desconhecido Independiente del Valle. Mas a realidade deu uma rápida cacetada no clube de Boedo. E o submergiu em um tobogã do qual pôde se safar por milagre”.

Postagens que o San Lorenzo fez hoje no antigo twitter: um dos pênaltis que Torrico defendeu do Grêmio; e o comandante Bauza, cujo Alzheimer infelizmente já lhe retirou há alguns anos as lembranças de 2014…

O Futebol Portenho, por sua vez, se aquecia com as seguintes matérias:

10-02-2014: Elementos em comum entre Botafogo e San Lorenzo (Caio Brandão)

10-02-2014: San Lorenzo deve enfrentar o Botafogo com três volantes (Tiago de Melo Gomes)

11-02-2014: San Lorenzo do céu para o Botafogo. Ou do Inferno (Joza Novalis)

“A primeira escala foi no Rio de Janeiro, para enfrentar o Botafogo, no Maracanã. A priori, o choque entre os dois candidatos a ficar com o passaporte às oitavas-de-final. O que aconteceu? Que o San Lorenzo esteve longe de sua melhor versão, perdeu quase sempre o combate no meio, lhe custou gerar jogo e caiu inquestionavelmente por 2-0″. Os cariocas, de volta à Libertadores após dezoito anos, já estavam sem Seedorf, que antecipara a aposentadoria diante da tentadora proposta de treinar o Milan. Mas venceram, inclusive com gol argentino, do tanque Juan Carlos Ferreyra e em chute de fora de Wallyson.

O milagroso Torrico se mostrava humano: no primeiro, rebatera as bolas nos pés do atacante e, no outro, sequer viu uma bola arriscada de longa distância. Ainda sem azeitar a máquina, Bauza tinha a coragem de colocar no banco o ídolo Romagnoli. “Foi uma Libertadores especialmente difícil para ele”, atestaria, de fato, aquela El Gráfico pós-título, enquanto o Futebol Portenho destrinchava abaixo:

11-02-2014: Botafogo ganha fácil do San Lorenzo (Joza Novalis)

21-02-2014: O plano de Bauza (Joza Novalis)

26-02-2014: Romagnoli no banco (Joza Novalis)

O golaço de Wallyson: contra o Botafogo, o campeão estreou bastante apático

Vale contextualizar que, naqueles tempos, o Independiente del Valle era apenas um nome folclórico ao grande público da Libertadores, a ponto de sua exibição no Nuevo Gasómetro pela segunda rodada do grupo ser considerada surpreendente pelo Futebol Portenho, no primeiro link abaixo. A El Gráfico reconheceu que “sem alcançar uma atuação de alto voo, se elevaram os níveis individuais e coletivos e se conseguiu uma vitória tão apertada como essencial (1-0, com a assinatura do Angelito Correa), que permitia equilibrar o barco com respeito à rodada inicial”.

Na jogada, aos 10 minutos do segundo tempo, Mercier roubou uma bola e a tocou para Villalba, com faro para pegar no contrapé um momento desarrumado da defesa equatoriana para cruzar a Correa. Vieram então jogos seguidos contra a Unión Española – primeiramente, na Argentina. Aos 20 minutos, Torrico deu um chutão e, na disputa aérea, Mauro Mattos subiu mais. A bola sobrou a Correa, o garoto que o tempo confirmaria como a principal revelação dos campões: Angelito passou por dois chilenos e, já na grande área, atraiu sozinho a marcação de cinco deles. Perdeu o equilíbrio e a bola, mas foi a vez de ela sobrar para Matos pôr o Ciclón em vantagem.

Um novo triunfo protocolar pelo placar mínimo conseguia vigorar até sete minutos do fim, quando veio mais um gol argentino. Mas não foi de Ignacio Piatti, o outrora artilheiro que seguia sem desencantar na Libertadores, a ponto de ter sido substituído ainda no início do segundo tempo por Héctor Villalba; nem de Nicolás Blandi, que, na pequena área, cabeceou fraco para a defesa de Diego Sánchez. E sim de um argentino naturalizado chileno: no rapidíssimo contra-ataque em pé em pé após aquela chance desperdiçada por Blandi, Gustavo Canales pôde concluir sem goleiro para empatar. O mesmo Canales também assinou, dali a uma semana, vitória por 1-0 dos donos da casa em Santiago – em cabeceio certeiro a chuveirinho providenciado por outro argentino, Cristian Chávez.

A derrota de 1-0 inclusive fora enganosamente generosa: “os transandinos foram muito superiores, transformam Torrico em destaque”, reconheceu aquela El Gráfico pós-título, a resumir que “para apertar a classificação, necessitaria jogar a vida na altura de Quito, não podia dar-se ao luxo de perder pontos frente o Independiente del Valle. E isso se deu da maneira mais dolorosa possível… por quê? Porque depois de jogar uma partida ‘inteligente’ e dar sair ganhando de 1-0 por um cabeceio de Blandi, sofreu outro amasso no terceiro minuto de tempo acrescido, quando Emmanuel Más cometeu pênalti evitável em Guerrero e invadiu a possibilidade do empate que selou Sornoza”.

