“Aquele gol de Pontoni!”, lembrou, saudoso, o Papa Francisco em carta uma semana depois do fim de seu conclave aos dirigentes de seu San Lorenzo do coração que lhe visitaram no Vaticano. Um dos maiores centroavantes sul-americanos e prejudicado pela falta de Copas do Mundo nos anos 40, hoje faria cem anos René Alejandro Pontoni, que deixava no banco da seleção argentina não só Alfredo Di Stéfano como o próprio ídolo de Di Stéfano – Adolfo Pedernera, o primeiro “falso 9”. Ídolo também no Newell’s, ele ainda teve uma passagem pela Portuguesa no fim da carreira antes de abrir uma pizzaria que ainda opera em Buenos Aires.
Nascido em Santa Fe, fez carreira em sua província natal antes de brilhar no time de Sua Santidade. Em 1934, passou a dividir o tempo entre a ajuda no sustento caseiro com a mãe e os quatro irmãos (o pai, o imigrante italiano Ermenegildo, falecera sete anos antes) e os treinamentos nas categorias de base do Gimnasia y Esgrima de Santa Fe, além de pular as catracas para observar em especial Juan Rivarola, craque local do Colón que venceu com a seleção a Copa América de 1929 antes de defender o America no Rio. O apelido de Huevo (“ovo”) não surgiu pela raça, sentido que a palavra também tem na Argentina, mas porque era ele o encarregado de arranjar ovos para a família. As dificuldades econômicas chegaram-no mesmo a deixar o futebol por dois anos e ele, com facilidade para engordar, saltou de 45 quilos para 75. Isso lhe renderia outro apelidado, La Chancha, gíria argentina para gordinhos.
Aos 17, convencido pelos cartolas gimnasistas, passou a cuidar melhor da alimentação e estreou no time adulto em um clássico com o Ferro Carril Oeste de Santa Fe. Marcou quatro gols, firmando-se de imediato. Pontoni chegou a ser observado pelo Boca, mas o emissário o descartou como alguém que em um ano chegaria aos 100 quilos – e o próprio jogador não se animou, assumidamente sem maiores ambições com o futebol, satisfeito em jogar por divertir-se e receoso de deixar o lar. A primeira proposta séria para transferir-se, em 1939, partiu do Rosario Central, mas os 6 mil pesos não convenceram a si ou à mãe, dona Lucía – pelas leis da época, Pontoni ainda era menor de idade. Nem o ainda mais poderoso Peñarol seduziu, em interesse despertado por um amistoso em 4 de março daquele ano, onde o Colón, com empréstimo do craque, caiu por honrosos 5-3 no Centenário.
Em 1940, foi a vez de La Chancha destacar-se com seus 80 quilos na seleção santafesina que competiu no campeonato argentino de seleções regionais. Sob boicote do Unión, que naquele ano foi admitido na segunda divisão nacional enquanto o rival Colón ainda se restringia à liga municipal, a seleção foi formada por jogadores dele e do Gimnasia. E chegou à final. Na decisão contra a favorita seleção portenha, Pontoni marcou duas vezes e seus colegas, outras duas. Mas os quatro gols não evitaram a derrota para a capital, que venceu por 7-4. O atacante já interessava os clubes portenhos desde o mata-mata contra a seleção de Mendoza, com os cartolas do Ferro Carril Oeste, clube que cedeu o estádio ao jogo, tentando segura-lo ali e já entabulando um acordo verbal. Na plateia contra os mendoncinos, também estava Adolfo Celli, antigo craque do Newell’s e da seleção argentina nos anos 20. Seu intuito era observar um tal Gutiérrez, da seleção rival.
