Roberto Perfumo, a 5 anos de sua morte: as polêmicas virtudes que um jogador devia ter e a anedota impossível com Maradona
As palavras abaixo são de autoria de Matías Bauso, que gentilmente nos autorizou a traduzi-las. A versão original, para o portal Infobae, pode ser desfrutada clicando aqui. Conservamos os negritos e itálicos originais e acrescentamos apenas alguns colchetes para melhores contextualizações ao leigo. E clique aqui para conferir o obituário que publicamos sobre El Mariscal na época dessa perda, em nota aberta com outra foto do jogo contra a Holanda. As desse texto foram tiradas do acervo do craque Masahide Tomikoshi.
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Há um tempo, circulou um vídeo pelas redes sociais. Era no preto e branco granuloso da televisão de há mais de meio século. O vídeo da partida, quase por milagre, se conserva inteiro (ao redor de trinta anos de futebol argentino, dos 60 aos 80, que desapareceram em que pese que pudéssemos ter registro fílmico dela por um pertinaz desprezo ao arquivo audiovisual). É a final da Copa Libertadores de 1967, a partida de ida no campo do Racing. Eram tempos em que os grandes encontros no Cilindro recebiam mais de cem mil pessoas. A imagem que nos interessa começa com uma bola longa até a área do Racing. Três jogadores correm desaforados até a bola. Um supõe que vai ter contato com ela logo na entrada da área. Custa, a princípio, reconhecer as camisas pela fragilidade da imagem. Dois são atacantes do Nacional de Montevidéu – do bravo Nacional –, o outro, um defensor da Academia que vai no meio deles. No último momento, ganha no pique, mas, ao chegar na bola, em vez de rechaçar para escanteio ou à lateral, o que qualquer um teria feito, pisa na bola, passa por cima dela, com os atacantes uruguaios a centímetros dele. O freio e o arranque mais audazes, elegantes e extraordinários vistos em um campo de jogo (isto é futebol e a hipérbole está permitida). Logo, sai jogando: Roberto Perfumo, o Marechal, inicia o ataque. O movimento é inédito, não creio que alguma vez se tenha visto algo igual, eu ao menos não o fiz em quase cinquenta anos. No vídeo, se escuta a comoção do público. Primeiro, surpresa, logo a ovação e a certeza de ter presenciado um momento único. A arte da defesa.
Roberto Perfumo foi o camisa 2 ideal: velocidade, classe, pegada, atrevimento, jogo brusco, maldade, inteligência, personalidade e hierarquia. Tinha tudo isso. Só lhe faltava algo de cabeceio. Mas lhe sobrava elegância. Foi ídolo e foi campeão – várias vezes – em cada equipe em que jogou. O Racing de José [o treinador Juan José Pizzuti], o Cruzeiro e o River de [Ángel] Labruna eram equipes generosas, que atacavam desbocadamente. Perfumo aguentava sozinho no fundo. Foi o melhor marcador central da história jogando em equipes abertas, que não o resguardavam. Tampouco temos que ser injustos. Para além de sua qualidade individual, integrou alguns dos trios defensivos mais memoráveis do futebol argentino: [Agustín] Cejas, Perfumo e [Alfio] Basile [no Racing]; [Antonio] Roma, Perfumo e [Rafael] Albrecht [na seleção]; [Ubaldo] Fillol, Perfumo e [Daniel] Passarella (não concebo que este último trio tenha sido alguma vez superado), [no River].