Quando a eliminação parecia certa: San Lorenzo para cima de Carlos Amarilla após o pênalti no minuto final de acréscimo contra o Del Valle, em Quito

Como se não bastasse, Romagnoli foi expulso (após o apito final, na presumível discussão acalorada dos argentinos para cima da arbitragem) e pegou uma suspensão de quatro partidas; Héctor Villalba teria a missão de substituir El Pipi. Bauza assumiria honestamente que, nos primeiros dias após aquele empate no Equador em 27 de março, se dava por eliminado. Marcelo Tinelli também. Como pontuado pela El Gráfico pós-título, o comentário do cartola de que “o importante é joga-la todos os anos, assim temos mais chances de ganha-la” para tentar acalmar o vestiário soava implicitamente como reconhecer que se sentiam já fora do páreo.

Um primeiro milagre veio à distância: no complemento daquela quinta rodada, ocorrido apenas em 2 de abril, a Unión Española soube arrancar dentro do Maracanã um 1-0 sobre o Botafogo. Canales, sempre ele, converteu pênalti e classificou por antecipação os chilenos e faziam os cariocas estacionarem nos 7 pontos contra 5 cada dos argentinos e do Independiente del Valle. As desventuras em La Copa vinham se compensando no Torneio Final, então liderado pelo San Lorenzo naquele início de abril. Com a sobrevida proporcionada com a derrocada botafoguense (os alvinegros desandariam a ponto de terminarem rebaixados ao fim daquele ano), a notícia ruim seria o desfalque também de Blandi (com contratura na coxa direita) para um virtual mata-mata com os brasileiros, o primeiro da saga.

Embora a Unión Española já estivesse classificada, já se presumia que ela, jogando em casa, não seria derrotada pelo Del Valle. A segunda vaga do grupo parecia se concentrar de modo mais palpável no duelo direto reservado ao Nuevo Gasómetro, com os visitantes jogando pelo empate. Abaixo, um pouco desses andamentos registrados pelo Futebol Portenho.

27-02-2014: San Lorenzo vence apertado o Independiente del Valle na Libertadores (Victor Limeira)

27-03-2014: San Lorenzo empata no Equador em jogo polêmico (Victor Limeira)

04-04-2014: De volta para Boedo (Joza Novalis)

06-04-2014: San Lorenzo lidera Torneio Final antes da decisão contra o Botafogo (Rodrigo Vasconcelos)

07-04-2014: San Lorenzo perde três jogadores para a decisão contra o Botafogo (Thiago Henrique de Morais)

08-04-2014: Argentinos na Liberta: outro capítulo decisivo (Joza Novalis)

10-04-2014: Noite histórica no Nuevo Gasómetro termina em festa (Tiago de Melo Gomes)

Correa festeja com Villalba o primeiro gol sobre o Botafogo

Então, depois que “os torcedores azulgranas comeram os cotovelos vendo a vitória da Unión Española contra o Botafogo, no Rio, (…) puseram à prova seu coração na noite mais fantástica da Libertadores, a de 9 de abril, quando o San Lorenzo recebeu os brasileiros com a obrigação de ganhar por boa diferença e a Unión Española fez o mesmo em Santiago com o Independiente del Valle, para protagonizar uma partida de loucos. Porque os equatorianos ganharam por 5-4, porque mudou de dono várias vezes e porque se o Independiente houvesse feito mais um gol, deixava de fora o San Lorenzo, que selou seu 3-0 (Villalba e dois de Piatti) no minuto 88. A Unión Española ganhou o grupo com 9 pontos, um a mais que o San Lorenzo e o Independiente del Valle. Mas o Ciclón foi segundo por ter um gol a mais de saldo. Milagroso, verdadeiramente”.

O resumo acima da El Gráfico pós-título já permite inferir o redemoinho que foi o segundo tempo daquela noite copeira. Porque, ao fim do primeiro, o jogo em Santiago estava no 1-1 e o de Buenos Aires, apesar do amplo domínio sanlorencista, ficara somente na incerteza do 1-0, arrancado aos 28 minutos – com sorte de campeão: um erro de Jorge Wagner na saída de bola a fez chegar a Villalba, que arriscou um chute forte que, desviando em Júlio César, enganou o goleirão Jefferson.

Na etapa complementar, então Nacho Piatti enfim reapareceu com bola na rede, acertando logo aos 8 minutos um tiro de esquerda. O que parecia uma classificação tranquila, todavia, viu a disputa deixar de ser “brasentina” para se direcionar entre os cuervos e Del Valle, que surpreendia com um triunfo de 3-1 em solo chileno. Pelo saldo de gols, era necessário ao Sanloré arrancar mais dois diante dos visitantes se o placar no jogo paralelo se mantivesse. Não se manteve, mas sob um prisma cada vez mais favorável ao Papa: em espaço de treze minutos, a Unión Española foi achando um gol atrás de outro a ponto do 2-0 na capital argentina já se tornar o suficiente, diante da incrível virada para 4-3 após Canales converter um pênalti já no minuto 72.