Celli deteve-se, porém, no “garotinho loiro fora de forma, pesado”, com movimento “lento”, mas que “passava bem a bola” e tinha chute “violentíssimo”. O prestígio de Celli o fez ser consultado ali mesmo pelos dirigentes do Ferro, e ele, antevendo um diamante bruto, foi malandro: “regular, não mais. Muito lerdo para ter êxito na primeira divisão”. Na surdina, fez à promessa um primeiro convite para juntar-se ao Newell’s. Sondado também pelo Gimnasia LP, Pontoni inicialmente não deu maior importância, ainda que afirmasse positivamente ao convite leproso. A aceitação realmente veio ao, precisando cumprir o serviço militar obrigatório em 1941, ser transferido de seu regimento de Santa Fe para um de Rosario. Por 22 mil pesos, o Newell’s então adquiriu um trio do Gimnasia santafesino: o lateral César Garbagnoli e a dupla ofensiva José Canteli e Pontoni, que valia 12 mil no negócio. O afastamento do lar imposto pelas forças armadas impediram dessa vez maior resistência materna.
Apesar do sucesso da seleção de Santa Fe em 1940, a reação inicial aos valores era de que os rosarinos estariam loucos e que o Gimnasia podia sair cantando vantagem pelo negócio. Mas já no primeiro treino Pontoni já marcou três vezes no goleiro titular Luis Heredia e, ainda em 10 de fevereiro, serviu a seleção rosarina, marcando um gol em triunfo de 4-1 sobre o Fluminense.O tal Heredia partiu ao San Lorenzo e semanas depois houve novo embate entre eles, pela rodada inicial do campeonato argentino de 1941. Naquele dia, o San Lorenzo estreava outro talento captado em Rosario, Rinaldo Martino – guarde esse nome, pois a ocasião com o tempo pareceu provar que ele e Pontoni nasceram para jogar juntos. Martino marcaria um gol, mas já após os azulgranas estarem sofrendo de 5-0. Canteli abriu o placar com 8 minutos e Pontoni ampliou para 2-0 aos 43. Na 3ª rodada, já marcava duas vezes em um 3-2 sobre o Boca.
Ao todo, foram 20 gols, incluindo em cada clássico com o Rosario Central: 1-0 em Arroyito e dois em um 5-0 no Parque, contribuindo para o primeiro rebaixamento do arquirrival. Pontoni também voltou a marcar contra o San Lorenzo no returno, em 3-3 em Boedo e na rodada final alcançou sua primeira tripleta no campeonato argentino, em 9-2 sobre o Lanús, com o velho parceiro Canteli, curiosamente, também conseguindo o hat trick. Enquanto o Central caía, o Newell’s orgulhava-se com um 3º lugar, a mais alta colocação da Lepra até sagrar-se campeã já nos idos de 1974. Assim, Pontoni não tardou muito a estrear pela seleção argentina. Foi no feriado nacional de 25 de maio em 1942, contra o Uruguai, pelo troféu binacional Copa Newton. Outro estreante na Albiceleste ali? Rinaldo Martino, do San Lorenzo vice-campeão em 1941. O resultado foi um demonstrativo da boa parceria que fariam: Martino marcou um e Pontoni, dois, na goleada por 4-1.
O centroavante titular da seleção na época, contudo, era Adolfo Pedernera, do River Plate, o homem descrito por Di Stéfano como maior jogador que vira. De fato, uma quinze antes, em 10 de maio, houve um embate onde Pedernera marcou três vezes e Pontoni, uma: River 4-1. Ambos se igualariam na vice-artilharia da liga de 1942, com 23 gols – o artilheiro? Martino, com 25. Pontoni deixou duas tripletas, em 5-2 no Racing e em 5-0 no Chacarita, tornando a vazar o River no returno (2-1) e o Boca (2-2 na Bombonera). O Ñuls fez outra grande campanha, um 4º lugar um ponto abaixo do bronze, o Huracán. Que inclusive sofreu com ele também, em um 5-2 dos rosarinos. A boa temporada rojinegra foi ratificada em janeiro de 1943, quando o time venceu o Torneio Internacional Noturno, octogonal prestigiado que reuniu a nata do Rio da Prata: a dupla Nacional & Peñarol, os cinco grandes argentinos, o “sexto grande” Huracán e o ascendente Newell’s.
