BocaEspeciais

Roberto Cherro, o baixinho gordinho que foi o maior artilheiro do Boca no século XX

Martín Palermo e Guillermo Barros Schelotto compuseram uma parceria mortal no ataque do Boca na virada do milênio: um centroavante que fedia a gol, mesmo sem técnica, mas com muita garra e faro; e um segundo atacante ou ponta malandro que, além de saber servir o colega, tinha igual estrela, com muitos dias e noites terminando como talismã. Palermo virou em 2010 o maior artilheiro do clube, meses antes do falecimento de Francisco Varallo, último sobrevivente da Copa de 1930, morto aos cem anos. Este via semelhanças na dupla: “parecem eu e Cherro”, outro jogador da primeira Copa. Afinal, Varallo e Roberto Eugenio Cherro eram antes, respectivamente, o segundo maior e o maior goleadores do clube. Cherro faria hoje 110 anos.

Seu sobrenome real era Cerro e ele sempre afirmou isso; a mudança teria vindo da comunidade genovesa que formou o Boca e enchia o sul de Buenos Aires – afinal, a palavra “Cerro”, se fosse italiana, teria a mesma pronúncia de “Tchêro” representada na língua castelhana pela grafia “Cherro”. O sobrenome original Cerro, por sinal, significa “montanha” em espanhol. Era apropriado para o físico robusto (sofreu por anos para emagrecer, chegando a deixar de jantar), não para a altura. Discrepâncias que não o impediam de ser hábil para armar jogo e defini-lo; de ter impulsão para saltar (seus muitos gols de cabeça renderam-lhe o apelido de Cabecita de Oro) e agilidade, qualidade esta que lhe renderia outro apelido: El Apilador, “o Empilhador”.

Nascido no bairro de Barracas, no sul de Buenos Aires, vizinho a La Boca, este meia-esquerda começou no time local do Sportivo Barracas – na época, um dos principais clubes médios do país, capaz de vencer o Barcelona na Espanha em 1929. Nesse clube, já jogava seu irmão mais velho, Felipe, jogador de seleção desde 1924. Já Roberto passou ainda nos juvenis por Quilmes e Ferro Carril Oeste, onde integrou em 1925 o ataque campeão do torneio argentino disputado pela quarta divisão de aspirantes. Chegou ao Boca em 1926, começando, ironia, de forma nada auspiciosa.

Cherro tinha de ídolo o goleiro Américo Tesorieri, agora colega de clube, e enfrentando-o nos treinos pela primeira vez não conseguia chutar aos arcos. Mas logo mostraria a verdadeira face, sendo artilheiro já do campeonato de 1926. E Tesorieri declararia: “Cherro foi a reivindicação dos baixinhos. Madrugava a todos os zagueiros com seu salto justo e preciso”.

Em 17 jogos, o Boca venceu 15 e Cherro marcou os primeiros 20 de seus 206 gols (nenhum deles de pênalti) em 305 jogos (299 deles, completos) pelo Boca. Impacto ainda maior ao ter-se em conta que aquele elenco havia no ano anterior triunfado na primeira excursão de um time argentino à Europa, vencendo Real Madrid e empatando com o Bayern Munique. A comoção foi tamanha que a associação argentina declarou pela única vez um clube como “campeão honorário”.

Momentos característicos de Cherro: cabeceios e gol

Aquele plantel, reforçado com Cherro, foi com sobras novamente campeão em 1926, agora de fato. Antes mesmo do campeonato terminar (já em 1927), El Cabecita de Oro fez em outubro de 1926 sua primeira partida pela Argentina, pela Copa América. Estreou marcando logo dois gols em um 5-0 no Chile. Com o Boca, foi trivice em 1927, 1928 e 1929. Destaque à campanha de 1928, na qual o Boca fez cem gols contra os 73 do campeão Huracán, com direito ainda à maior goleada no Superclásico: 6-0, com dois gols de Cherro. Os títulos voltaram no bi de 1930 e 1931.

Na campanha de 1930, fez sete gols no 9-1 sobre o Honor y Patria (foi no jogo seguinte à rodada que garantira o título), ainda um recorde individual de gols em um só jogo pelos xeneizes. Já a de 1931 foi a primeira da era profissional. Cherro se reerguia de uma má impressão na Copa do Mundo. Uma injustiça histórica: na seleção, ele também teve incrível média de gol (12 gols em 16 jogos, ou 0,75 por partida), ainda que sua fama não tenha cruzado tanto a Argentina em função do sumiço também nas Olimpíadas de 1928. Nos Jogos, lesionou-se na partida contra o Egito (fez um gol nos 6-0). Já no mundial, foi acometido por uma crise nervosa após a estreia.