Na seleção nacional, nem sempre lhe foi bem. Figura no Mundial 66, foi um dos assinalados pelo fracasso nas eliminatórias para México 70 e no Mundial 74. Sobre o empate com o Peru na Bombonera em 1969 que deixou a Argentina fora do Mundial, escreveu: “nessa vez senti ganas de deixar o futebol, de ir para longe, onde ninguém me conhecesse. No dia seguinte, só saí de casa porque tinha que cumprir um trâmite bancário. Chegamos, estacionei, fiquei sentado e minha mulher, que me acompanhava, compreendeu o que sentia e sem que dissesse nada, me disse: ‘fique no carro que eu vou ao banco’. Sentado no carro, me agarrou uma amargura terrível. Por que tinha que me esconder se não havia roubado ninguém? Isso acontece no futebol”. Na Alemanha 74, sofreu a humilhação que a Holanda proporcionou aos argentinos e fez um gol contra frente a Itália. A grande anedota da partida contra a Laranja Mecânica contava, passado o tempo, com um enorme sorriso. Com o jogo em 2-0 contra, [Daniel] Carnevali, goleiro alviceleste, foi buscar a bola correndo. Eram tempos em que os tiros de meta cobravam os [zagueiros] centrais. Perfumo baixinho lhe disse que caminhasse, que não se apressasse. “Calma, queres que nos façam 8?”, disse a seu goleiro. Perfumo havia entendido que os holandeses eram imparáveis, que não havia equivalências, que eram aviões contra charretes.
Contudo, sua grande decepção foram os Jogos Olímpicos de Tóquio 64. A Argentina tinha uma grande equipe que havia classificado após a Tragédia de Lima, na qual morreram dezenas de espectadores. Mas foi eliminada em uma zona que integravam Japão e Gana. O camisa 11 japonês os enlouqueceu. Cruzou com ele na saída do estádio. Dava entrevistas à imprensa convertido no novo herói nacional. [Kunishige] Kamamoto, esse ponta-esquerda, usava óculos com lentes de fundo de garrafa. Roberto se pôs a chorar. Sentiu o peso da humilhação. Haviam sido eliminados e os haviam bailado um japonês quase cego. Foi a última vez que chorou por futebol.
Estreou no jornalismo enquanto ainda era jogador. Comentou várias partidas do Mundial 78. Entre comentaristas arrogantes e óbvios, seus aportes, sempre risonhos, permitiam ver para além do evidente. Perfumo entendia o jogo e o explicava bem. Em seus últimos tempos como comentarista, as redes sociais o rechaçavam. Notava-se ele cansado, distraído, entendiado. Esse futebol não o divertia, mas se negava a admiti-lo. Não queria deixar-se vencer pela tentação da nostalgia e recair no elogio do passado. Os grandes ídolos dos anos 70 integram uma raça rara. Suas opiniões futebolísticas quase nunca são construtivas, os domina o ressentimento. [Norberto] Alonso, [Hugo] Gatti, [Ricardo] Bochini, [José] Sanfilippo. Perfumo era diferente, tratava de que seus comentários fossem um aporte. Não se detinha muito no tático. Era jogadorista. Mas não só elogiava os craques. Ele acreditava que o futebol era jogo e trabalho. Pelo tanto, valorizava os que demonstravam ofício, inteligência e dedicação. Acreditava que, excetuando os gênios, esses eram os que marcavam diferenças. Entretanto, seu grande feito nos meios foram as primeiras temporadas de Hablemos de Fútbol. Junto com Víctor Hugo Morales [dono da mais célebre narração daquele segundo gol de Maradona nos ingleses], não faziam outra coisa que não honrar o título do programa da ESPN. Os convidados o reverenciavam, sabiam que estavam frente a uma glória. Ali só se falava do jogo, de suas variantes, dos pequenos detalhes ocultos.