Naquele torneio, Pontoni conseguiu uma tripleta em 4-0 no Nacional e arrancou, a cinco minutos do fim, um 3-3 no Centenário com o Peñarol. Após um único jogo pela Argentina em 1942, Pontoni reapareceu duas vezes em 1943, na virada de março para abril. Reestreou com novos dois gols contra o Uruguai, em um 3-3 por outra taça binacional, a Copa Juan Mignaburu. Depois, com a Argentina empregando nada menos que cinco jogadores do Newell’s, bateu a Celeste por 1-0 pela Copa Héctor Gómez. No decorrer do ano, teve um primeiro embate com Pedernera em 2 de maio: o rival anotou dois e Pontoni, um, mas sorriu com um 3-3 dentro do Monumental. Ele distribuiu gols na dupla Independiente (2-1) e Racing (derrota de 4-3 em Avellaneda), voltou a vazar o River no returno (2-2) e também o Boca (derrota de 4-2 na Bombonera), mas somou números mais modestos. Foram 10 gols e os leprosos caíram para a 12ª posição, embora seu astro já aparecesse nos jornais brasileiros como craque de interesse do São Paulo.
Em 1944, foram 13 gols e um 9º lugar, incluindo-se uma tripleta em 4-1 no Lanús, um gol no campeão Boca em derrota de 3-1 e no Clásico Rosarino igualado em 1-1 no Parque. Bastou para voltar à seleção após um ano e meio, chamado à Copa América realizada em janeiro de 1945, no Chile. Antes, houve um aquecimento com o Paraguai pelo troféu binacional Copa Chevallier Boutell, com Pontoni impossível: dois gols em um 5-2 e quatro em um 5-3. Já na Copa América, deixou o dele no 4-0 na Bolívia, de cabeça; no 4-2 no Equador, em uma bomba; dois em 9-1 na Colômbia e deu a assistência para Norberto Méndez desafogar a Albiceleste no duelo final com o Brasil, servindo o terceiro gol no triunfo de 3-1.
Os jornais brasileiros da época também destacaram seu papel em atrair a marcação pessoal de Domingos da Guia, servindo para deixar os colegas livres – e Domingos (que por sinal faleceu há exatos 20 anos, em 18 de maio de 2000) ainda se lembraria disso em 1953, quando elegeu Pontoni como o quarto maior centroavante que enfrentara, abaixo de Leônidas, Silvio Piola e Friedenreich. Os três gols argentinos foram de Méndez, maior artilheiro da história da Copa América, mas classificado por Heleno de Freitas ao Globo Sportivo como “igual a tantos outros”. O botafoguense declarou-se mais impressionado com Pontoni. Foi durante o torneio que a negociação com o San Lorenzo, avalizada por Martino, foi acertada e assinada ainda em Santiago. Em valorização de poucos precedentes, os 12 mil que o Newell’s pagara em 1941 já estavam em 120 mil.
O River também queria o craque, mas o negócio foi fechado em 100 mil mesmo com os azulgranas, desesperados por um substituto para o goleador basco Isidro Lángara. Promoveram a estreia em amistoso com o próprio River, em 25 de março; outro estreante foi o meia Armando Farro. O jogo foi no estádio do Boca e o Millo ganhou por 3-2. Mas Farro e Martino, autores dos gols do Ciclón, não demorariam a formar com Pontoni o Terceto de Oro. O santafesino, afinal, deixou o Newell’s na condição de maior artilheiro do clube na liga argentina até então, tendo acumulado 72 gols em 118 jogos. Embora tenha caído para a sétima posição, ainda possui a mais alta média de gols na Lepra. No novo clube, seriam oficialmente 66 gols em 106 jogos. E os três primeiros vieram já na primeira rodada de 1945, com o 4-1 dentro de La Plata sobre o Gimnasia.