Foi para repor sua ausência que o futuro artilheiro da Copa, Guillermo Stábile, ingressou no time titular. Com Cherro em bom estado mental, as duas finais contra o Uruguai poderiam ter sido diferente? Um jogo de 1933, ainda que em Avellaneda dá pistas: Argentina e Uruguai se enfrentaram e os hermanos venceram por 4-1, quatro gols de Cherro. Foi na partida que marcou o reencontro de vários remanescentes da final de 1930, agora profissionalizados – na época, a partida foi vista como de combinados das ligas profissionais de cada país, rompidas com a associação oficial, ainda amadora.

As ligas venceriam a quebra de braço, absorveriam as associações e essa e outras partidas (em que os uruguaios jogaram de camisa vermelha e os argentinos, de branca com detalhes verdes) de combinados seriam convalidadas como de seleções. Cherro, curiosamente, também jogou pela seleção “oficial” naquele período de cisão. Em 1932, levantara a voz contra os dirigentes do Boca para reclamar pelo valor pago pela contratação do atacante Luis Sánchez, do Platense. Voltou ao Sportivo Barracas, dessa vez no time adulto, acompanhando o irmão Felipe, além de Mario Evaristo e Mario Fortunato, respectivamente colega e técnico do Boca campeão de 1931.

No campeonato amador, o oficial na época, o Barracas (que, deixado inicialmente de fora da liga profissional, se atrofiaria a ponto de hoje estar na quarta divisão) foi campeão, em seu único título de elite. Os irmãos Cherro (Felipe chegaria a se profissionalizar no Independiente) acabariam jogando juntos em um Argentina 2-0 Uruguai naquele ano, com Roberto marcando na única ocasião da dupla junta na seleção.

Na estreia da Argentina em Copas, contra a França. E com o parceiro Varallo (são os sorridentes) na Copa América de 1937

Mas ele logo voltaria ao Boca ainda em 1932, para o segundo turno: “você não tem ideia do que ele significa para nós, você simplesmente não pode imaginar… só por estar aqui ele inspira tanta confiança e respeito que ele nos transforma, nos dá coragem extra nos jogos mais duros”, declararia Varallo. Com o ídolo de volta, o Boca, irregular no primeiro turno, teve a melhor campanha do segundo e terminou só quatro pontos atrás dos líderes.

Cherro foi artilheiro do campeonato em 1933 (o Boca foi vice) e campeão em 1934 e 1935, ano em que virou o maior artilheiro do clube, superando o ex-colega Domingo Tarasconi (artilheiro das Olimpíadas de 1928). Na volta olímpica, curiosamente acompanhada pelos jogadores visitantes do Tigre, carregou a bandeira auriazul para os aplausos da plateia. O Boca virava o primeiro bicampeão profissional e já se firmava como o clube mais popular do país.

Tanta estrela fez Cherro ser convocado à Copa América realizada na virada de 1936 para 1937 mesmo voltando em novembro da uma suspensão de seis meses, advinda de um jogo contra o Vélez em que reclamou energicamente contra o árbitro pelas faltas sofridas, apesar da vitória de 2-0. Sem ritmo, não foi titular absoluto nem marcou, mas pôde despedir-se da seleção como campeão dessa Copa América, conforme contamos no início do mês. Um dado que alimenta o lado injusto de sua passagem pela Argentina é que Cherro, por seu país, teve quatorze vitórias, dois empates e só uma derrota.

Além disso, doze dessas vitórias pela Albiceleste foram seguidas, entre os jogos contra os EUA nas Olimpíadas de 1928 (no qual fez três gols na vitória por 11-2) e a final da Copa América de 1937, contra o Brasil – uma marca até hoje não superada por ninguém na seleção. No Boca, parou em 1938, sem mais condições nos joelhos, ainda que em 1939 tal situação ainda fosse incerta, conforme entrevista dada naquele ano à El Gráfico, em tempos na qual a principal revista esportiva do país não costumava fazer entrevistas. Ali, declarou:

“Veja, velho, todos temos algo de vaidade ou dessa íntima satisfação de ter sido algo dentro do ambiente em que nos tocou atuar. Algumas amargurar também vieram, para ressaltar as alegrias. E já vês: agora que está entardecendo minha vida de jogador, quando escruto ao passar um adeus amável ou um tênue ‘aí vai Cherro’, experimento uma alegria uma coisa que me chega muito adentro. Será vaidade? Pode ser, mas se não é, entendo que é muito humana”. Cherro faleceu em 1965, quando era presidente da associação mutual de veteranos do Boca. “Ao Boca devo tudo que sou, mas também ao Boca dei tudo o que fui”, resumia. “Foi-se Cherrito. Quando o sol se põe é quando mais se engrandece”, registrou a El Gráfico.

Boca na volta olímpica em 1931. O jogador mais à direita é Cherro

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

2 thoughts on “Roberto Cherro, o baixinho gordinho que foi o maior artilheiro do Boca no século XX

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

dez + 12 =

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.