Três minutos depois da virada chilena, porém, Daniel Angulo anotou simplesmente seu quarto gol na noite para os equatorianos, resultado que mantinha a classificação argentina… por outros dois minutos mais, quando Junior Sornoza, de pênalti, remontou a remontada: Del Valle 5-4. O que significava que os comandados de Bauza teriam pouco mais de dez minutos, mais alguns acréscimos, para encontrar mais um gol, em função do saldo. Matos, aos 42, até driblou Jefferson, mas chutou para fora. Piatti, porém, se reencontrou como talismã, concluindo um contra-ataque para fuzilar um dos três goleiros convocados pela seleção brasileira à Copa do Mundo. Detalhe não menor: foi a única partida da primeira fase em que o ataque azulgrana, mesmo desfalcado de Romagnoli, conseguiu mais de um gol.

O San Lorenzo campeão nasceu no último jogo da primeira fase

Ainda assim, aquele segundo gol do reaparecido Nacho, embora retirasse o respirador artificial, não livrava totalmente o CASLA da terapia intensiva: é que, como pontuado pela El Gráfico, depois do apito final no bairro de Bajo Flores ainda “precisou-se sofrer e rezar para que os equatorianos não metessem um mais na Unión Española. Nesses 4 ou 5 minutos, o San Lorenzo esteve nas mãos de Deus. Pequeno detalhe: Deus (ou ao menos seu enviado na terra) é torcedor do San Lorenzo. Não lhes podia falhar”.

Mais La Copa no Brasil antes da Copa no Brasil: Grêmio e Cruzeiro

Segundo o profeta Juan Román Riquelme, a Libertadores só começa no mata-mata. Provérbio pertinente a quem pegaria justamente a equipe da segunda melhor campanha na fase de grupos, o Grêmio. Enquanto o Futebol Portenho relembrava até quem havia jogado nas duas equipes, as diretorias se uniam para homenagear um dos ilustres nomes em comum – Oscar Ortiz, vencedor da Copa do Mundo de 1978, apareceu no círculo central no Nuevo Gasómetro para receber as duas camisas.

Eis algumas outras matérias de aquecimento ao encontro:

11-04-2014: Cruzamento permite até três argentinos nas semi da Libertadores (Thiago Henrique de Morais)

14-04-2014: Outra boa notícia em Bajo Flores, Cauteruccio está de volta ao Ciclón (Joza Novalis)

21-04-2014: Ignacio Piatti é dúvida para jogo contra o Grêmio (Bárbara Gonçalves)

23-04-2014: San Lorenzo arma arapuca ofensiva para o Grêmio(Joza Novalis)

23-04-2014: Elementos em comum entre Grêmio e San Lorenzo (Caio Brandão)

A El Gráfico, sem precisar referir-se a Riquelme, por sua vez reconheceu que depois de ter se safado da primeira fase, “o San Lorenzo se revitalizou. Foi como se, internamente, alguém houvesse acionado um botão para transformar a autoestima de todos e, dessa vez, galvanizar a identidade da equipe. Porque desde o cruzamento das oitavas-de-final, nada menos que frente o Grêmio, futebolisticamente o San Lorenzo foi o San Lorenzo que imaginávamos todos. A equipe capaz de impor sua personalidade e sua hierarquia em qualquer campo e contra qualquer rival”.

A exemplar homenagem mútua de San Lorenzo e Grêmio a Oscar Ortiz, vencedor da Copa do Mundo de 1978

“De grande caminhada na fase de grupos, o Grêmio executou um planejamento aguerrido no Nuevo Gasómetro. Se moveu em bloco, com as linhas bem juntas, e impediu que o San Lorenzo bordasse seu futebol com comodidade. Mercier e Ortigoza jogaram uma partidaça. E foi Pichi quem habilitou Correa para que marcasse o gol da vitória. Uma vitória que foi sofrida porque os brasileiros apertaram no final e tiveram um tiro livre perigosíssimo, que não puderam aproveitar. Bastaria com essa vantagem para se classificar em Porto Alegre? Essa era a grande dúvida…”, prosseguia a revista pós-título.

Como curiosidade, vale mencionar que Walter Kannemann fez, diante do clube com o qual mais se identificaria na carreira, justamente a sua estreia naquela campanha campeã. O zagueiro entrou no minuto 68 no lugar de Piatti, tendo tempo para levar um cartão amarelo no 88. Pelo restante do torneio, Kannemann conseguiria ser um 12º jogador, entrando regularmente nos segundos tempos. Ele e colegas puderam encerrar a invencibilidade gaúcha naquela edição, mas para o jogo de volta algum favoritismo remanescia com os tricolores.