Nas cinco primeiras rodadas, o reforço somou outros três gols, incluindo outro no River (que venceu por 2-1) e no velho rival Rosario Central (agora uma vitória por 2-1). Mas, exceto por dois gols em um 4-2 no clássico com o Huracán pela 9ª rodada, só voltou a marcar na 15ª, no 1-1 com o Independiente. Martino relataria que “não foi tão fácil. Custou muito a René [adaptar-se] a princípio. Queriam fazer as coisas e não saíam. Começaram algumas críticas, mas ele tinha em si uma fé bárbara e seguiu. Foram ao todo 15 gols e um 4º lugar pelo clube. Em paralelo, ele fechou o ano de forma agridoce também. Ele tanto somou um 11º gol no ano, marca anual só superada pelos doze alcançados em 1998 por Batistuta e em 2012 por Messi (e, curiosamente, compartilhada com Martino naquele 1945), mas em derrota de 5-1 para o Paraguai em julho pela Copa Chevallier Boutell; como não impediu a surra diante do Brasil na Copa Roca, em derrotas de 6-2 e 3-1 em São Januário em dezembro, onde só conseguiu dar uma assistência a Martino.
Mas naquele mesmo mês contribuiu em triunfo de 3-2 no Estádio Centenário, um amistoso que poderia desaparecer com o tempo se não virasse conto “gol de Martino”, publicado por Eduardo Galeano em Futebol ao Sol e à Sombra: “o time do Nacional, do Uruguai, estava vencendo o argentino San Lorenzo e fechava suas linhas de defesa diante das ameaças de René Pontoni e Rinaldo Martino. Esses jogadores tinham ganhado fama fazendo a bola falar, e tinham o costume de fazer gols como quem respira. Martino chegou à beira da área. Ali se pôs a passear com a bola como se tivesse todo o tempo do mundo. De repente, Pontoni partiu como um raio para a ponta direita. Martino parou, levantou a cabeça, olhou para ele. Então os defensores do Nacional se lançaram em massa sobre Pontoni, e enquanto os galgos perseguiam a lebre, Martino entrou na área, sossegado que nem boi no pasto, desviou-se do zagueiro que restava, chutou e fulminou. O gol foi de Martino, mas também foi de Pontoni, que soube despistar”. E a dupla foi reaproveitada pela seleção para a Copa América sediada em Buenos Aires já em janeiro de 1946.
A Argentina seria bi, com direito a revanche contra o Brasil, mas sem que El Huevo contribuísse tanto; só atuou na estreia, no 2-0 contra o Paraguai, com Pedernera sendo o centroavante titular pelo resto da campanha – ainda que pudessem atuar juntos, com Pontoni improvisado na ponta-direita no se outro jogo, o 3-1 no Chile, na segunda rodada. Mario Boyé era o titular na posição, mas sua expulsão na estreia foi punida com suspensão por todo o torneio. Nos jogos seguintes, o técnico Guillermo Stábile preferiu improvisar o meia Vicente de la Mata para o posto. A resposta de Pontoni veio com o título argentino de 1946, o único erguido pelo San Lorenzo entre 1936 e 1959 – ou, para a época, o único entre 1933 e 1959, pois apenas em 2013 é que a AFA reconheceu a Copa Honor de 1936 como um campeonato argentino à parte. Se aquela década foi marcada por La Máquina do River, o Terceto de Oro conseguiu números ainda melhores ofensivamente naquele certame: os 90 gols fizeram o Sanloré de 1946 ter o ataque mais goleador em um campeonato naquela década. E Pontoni foi o artilheiro do elenco campeão, com 20 gols.