No meio dos anos 90, publicou um livro cativante e engenhoso: Jugar al fútbol. É um pequeno e extraordinário tratado de como entendia o jogo. Ali afirma, contra os afetados e bem-pensantes, que o bom jogador deve ter cinco características imprescindíveis. Mas quando as enumera, nos damos conta de que não são virtudes, são defeitos e, alguns deles, bastante graves. Com isso, nos quer mostrar que o futebol não é um território de sonho, um mundo de fantasia como muitos querem mostrar. Para o jogador, é um âmbito duro, cruel e muito estreito. Chegam só alguns, uma minoria e dura pouco. Muito pouco. Perfumo sustentava que o jogador de futebol deve ser:
-Vaidoso: sem vaidade, é impossível ser futebolista. Faz com que o jogador se mate por mostrar ao público, aos companheiros, ao técnico, aos adversários, à imprensa, o bem que joga, o forte, o atrevido, o vivo, o veloz, o malandro, o grande, o bagudo que é. O jogador tem que se sentir o melhor do mundo.
-Egoísta: se joga para si. É como sair para comer com dez amigos; os onze comem juntos, mas se come para si. O egoísmo alimenta o desejo de chegar antes a todos os lados.
-Mentiroso: tem que mentir quando lhe perguntam a razão do êxito ou da derrota. Nunca tem que dizer a maior virtude ou o pior defeito. O futebol é a arte do engano.
-Violento: o futebol é um esporte violento em sua essência. Os jogadores amam os violentos que jogam para eles e temem os dos rivais.
-Mau: Pelé aconselhou Maradona que fosse mal para defender-se da maldade dos oponentes. Pelé tinha a maldade incorporada em sua bagagem técnica. Em igualdade de condições técnicas, táticas e físicas, ganha o mais mau.
Um exemplo dessa maldade é a anedota já famosa que difundiu Diego Maradona em uma visita ao [programa] Mar de Fondo. Diego contava que, em um Argentinos-River, Perfumo cruzou com ele e o levantou pelo ar. Havia quase vinte anos de diferença entre um e outro. Se cruzavam nas curvas de suas carreiras. Enquanto um ascendia – até o infinito –, o outro vinha em uma digna curva descendente. Diego, com sua graça, disse que, logo após o central o fazer voar pelos ares, o levantou do gramado pela orelha e lhe disse algo assim como: “estás bem, neném, não?”. E que ele quase lhe pede desculpas e lhe pergunta se não se machucou. Por desgraça, os implacáveis estatísticos demonstram que essa cena foi impossível. Diego e Roberto não se cruzaram em um gramado. Mas o mais incrível é que Perfumo contou isso antes de Diego. O fez em seu livro. Muito possivelmente, a origem da anedota reside em que Perfumo costumava, em sua última etapa no River, implantar sua malícia acompanhada pela impunidade do futebol dos anos 70 e de seu status de lenda. Perfumo costumava levantar jovens atacantes pelas orelhas após tê-los levantados pelos ares. E a Diego algum veterano coveiro lhe terá feito sentir o rigor dos anos para além das selvagens patadas que recebia.
Em uma época em que o futebol era assunto exclusivo de homens, sua imagem de galã, de olhar juvenil, seu sorriso franco (alguém alguma vez sorriu melhor na história do esporte?) conseguiram que fosse o jogador mais popular entre as mulheres durantes os anos 60. Só Silvio Marzolini se aproximou dele nesses anos neste cabeçalho. O sex symbol pioneiro do futebol vernáculo. O primeiro com chuteiras próprias.
Para além das análises táticas necessárias, acreditava que a verdade do futebol encarnava nos jogadores. Em sua habilidade, na personalidade, em sua coragem, na capacidade de sacrificar-se pela equipe. Seu grande achado, seu indispensável aporte conceitual, foi o de La Cancha Interna [capítulo do referido livro Jugar al fútbol]: “É o registro que tem o jogador de tudo o que ocorre durante o jogo com seus companheiros, os rivais, o árbitro, os minutos que faltam, o que é o melhor e o pior de sua equipe, por onde tirar vantagem, que jogador está cagado [de nervoso], e todas as demais variantes de uma partida”, explicou. O melhor exemplo disto são os ditos sobre sua precisão nos passes de longa distância. “Quando jogava em casa não falhava, porque, sem olhar, atirava a bola e já sabia que em Fernet Branca estava o Chango [Juan Carlos Cárdenas]; em Renomé, [Humberto] Maschio; em Cinzano, o Toro [Norberto] Raffo; e na Thompson & Williams, o Panadero [Rubén Díaz]” [eram referências às placas de publicidade supostamente mais próximas ao posicionamento habitual dos colegas citados – respectivamente, de um xarope, de pastilhas, de um vermute e de uma alfaiataria].