A retranca armada por Bauza aguentou até perto do fim, quando o futuro ídolo palmeirense Dudu forçou decisão por pênaltis. Onde os argentinos falharam… mas ambos gremistas – Hernán Barcos e Matías Rodríguez pararam em Torrico, que no tempo normal “já se destacara por defender três gols certos”, pontuaria a El Gráfico. Do lado visitante, Ortigoza, Matos, Blandi e Buffarini prevaleceram sobre Marcelo Grohe. Vale a observação complementar da El Gráfico sobre aquela noite na Arena:

“O Grêmio foi muito agressivo em sua casa. Parou suas linhas mais adiante, pressionou e gerou situações. Como esquecer, por exemplo, a salvada em cima da linha de Buffarini no tiro de cobertura de Barcos? Mas o San Lorenzo teceu uma boa teia de aranha defensiva e só claudicou a 7 minutos do final, quando um cabeceio de Dudu pôs o 1-0 que derivou na definição com tiros desde a marca do pênalti. Nesse momento crucial, apareceu Torrico, o homem que havia presenteado suas luvas ao Papa Francisco e que a reluziu como se tivesse um dom divino, defendendo dois arremates para que o San Lorenzo, de execuções perfeitas, se impusesse por 4-2. Um grande candidato ficava no caminho, mas no horizonte azulgrana se recortava outro: o Cruzeiro, o rival das quartas-de-final”.

Buffarini erguido após converter o pênalti da classificação na Arena do Grêmio

As quartas-de-final no horizonte também mudaram por completo o panorama doméstico. Outrora líder do Torneio Final no início de abril, o San Lorenzo abriu mão de possível bicampeonato seguido (algo que segue sem lograr desde 1972) em prol do ineditismo, preferindo usar reservas nos compromissos pela liga argentina. Alternância bem pontuada pelo Futebol Portenho nas matérias abaixo:

24-04-2014: San Lorenzo vence e tira invencibilidade gremista (Victor Limeira)

26-04-2014: San Lorenzo empata e se distancia do título (Tiago de Melo Gomes)

01-05-2014: San Lorenzo elimina o Grêmio com “ajuda” de Torrico e Barcos (Rodrigo Vasconcelos)

03-05-2014: Com suplentes, San Lorenzo vence o Atlético Rafaela (Thiago Henrique de Morais)

Após eliminar a melhor equipe da primeira fase, era vez do tira-teima do campeão argentino como o campeão (e logo bicampeão seguido) brasileiro, aquele eficiente Cruzeiro de Fábio, Dedé, Dagoberto, Everton Ribeiro, Júlio Baptista, Marcelo Moreno, Ricardo Goulart… mas amplamente superado no gramado do Nuevo Gasómetro, com o magro 1-0 não refletindo fielmente o volume muito maior de jogo dos argentinos. Embora o resultado fosse justo pela noite de péssima pontaria dos donos da casa, especialmente do irregular Piatti. Mas quem também não estava nas noites mais felizes era o Dedeckenbauer, que na véspera amargara a ausência na convocação do Brasil à Copa do Mundo.

Dedé primeiramente cometeu aos 19 minutos do segundo tempo a falta que resultaria no único gol. E, na execução dela, foi menos rápido que o elemento surpresa Santiago Gentiletti, zagueiro que se antecipou para cabecear bem a bola levantada por Ortigoza. Na ótica da El Gráfico, “nessa noite ficaram duas sensações: 1) a falta de eficácia o obrigava a jogar uma grande partida em Belo Horizonte. 2). A equipe já tinha pasta de campeão”. Era preciso isso se justificar com um potencial Mineiraço antes do termo ganhar uma outra conotação a nível mundial…

Mercier no primeiro Mineiraço de 2014. Pior para o Cruzeiro

E o primeiro Mineiraço do ano começou com 9 minutos de jogo. Piatti redimiu-se de pontaria ruim no jogo de ida ao mandar um torpedo no ângulo de Fábio, aproveitando bola bem rolada por Matos na sequência de um cruzamento de Villalba pela direita. Com a desvantagem de dois gols no agregado, o Cruzeiro soube reagir, diga-se. Com direito a Marcelo Moreno carimbar a trave duas vezes no mesmo lance, no penúltimo minuto da etapa inicial. Para o segundo tempo, foi a vez do Ciclón se agarrar em atuação descomunal do abençoado Torrico – que só não evitou um certeiro cabeceio de Bruno Rodrigo aos 25 minutos, em chuveirinho certeiro de Dagoberto.

A partida no Mineirão também marcava o retorno de Romagnoli, finda sua longa suspensão. O ídolo substituía o garoto Correa desde os 14 minutos do segundo tempo. Mal durou quinze minutos: foi simplesmente expulso novamente. Mas, àquela altura, a Raposa já estava cansada. Ficaria no 1-1. Na semana seguinte, os semifinalistas até teriam uma final: o River, com Ramón Díaz, havia voltado a ser naqueles dias campeão argentino pela primeira vez desde o rebaixamento. Pelo regulamento da AFA, os vencedores dos Torneios Inicial e Final da temporada 2013-14 fariam um jogo festivo, a “Superfinal”.