El Huevo vazou em especial o velho rival Rosario Central, com duas vezes em um 4-1 dentro de Arroyito e outras duas em um ainda mais impiedoso 7-0 em Boedo. Também deixou o dele sobre os outros grandes, no 3-3 com o Independiente, no 1-1 com o River, em derrota de 2-1 para o Boca, em 5-0 no Racing – seria em referência a esse gol que o Papa exclamou naquela carta. Aplicou duas vezes a lei do ex, em 1-1 com o Newell’s no primeiro turno e em 3-2 na visita em Rosario no segundo, sendo indigesto também contra o Vélez: foram dois gols em um 5-0 na casa adversária. O Papa Francisco, ainda com 10 anos, declarou que viu todas as partidas que aquele time campeão jogou em casa naquele ano. O ímpeto se estendeu à Europa. Capitalizando em cima do título, o San Lorenzo empreendeu excursão por Espanha e Portugal. Pontoni vazou Atlético de Madrid (4-1, na neve), Real Madrid (derrota de 4-1, a única da gira), duas vezes a própria seleção espanhola em um 7-5 e outra em um 6-1 – onde o gol de Mario Imbelloni veio em rebote de outra conclusão de Pontoni.
Segundo as lendas, o Ciclón fora capaz de manter a bola por 15 minutos seguidos nos 6-1. O “antecessor” Lángara, servindo a Furia, declarou: “não me surpreendeu o jogo dos argentinos, pois os conhecíamos de sobra. Todos eles jogaram bem, principalmente Pontoni, maravilhoso centerforward“. Na excursão, Pontoni também marcou sobre o Porto (igualando o 1-0 e o 2-1 aberto pelo Dragão antes da torneira abrir em 9-4 para os argentinos) e fez três na própria seleção portuguesa em um 10-4. Os resultados repercutiram no Brasil, que transcreveram a impressão lusitana de que Pontoni fora o maior atacante já visto no estádio Nacional do Jamor ao lado de Tommy Lawton, um superartilheiro de Everton e Chelsea que somara 22 gols em 23 jogos em dez anos de English Team. Ele finalizou a turnê marcando no 5-5 com o Sevilla, o campeão de La Liga de 1946-47.
Martino e Pontoni foram requisitados pelo Barcelona, com o velho craque catalão Josep Samitier repassando um cheque em branco dos culés, enquanto o Real Madrid interessou-se por Salvador Grecco e o Valencia, por Roberto Alarcón. Mas, em tempos de prestígio e finanças equiparáveis entre o futebol argentino e o europeu, além de forte lei do passe, as negociações não foram em frentes, com o próprio presidente sanlorencista rechaçando vender Pontoni sob a alegação de que seria morto pelos sócios ao voltar a Buenos Aires. Na volta, o San Lorenzo caiu para quinto, mas Pontoni seguiu afiado: foi o vice-artilheiro, com 23 gols, abaixo só dos 27 da revelação Alfredo Di Stéfano, decisivo para o River campeão também chegar aos 90 gols.
No certame, Pontoni impôs tripletas em 6-1 no Banfield e em 7-0 no Atlanta (justamente o novo clube de Pedernera, que a despeito do craque terminaria rebaixado…) e vazou o próprio River nos dois duelos (2-2 e derrota de 3-1), bem como os outros grandes: o Racing, em um 3-1; duas vezes tanto no 3-3 com o Boca como em um 4-0 dentro de Avellaneda sobre o Independiente. Em Rosario, ainda abriu um 4-0 sobre o Newell’s e guardou um no 2-2 contra o Central. E deixou outro em 3-3 no clássico com o Huracán. Ao fim do ano, lá estava El Huevo em nova Copa América pela Argentina. Fez três gols no 6-0 sobre o Paraguai e guardou outro em 7-0 sobre a Bolívia, aparecendo mais vezes entre os titulares do que Di Stéfano. A Argentina foi tricampeã, recorde nunca igualado antes ou depois por qualquer outro país no torneio. Embora as taças fossem erguidas em anos seguidos, aquela geração dourada da Albiceleste fez com que cada edição tivesse praticamente um elenco diferente do outro. Pontoni foi um dos seletos cinco jogadores presentes em todo o tri.