Sua outra grande contribuição foi instalar um tema silenciado. O da depressão dos jogadores após o retiro. Não teve medo em aceita-la, em torna-la pública. Em mostrar uma realidade calada. Aposentados prematuros que passam das ovações ao silêncio, aos dias vazios, sem incentivos. A única vez que o vi em pessoa, contou um papo que teve com o Beto [Norberto] Alonso, companheiro seu naquele River de Labruna. Nessa noite, Perfumo, angulado em uma barra, era o centro da atenção. Regava, com graça, uma anedota atrás da outra. A partida com o Celtic [Mundial Interclubes de 1967], a sabedoria de Pizzuti [técnico daquele Racing campeão mundial], algum clássico com o Boca, as andanças do Toto [Juan Carlos] Lorenzo [técnico dele na Argentina de 1966]. Tudo era graça, timing para contar e risos até que citou o meia-esquerda: “uma vez, falava com o Beto sobre o retiro, da abstinência e me disse: ‘se Deus ou o Diabo tivessem me assegurado que ia poder jogar na plenitude até os 50, mas que no dia seguinte ia morrer… se me fizessem assinar isso, eu teria assinado sem duvidar um segundo’. Depois de contar isto, os olhos do Marechal se escureceram, foi como se o peso da glória passada o esmagasse, envelheceu em um instante”.
Em 1975, voltou ao país para tirar o River de sua seca de dezoito anos sem títulos. Na primeira vez que jogou contra o Racing, a torcida académica lhe dedicou uma estrondosa e despeitada vaia. Ao chegar no vestiário, Perfumo, sem nojo nem dor, algo emocionado disse: “nessa tarde, me dei conta do quanto gostaram de mim aqui”.
Como técnico, sua carreira foi descontínua. Dirigiu o Sarmiento de Junín que jogou [em 1981] na primeira divisão com o Toti [José Raúl] Iglesias, [Ricardo] Gareca e o Lobo [Roberto] Fischer, mas logo esteve mais de uma década sem dirigir porque entrou com processo para cobrar o que lhe deviam. Esse era um pecado imperdoável durante o reinado de [Julio] Grondona [o chefão da federação argentina de 1979 até seu falecimento em 2014]. Depois, dirigiu [em 1991] um Racing que brigou pelo campeonato, mas saiu brigado com Rubén Paz, o grande ídolo moderno do clube [a nota omite justamente o melhores resultados do Perfumo treinador: vice da Copa Conmebol de 1992 pelo Olimpia, contra o Atlético Mineiro; e o principal título profissional do sofrido Gimnasia LP, a Copa Centenário, em 1994].
Roberto Perfumo possivelmente foi o melhor marcador central do futebol argentino. Mas foi mais do que isso. Foi uma época, um estilo, uma maneira de ver o jogo.
Roberto Perfumo, também, foi o grande ídolo de meu pai, que não tinha ídolos. Era quase o único personagem do futebol inexpugnável para ele, a quem não aceitava críticas. Há cinco anos, quando morreu após cair das escadas de um restaurante, me inteirei da notícia pelas redes sociais. Fiquei muito triste. Demorei um longo tempo para pegar um telefone e contar a meu pai. Sabia que ia se entristecer. Agora, cinco anos depois, gostaria de ligar-lhe para dizer-lhe que escrevi essa nota. Espero que ali onde estejam os dois, tenham se encontrado e estejam falando de futebol, recordando velhas partidas, domingos de glórias e de arranques perfeitos.
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