Bauza até pôs os titulares, mas prevaleceria mesmo o embalo recente do Millo contra o foco azulgrana pelo continente, apesar da pausa que a Libertadores (mas não a segunda divisão argentina, a render algum sorrisinho na torcida sanlorencista com o insucesso do Huracán em superar, em junho, o Independiente no último mata-mata pelo acesso) faria para a Copa do Mundo. No tira-teima, Díaz daria sua última volta olímpica e então passaria o bastão à Era Gallardo.

07-05-2014: Elementos em comum entre Cruzeiro e San Lorenzo (Caio Brandão)

08-05-2014: Sem tanta emoção, San Lorenzo sai na frente do Cruzeiro (Caio Brandão)

15-05-2014: Torrico faz milagres e San Lorenzo está nas semifinais (Thiago Henrique de Morais)

15-05-2014: Nunca na final, San Lorenzo só chegou a 4 semis de Libertadores (Caio Brandão)

23-05-2014: River Plate e San Lorenzo prontos para a Superfinal (Tiago de Melo Gomes)

25-05-2014: Pensemos em festejar, afirma Ramón Díaz sobre o “supertítulo” (Rodrigo Vasconcelos)

05-06-2014: FP Entrevista: Alan Ruiz aposta no tri da Argentina e crê em Ciclón campeão da Libertadores (Thiago Henrique de Morais)

Irregular, Piatti acabou carrasco de brasileiros: após marcar dois no Botafogo, abriu o placar no Mineirão, comemorado com Matos

No contexto da pausa para a Copa, vale menção a um texto em primeira pessoa do editor-chefe da El Gráfico para aquela edição pós-Libertadores: “no Mundial do Brasil, para matizar essas esperas dos treinos da Argentina, fiz minha mini-enquete com jornalistas torcedores do San Lorenzo. Cinco ou seis, na lata. Lhes preservamos o nome. Enquete de curiosidade apenas, não para publicar: ‘o que preferes: Argentina campeã do mundo ou o San Lorenzo da Libertadores?”, perguntava. E os caras te olhavam com os olhos extraviados, com cara de “que palhaçada me estás perguntando?’. Todos iguais. E isso que o contraponto não era um prêmio menor: ser campeão do mundo no Brasil. Traidores do sentimento nacional, talvez, não duvidaram nem um segundo”.

A dois passos do paraíso

Em meio àquela pausa para a Copa do Mundo, Romagnoli, antevendo que pegaria no mínimo mais quatro outros jogos de gancho – justamente os quatro jogos que restavam a um San Lorenzo eventualmente finalista -, se permitiu fechar com o Bahia. Curiosamente, o clube que fora precisamente o primeiro oponente do Sanloré e do futebol argentino na história da Libertadores, na inaugural edição de 1960. Maior artilheiro sanlorencista, José Sanfilippo resolveu aquele duelo antes de, em outra curiosidade, vir a defender o próprio Bahia no fim daquela década.

Aquela fora também a primeira das três vezes em que o Ciclón pudera ser semifinalista até 2014. Parou no Peñarol, e muito por conta do pouco interesse natural de um nascente torneio propiciar que os cartolas cuervos na época cometessem o erro histórico de ceder aos uruguaios o mando do jogo-desempate (ao invés de utilizar um campo neutro) em troca de renda; o antigo Gasómetro estava sob reforma, a ponto do San Lorenzo vir alugando o campo do próprio rival Huracán. Cancha cujo gigantismo arrecadatório não era comparável ao do estádio Centenário.

Pelos 54 anos seguintes, a Libertadores não vinha perdoando tamanha insensibilidade e insensatez. Em abril de 2015, embora a maldição já estivesse encerrada, o octogenário Sanfilippo, ainda lúcido, seguia esbravejando à El Gráficona edição daquele mês: “queria me matar e queria mata-los. Havíamos empatado as duas partidas, uma em Montevidéu e outra no campo do Huracán, e venderam o desempate por 100 mil pesos, uma coisa de loucos. Fez um dirigente chamado Pecoraro, que não entendia nada. Era violinista! ‘É uma barbaridade o que estão fazendo’, lhes disse, mas não me deram bola”.