A taça também marcou sua involuntária despedida da seleção, onde ele segue tendo a segunda média mais alta de gols dentre aqueles que jogaram mais de dez vezes pela Argentina: rigorosamente uma por jogo, com 19 gols em 19 partidas (o recorde é de Herminio Masantonio, com 21 gols em 19 jogos). Outro nas três foi Norberto Méndez, astro do Huracán que soube deixar a rivalidade de bairro de lado ao comparar Pontoni com o ofensivamente polivalente Pedernera. Foi em 1969, nessa nota à revista El Gráfico: “Adolfo foi a bíblia do futebol, mas Pontoni foi melhor centroavante”. O próprio Pontoni se comparou ao avaliar seu Terceto de Oro com La Máquina: “o mais destacado de tudo é que se tocava a bola com velocidade. O passe era curtinho, mas veloz, quase de primeira, sobretudo quando já passávamos os três quartos do campo. Faço uma comparação: La Máquina do River foi o melhor que vi como futebol puro, mas com um toque de bola mais pausado (…), enquanto nós, embora a tocássemos mais curta, imprimíamos mais velocidade, mais surpresa. Essa era a nossa chave, matávamos”.
Juan Carlos Lorenzo, técnico da Argentina nas Copas de 1962 e 1966, campeão com o San Lorenzo duas vezes em 1972 e no Boca bi da Libertadores em 1977 e 1978, suspiraria já em 1997: “durante uma partida a década de 40 vi Farro, Pontoni e Martino irem com toquinhos de cabeça desde o meio-campo até o gol rival e agora parece mentira que não se possam dar dois passes seguidos”. O ano de 1948 vinha tímido, mas Pontoni retomou boa fase entre a 21ª e a 23ª rodadas, nas quais somou cinco dois oito gols que fez no ano: três no 6-2 no Platense e um cada em 3-2 no Banfield e no 2-2 com o Newell’s. Mas na 24ª sofreu fratura tripla no joelho em duelo contra o Boca, após choque com o adversário Rodolfo Dezorzi, lembrado com bom humor – uma semana depois, Dezorzi chegou ao mesmo hospital, também fraturado: “me vinguei dessa forma: enquanto estivemos internados, o obriguei que me preparasse mate todos os dias”.
Não voltaria a ser o mesmo jogador, ainda que em 1949 seu renome estivesse nas sondagens do Grande Torino mesmo antes da tragédia de Superga. Os números foram menores mesmo antes da lesão por conta de regulares greves que marcaram o ano de 1948. Os cartolas não cederam e usaram jogadores do time B para os compromissos, como Héctor Rial, que declararia: “quando começou a greve, eu ainda era amador porque o contrato se assinava só quando cumprias dois anos na primeira divisão. Me lembro que um dia Pontoni nos explicou o que acontecia. ‘Garotos, isso é algo que fazemos nós, profissionais, e vocês não têm obrigação de dobrarem-se’, nos disse. Mas fomos todos porque tínhamos admiração por esse tipo de jogadores”. Diante dos inflexíveis cartolas, muitos craques partiram à liga pirata da Colômbia, que não respeitava as leis de passe e atraiu em peso os astros argentinos e mesmo europeus.
Pedernera abriu a rota do Eldorado ao acertar com o Millonarios, que também levou Di Stéfano. Voltariam a ser rivais de Pontoni em Bogotá: El Huevo acertou com o vizinho Santa Fe e, representando os alvirrubros, voltou à Argentina apenas para convencer mais dois colegas de San Lorenzo, Ángel Perucca e Adolfo Benegas. O convite terminou estendido ao jovem Rial, que antes de juntar-se a Di Stéfano no Real Madrid penta da Liga dos Campeões desempenhou-se em um Santa Fe que chegou a ter na titularidade dez argentinos (Oscar Bernao, Hermenegildo Antón, Heraldo Ferreiro, Luis López, José María Arnaldo, Eduardo Crespi e Mario Fernández eram outros dos hermanos presentes) e um inglês – Charlie Mitten, que naqueles tempos surreais do Eldorado deixara nada menos que o Manchester United.