Na pausa da Libertadores, Romagnoli chegou a se apresentar ao Bahia, mas o riso era nitidamente amarelo

De 1960 a 2014, todos os outros quatro grandes argentinos foram erguendo La Copa: o Independiente a partir de 1964, o Racing já em 1967, o Boca desde 1977 e o River, enfim, em 1986, um ano após até o nanico Argentinos Jrs (já sem Maradona) também ganhar a América. A pressão, toda com o San Lorenzo desde 1986, aumentou com a conquista de outro time menos expressivo nacionalmente, o Vélez, em 1994. Eis o contexto extra que explica bastante o resultado da enquete informal promovida pela El Gráfico

Pois bem. A ingenuidade dos cartolas de 1960 dera lugar à astúcia plena em 2014: Lammens e Tinelli conseguiram o feito, então inédito na história da Libertadores, de afastar qualquer suspensão a Romagnoli, sob a justificativa de não ter haver qualquer registro de imagens da agressão que o ídolo teria praticado para cima de Marcelo Moreno. E, em 23 de julho, El Pipi era titularíssimo. Pudera: Correa descobrira naquele meio-tempo uma deformidade cardíaca que lhe faria ser poupado preventivamente. Substituindo o jovem (pré-negociado ainda em maio com o Atlético de Madrid, acabou só podendo apresentar-se em dezembro ao novo clube), o veterano teve então sua primeira grande exibição na campanha. Com cinco minutos de jogo, já fornecia assistência para Mauro Matos cabecear e abrir uma goleada.

Piatti até seria generoso na edição pós-título: “o Bolívar se fechou com cinco defensores e quatro volantes, e não foi fácil lhe meter cinco gols”. De fato, o segundo demorou até os 27. Romagnoli novamente levou a bola à área boliviana, e outra vez ela terminou encontrando outra cabeça certeira, de Emmanuel Más. E o terceiro, já quando a tônica argentina era jogar no contra-ataque, precisaria aguardar até os 24 minutos do segundo tempo. Mercier recuperou uma bola e partiu livremente, e, quando viu a bola ser generosamente rebatida a si em uma tentativa de passe, arriscou ele mesmo: 3-0. Ali, sim, a torneira abriu de vez para “um 5-0 lapidário, contundente, com atuações luxuosas de dois veteranos com alma de garotos: Pipi Romagnoli e o comovente Pichi Mercier, goleador da noite junto a Más (2), Mattos e Buffarini”.

Buffa fez o quarto apenas quatro minutos depois, em chute de longa distância. Aos 43 do segundo tempo, então, outro cabeceio de Más praticamente colocou o Sanloré em sua primeira final de Libertadores – e Edgardo Bauza, pela primeira vez no radar da seleção argentina, cargo que viria enfim a ocupar já em 2017. Afinal, o resultado em La Paz seria presumivelmente protocolar. Cozinhando a altitude, o Ciclón foi derrotado apenas pelo placar mínimo, e ainda assim sofrendo o gol já nos acréscimos do segundo tempo.

Contra o Bolívar, a primeira grande exibição de Romagnoli naquela Libertadores, já nas semifinais: 5-0 em golaço da cartolagem

22-07-2014: San Lorenzo vai completo para a semifinal da Libertadores (Tiago de Melo Gomes)

23-07-2014: San Lorenzo teve poucos bolivianos. Mas de história no Bolívar e seleção (Caio Brandão)

23-07-2014: San Lorenzo humilha o Bolívar a fica perto da grande Final (Joza Novalis)

30-07-2014: San Lorenzo chega à final da Libertadores após 54 anos (Rodrigo Vasconcelos)

01-08-2014: Bauza afirma ter sido sondado para assumir a seleção (Tiago de Melo Gomes)

O resultado do primeiro jogo não deixou de gerar inquietude, com as saídas iminentes de Romagnoli e Piatti. Com o Nacho, contratado pelo Montreal Impact, não houve jeito: como a temporada da MLS terminaria já em outubro, os canadenses só permitiriam mesmo sua presença até o primeiro jogo da decisão. Mas como o ídolo prata-da-casa, as regras jurídicas acabaram mitigadas na marra. Inicialmente, até a conclusão da Libertadores. Ao menos no autoengano (ou não) de todas as partes envolvidas…

CASLA, agora Club Atlético San Lorenzo da América

Contra o gigante argentino que faltava na galeria, um modesto time paraguaio que vinha colecionando triunfos improváveis pelo Rio de Prata. Outrora celeiro poderoso até mesmo a clubes argentinos nos anos 20 e 30, o Nacional passara o restante do século XX na sombra de Olimpia, Cerro Porteño, Guaraní e Libertad, dentre outros. Mas, naquela Libertadores, havia de algum modo eliminado o dono da melhor campanha da fase de grupos, o Vélez do goleador Lucas Pratto; um Lanús recentemente vencedor da Sul-Americana do ano anterior e experiência copeira de sobra no comando técnico dos gêmeos Barros Schelotto; e, nas semifinais, o Defensor da revelação Giorgian de Arrascaeta e que, diante de campanha-sensação, se fizera representar até nas seleções brasileiras de base, com Felipe Gedoz.

O Nacional Querido, até então um folclore pelo website de mesmo nome (pelo visual nostálgico a internautas dos anos 90), “não devia oferecer muita resistência: não havia ganho jamais de visitante e havia passado as fases com uma guinada gigante de sorte. O Vélez o bombardeou em Liniers, o Arsenal em Sarandí, o Defensor em Montevidéu, mas os paraguaios terminavam sempre se safando com o mínimo”, minimizava a El Gráfico em um primeiro momento… para ao fim reconhecer que “terminou sendo um duro rival. Sem chapa, sem jogadores de renome, ajudado pela sorte. Um rival de escasso relevo. É certo”. Mas realmente capaz de sorrateiramente ainda propiciar “ataques de insônia, ansiedade, inseguranças (…), um catálogo completo para visitar todos os dias da semana de consulta ao psicólogo mais próximo”.

“Sem sofrimento, não é San Lorenzo”: no último lance do jogo de ida, Julio Santa Cruz (irmão de Roque) empata para o Nacional de Assunção

Matos, ganhando na concorrência de Blandi para a vaga deixada na ausência médica de Angelito Correa, ocupou o lugar do garoto em 6 de agosto. E deixava o Defensores del Chaco como protagonista: aos 19 minutos do segundo tempo, um voleio dele emendou de primeira um cruzamento de Villalba ao fim de bela troca de passes azulgranas (Mercier, Buffarini, Romagnoli e novamente Buffarini). O goleiro argentino do Nacional, Ignacio Don, acabou surpreendido. E era para ter sido 2-0, premiando a despedida de  Piatti, que teria registrado uma assistência se a conclusão de Emmanuel Más após o passe dado pelo Nacho não resvalasse na trave.

No diagnóstico da edição pós-título, “o San Lorenzo afrontou o encontro decisivo no Paraguai com uma determinação surpreendente. Saiu de entrada para abafar seu rival, sem importar o cenário. Salvo um lapso de 10 minutos em que Torrico falhou em dois cruzamentos, todo o resto foi do Ciclón. Com Mercier e Ortigoza como manipuladores indiscutidos, Piatti armando a sociedade com Más pela esquerda, e Buffarini com Villalba pela direita, firmeza nos centrais e excelente pivô e cabeceio de Matos, a partida se jogou no campo do Nacional. (…) Depois do 1-0, o San Lorenzo não se conformou e buscou o segundo. E quando já se assentava exígua a vitória mínima, chegou o amasso do final. Uma semana mais de angústia. Sem sofrimento, não é San Lorenzo”.

Eis a razão do sofrimento, nas palavras da revista: “o cronômetro marcava 47 minutos e 35 segundos (de 48) quando partiu o chuveirinho frontal desde o círculo central. Ortigoza, patrão que ordena e controla tudo no meio com seu sócio Mercier, havia saído tinha 7 minutos. Uma pena. Era a última bola da noite. Em menos de 5 segundos, a bola ingressou na área, Freddy Bareiro moveu o corpo contra Gentiletti, lhe ganhou no salto, e em dois botes de pantera, aproveitando suas pernas largas, Julio Santa Cruz (irmão caçula de Roque) se lançou, superou o cruzamento de Fontanini e o achatamento de Torrico, e a cravou elevadamente de sobrepique. Não houve tempo nem para reinício no meio-campo. Apenas para se lamentar a oportunidade desperdiçada”.

Veio 13 de agosto, em que o ineditismo daquela Libertadores terminaria ofuscado na imprensa brasileira pela tragédia de Eduardo Campos, de partida precoce como as de Robin Williams e Fausto Fanti (falecido no mesmo dia que Julio Grondona!), outros ilustres chorados naqueles dias. Quem pôde ficar alheio, viu mesmo como o primeiro tempo foi de nervosismo para a formação Torrico; Buffarini, Cetto, Gentiletti e Más; Villalba, Mercier, Ortigoza e Romagnoli; Cauteruccio e Matos. Faltou melhor aproveitamento aos comandados de Gustavo Morínigo, que “impressionaram de cara. No primeiro minuto, após um erro de Mercier, Orué rompeu a trave esquerda de Torrico. Aos 17, Torales disparou perto do ângulo esquerdo e aos 25 se ativou o botão antipânico quando uma série de passes mal realizados deixou a bola perdida na área cuerva. O Nacional pressionava e não deixava jogar a equipe de Bauza, que só gerou algum probleminha com dois cruzamentos. Paralisados pela responsabilidade, lhes custava gerar algo”, resumiu a El Gráfico.

Os talismãs das finais: Matos no Defensores del Chaco, Ortigoza no Nuevo Gasómetro

Mas então, por volta dos 36 minutos, quem cometeu autossabotagem foi o visitante Ramón Coronel, que deu “uma de jogador de vôlei dentro da área. O juiz não duvidou um segundo e apitou o pênalti. Ortigoza tampouco duvidou: tomou a bola e a fez pingar duas vezes enquanto o árbitro controlava os protestos guaranis. Não vai errar justo agora Orti, o infalível, né? Vinte e um pênaltis convertidos em vinte e dois e… não dará mancada hoje, nada menos, não? Não. Se este não arregava na várzea, onde tinhas que sair a jato se ganhavas uma partida, menos vai arregar aqui. Orti parou na meia-lua, bem reto à bola e um passo antes do impacto abriu o pé e a pôs rasteira, junto à trave esquerda de Don, que comeu o blefe e foi ao outro canto”.