Não bastou para impedir o domínio do Ballet Azul do Millonarios, a vencer a maioria das ligas enquanto perdurou o Eldorado, até 1953 – após um acordo em Lima que previa para aquele ano a devolução dos craques aos clubes de origem. Pontoni deixou a Colômbia ainda antes, em 1952. Sem obter anistia perante a AFA, foi negociado pelo San Lorenzo inicialmente com o Nacional, onde o parceiro Martino já havia brilhado. Mas os uruguaios não aceitaram o preço de 150 mil pesos. A imprensa paulistana noticiava da boca do próprio Cícero Pompeu de Toledo que o São Paulo esperava contar com o veterano, cujos rumores no Santos foram afastados por Athiê Jorge Cury. O acerto deu-se com a Portuguesa, que o conhecia desde um triunfo por 4-3 sobre o Santa Fe em 1951.
Vivendo seu auge, a Lusa também derrotara o Millonarios (2-1) em excursão invicta que rendeu-lhe a prestigiada Fita Azul. A imprensa argentina noticiou que 10 mil foram recebê-lo no aeroporto. Pontoni chegou à Portuguesa junto do compatriota Juan José Negri, ex-Boca e River que fora ídolo no Estudiantes, a um time que também tinha um técnico argentino – o ex-pugilista Jim Lopes. Uma demora na regularização, porém, impediu que ele fosse usado na conquista do Torneio Rio-São Paulo, o que por outro lado aumentava a expectativa para o Estadual. Mas quem esperava ver o atacante explosivo da década anterior se decepcionou. Os irregulares elogios à passagem de Pontoni por lá se concentraram na sua grande habilidade em passes precisos de primeira aos colegas de ataque, sendo por vezes reconhecido como cérebro da Lusa também nas ordens dadas em campo (“estoy cá, volta Júlio” e “calma Nininho, de primeira aqui” foram algumas expressões portunholas registradas pelo Mundo Esportivo).
Mas a falta de fôlego, a massa três quilos acima do ideal, a lentidão e falta de combatividade e demora de entrosamento foram reiteradamente apontados também – o Mundo Esportivo também relataria que “temos que reconhecer que joga bem, sutilmente, maliciosamente. Joga tão bem que não consegue adaptar-se ao tipo de jogo rápido e até meio rústico da Portuguesa”. Para os padrões atuais, o argentino seria ídolo; seu clube, que no decorrer do certame trocou Jim Lopes pelo também argentino Armando Renganeschi, terminou em 3º e ele somou cinco gols em 17 jogos. Os números parecem razoáveis a um veterano bichado que sabia dar passes descritos como “mágicos” pelo mesmo Mundo Esportivo. O veredito na época, porém, foi de que ele nunca correspondeu de modo regular às expectativas, especialmente quando comparado ao desempenho que Antonio Sastre tivera mesmo como veterano pelo São Paulo.
Pontoni teria dado apenas vislumbres do craque que fora e perdeu de vez espaço no início de 1953, quando Aymoré Moreira assumiu o cargo de técnico. O argentino enfim voltou ao San Lorenzo, mas pelo acordo de Lima ainda não podia desempenhar-se oficialmente sequer como técnico. Ele manteve-se ativo no campeonato de times B até ser liberado em 1954, como jogador-treinador. Reapareceu no time principal em julho, entrando no decorrer de um 2-2 amistoso com o Deportivo La Coruña – onde atuava um ex-colega de 1946, Ángel Zubieta. Aguardou até setembro para voltar ao campeonato argentino, em derrota de 2-1 em casa para o Racing, pela 21ª rodada. Até marcou um gol na rodada seguinte, mas foi só. O Ciclón perdeu novamente, de 3-2 para o Lanús. E o ídolo não atuou mais; o centroavante azulgrana voltou a ser Francisco Loiácono, que defenderia as seleções argentina e italiana na década.
Na volta a Boedo, ele pôde destacar-se mais ensinando o jovem José Sanfilippo, futuro maior goleador do clube – e que, curiosamente, atuou no Brasil por Bangu e Bahia. Sanfilippo falou a respeito diversas vezes, em 1980 (“se Pontoni tivesse sido meu sócio durante toda minha campanha na primeira divisão, tranquilamente teria triplicado os gols da minha estatística pessoal”), em 2009 (“no time B, com 16 anos, meu professor foi René Pontoni, que já estava de volta, mas que mostrava toda sua classe. Ele me dizia “toque”, “ande”, “passe-a a mim” e eu, além de escuta-lo com atenção, lhe perguntava muitas coisas que me serviram para crescer profissionalmente”) e em 2015 (“tinha cinco operações no joelho, mas uma qualidade para te dar a bola na medida para que chutasses, um craque”). Também foi o principal ídolo para outro juvenil, Carlos Bilardo, depois técnico da Argentina campeã em 1986. Guillermo Stábile, seu treinador na seleção tri da América, declarou à revista peruana Match em 1957 que Pontoni fora o melhor jogador que vira.
El Huevo ainda foi técnico do San Lorenzo por 1955 (alternando-se com o time B, onde foi campeão no torneio da categoria) e em 1962, sem maiores resultados, trabalhando ainda no Newell’s, El Porvenir, Almagro, Tigre, Sportivo Italiano e no The Strongest, onde saiu em 1968 a tempo de escapar do terrível acidente aéreo que vitimou os bolivianos (e muitos argentinos também) em 1969. Em paralelo, desde 1952 ele mantinha uma sociedade com Mario Boyé, outro daqueles cinco jogadores convocados a todo o tri argentino na Copa América. Eles eram casados com esposas irmãs e abriram primeiro uma loja esportiva antes de se dedicarem à pizzaria La Guitarrita, a qual visitamos em 2017.
Um dos últimos reconhecimentos em vida veio em 1975, eleito para o “time dos sonhos” pela El Gráfico: Amadeo Carrizo; Carlos Sosa, Roberto Perfumo, Rafael Albrecht, Silvio Marzolini; Moreno, Néstor Rossi; Omar Corbatta, ele, Martino e Loustau. A revista, ao lançar em 2011 edição especial sobre os cem maiores ídolos da seleção, escreveu assim: “caso se unissem os conceitos de elegância, precisão e contundência, provavelmente no dicionário apareceria René Pontoni. (…) Era goleador, com cifras impressionantes, e (…) era inteligente e criativo, capaz de elaborar dezenas de jogadas por partida”. Ela já havia publicado trinta anos antes elogios de Obdulio Varela, visitado nos subúrbios de Montevidéu: “sabem o que eram vocês argentinos? Monstros… eu joguei contra todos eles. (…). Pontoni, Canteli, Sastre… eram deuses do futebol. Quando jogavam contra nós, sabem quanto tocávamos na bola? Quando a bola ia para fora…”.
Em 1983, foi a vez da El Gráfico admitir sem saudosismos que diversas estrelas do passado já não teriam como jogar nos novos tempos, mas sendo enfática de que Pontoni como uma exceção como alguém que ainda seria capaz de brilhar. Ele próprio, porém, já se manifestara na revista ainda em 1964 como um incrédulo de que os feitos dos anos 40 pudessem ser repetidos em um futebol de marcação já evoluída. Faleceu naquele mesmo 1983 surpreendido por um infarto a quatro dias do 63º aniversário, e em seu obituário a revista suspirou: “é um sacrilégio chamar Chancha ao centroavante mais fino, elegante, harmonioso, sutil e brilhante de toda a história do futebol nacional”, em referência ao apelido que questionava a gordurinha de quem soube se estabilizar no auge com 75 quilos.
Em 2013, quando o escalamos ao time dos sonhos do Newell’s, pontuamos pelo especialista Joza Novalis um “pense no Zidane. Agora, se lembre do Van Basten. Por fim, acrescente um pouco do Raí. Pronto, você chegou a um pouco do que era o René Pontoni”. Outro brasuca especialista no tema é Felipe Soutinho, autor do livro San Pontoni del Papa (que teve uma prévia disponibilizada aqui) e natural consultor à revisão da nota que publicamos em 2013.
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