Em 2016, em longa entrevista à El Gráfico, Ortigoza deu mais detalhes de como forjou “sempre em campo de terra, [onde] a bola pinga para qualquer lado, não tem alambrado e tens o plateia atrás da linha” a habilidade que valeria uma Libertadores: “campeonatos noturnos. Começavam às 10 da noite, quando o pessoal saía do trabalho, e podiam durar até 5 ou 6 da manhã. Em geral, quinta-feira ou sábado, ia com meu tio Manuel. Campeonato de três pênaltis, mano a mano com outro, por eliminação. Se inscreviam 100 sujeitos. Você podia ter um goleiro ou chutar e agarrar, as duas coisas. As duplas iam se eliminando até chegar à final. De chutar tanto, daí ficou a técnica do golpe: seco, com a parte interna do pé, sem dar reação ao goleiro”.

Mesmo após se profissionalizar, Orti vinha mantendo o hábito de jogar esses torneios de rua. Segundo ele, na mesma entrevista, a última tinha sido três dias antes do título argentino de 2013, justamente para pegar ritmo de jogo (pois era reserva com Pizzi). Na ocasião que valia o continente, já não tinha o mesmo nervosismo do pênalti que chutou naquelas definições contra o Instituto de Córdoba que valiam a permanência na primeira divisão dois anos antes, assegurou: “estava muito tranquilo, sabia que o goleiro ia se mexer para me antecipar e eu ia colocar no outro lado. Joguei com os nervos do goleiro, o campo estava cheio, éramos todos cuervos, e pensei: ‘trarei eles para meu lado’. Tratei de me concentrar. Enquanto os jogadores discutiam com o juiz, eu pingava a bola, e pingava uma e outra vez e dizia: ‘sou o melhor, sou o melhor, sou o melhor’. Te juro que dizia isso, e a galera começou a gritar ‘Gordooo, Gordooo’, e eu dizia em voz alta: ‘sou o melhor, sou o melhor, sou o melhor'”.

Então, no segundo tempo, “o San Lorenzo entrou mais levezinho de carga e tentou liquidar. Foram 30 minutos nos quais rondou o gol, primeiro forçando no campo adversário e logo no contra-ataque. Com Mercier e Ortigoza cada vez mais firmes e mais seguros, com el Pipi aguentando a bola, gerando faltas e habilitando seus companheiros. O Nacional já não machucava, nem se aproximava de Torrico. El Patón foi metendo as substituições e recuando cada vez mais a equipe: Verón no lugar de Cauteruccio aos 20, Kalinski no de Villalba aos 36, Kannemann no de Romagnoli aos 42, a modificação-fetiche do Patón, a que não pôde fazer em Assunção porque Ortigoza mandou o ‘não dou mais conta’.” O herói do título havia sentido uma contratura muscular no jogo de ida, mas não concebia ficar de fora na volta e terminou premiado.

Romagnoli, o filho pródigo: único jogador no San Lorenzo vencedor da Copa Mercosul 2001 (esquerda), Sul-Americana 2002 (centro) e Libertadores 2014 (direita)

Não que os minutos que restavam fosse exatamente de tranquilidade: “o pânico de ganhar, esses 20 minutos que restavam para aniquilar 54 anos de angústias, se fizeram notar. Houve uns dois cruzamentos desde longe que aceleraram batimentos cardíacos e baixaram a pressão de uns quantos. E uma jogada, aos 32, que foi a única ação de risco verdadeiro do Nacional no segundo tempo: cruzamento, cabeceio falido, tentativa de rechaço, rebote e a bola que sobra a Bareiro dentro da grande área, próximo da marca do pênalti, uns metros à esquerda, pronta para definir, mas desta vez Gentiletti se estirou e compensou aquela reação lenta de Assunção. Evitou o empate com um toco, em termos basquetebolísticos. Foi a última. Ali se apagou o Nacional”.

Romagnoli, em alto estilo, se isolava como o profissional mais vezes campeão no clube do coração – do qual, inclusive, é o atual treinador. Pouco depois que Sandro Meira Ricci soou o último apito, já nas primeiras horas de 14 de agosto de 2014, já se via instantaneamente impossível imaginar o Mundial de Clubes sem Pipi. Que ficou. Pois, como escreveria a El Gráfico: “se já era ídolo, quando Leandro voltou a consagrar-se campeão no Torneio Inicial 2013 se converteu em herói, o filho pródigo que havia voltado e, além do mais, havia repetido o êxito. (…) O sujeito que se colocou contra a lógica e contra os contratos e que, aos 33 anos, passou a barreira dos jogadores mortais que vestiram a azulgrana“.

06-08-2014: San Lorenzo cede empate ao Nacional nos acréscimos da final da Libertadores (Rodrigo Vasconcelos)

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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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