A novidade da temporada argentina de 2018-19 é a Copa da Superliga, cujo final, em jogo único, se dará hoje entre Boca e o surpreendente Tigre, em trajetória tão comovente que fez os argentinos enfim debaterem seriamente o fim dos promedios que rebaixaram a equipe de Victoria e vencerem a queda de braço com a Conmebol para que clubes rebaixados ainda possam figurar na Libertadores de 2020, caso se classifiquem por outro torneio. Com a conclusão do torneio, vale relembrar Copas parecidas, de fim de temporada, que ocorreram no passado. Pois ao menos dois torneios lembram a atual Copa da Superliga, no sentido de ser uma Copa travada após o campeonato da primeira divisão e que reúne somente os times que dele participaram.
Beccar Varela é um sobrenome forte no esporte argentino, nomeando alguns jogadores da seleção de rúgbi (Manuel Beccar Varela inclusive esteve na excursão sul-africana que criou o apelido de Pumas ao elenco, em 1965; o irmão Daniel e um primo de segundo grau, Gonzalo, defenderam o time nos anos 70, enquanto Tomás foi notícia em 2017 ao propor a quem lhe assaltou a chance de jogar o esporte); o extinto campeonato argentino de seleções regionais, prestigiado especialmente nos anos 20; o combinado que enfrentou alguns clubes cariocas em 1937, revelando ao Flamengo seu ídolo Agustín Valido; e um torneio realizado duas vezes após os campeonatos de 1932 e 1933.
O campeonato de 1933, porém, se assemelhava mais às antigas Copas Competencia travadas no amadorismo, opondo clubes das associações “argentina” (entre aspas, pois só reunia, de modo oficial, equipes da Grande Buenos Aires e La Plata), rosarina e uruguaia. Peñarol e Nacional caíram ambos nas oitavas-de-final, respectivamente para Estudiantes e Independiente, ao passo que a decisão seria entre Racing e o Central Córdoba – que não era de Córdoba nem de Santiago del Estero (cujo Central Córdoba completa cem anos amanhã e ontem jogou a ida da decisão da segunda divisão pela segunda vaga na elite), e sim um rosarino onde brilhava o ídolo da seleção argentina Gabino Sosa. Após 2-2 no estádio do River já em fevereiro de 1934, o replay terminou finalizado nos tribunais, após os racinguistas não permitirem a cobrança de um pênalti para os rubroazuis.
A história fora outra na Copa Beccar Varela anterior, travada entre 8 de dezembro de 1932 e 29 de janeiro de 1933. O campeonato de 1932 marcou o primeiro título profissional do River, que havia se reforçado com um matador fenomenal: Bernabé Ferreyra, autor de 187 gols em 185 jogos pelos Millonarios e artilheiro da liga de 1932 – além de ser por anos a mais cara contratação do futebol mundial; sua compra junto ao Tigre foi por 50 mil pesos, o suficiente para ser superior ao dobro do recorde mundial anterior, algo só repetido quando Neymar chegou ao PSG. Bernabé ajudou a popularizar nacionalmente o River, ainda com menos torcedores do que o Racing. Afinal, o clube de Avellaneda era o maior vencedor do futebol argentino. Além de inúmeras Copas no amadorismo, ganhara nove campeonatos, sete deles seguidos nos anos 10 – marca só ultrapassada cem anos depois, pela Juventus, nas ligas de países campeões mundiais.
Apesar do reforço de peso, o campeonato de 1932 não fora fácil ao River: foi preciso um jogo extra com o Independiente após ambos terminarem com 50 pontos. Menos lembrado é que o Racing fez 49. O consolo ficaria para a Copa Beccar Varela. Libertadores não existia, mas a honra valia bastante na época (nos anos 30 havia até tira-teima para definir quem ficaria como vice-campeão, se dois times ficassem igualados…). E essa competição marcou a chegada de uma revelação do Instituto de Córdoba: Evaristo Barrera, que por sua vez faria notáveis 136 gols em 143 jogos pela Academia, sendo seu maior artilheiro no profissionalismo e provavelmente o maior atacante que jamais defendeu a seleção. O Racing investira 22 mil pesos nele; menos da metade da grana gasta em Bernabé Ferreyra, mas o suficiente para que aquele desconhecido chegasse sob desconfiança e cobranças, logo ultrapassadas: “o Racing tem o seu Bernabé”, diriam os jornais.
Uma outra diferença com a Copa da Superliga, além da ausência do fator Libertadores, é que a Copa Beccar Varela, apesar do nome, não era um mata-mata. Os dezoito times foram divididos em três chaves de seis cada e os líderes faziam então um triangular, tudo em turno único. Além do Racing, os outros líderes foram – vejam só – justamente Boca e Tigre, que estava exatamente no grupo que continha River e Independiente. De ressaca, campeão e vice ficaram exatamente nas duas últimas posições. Em pleno dia de natal, o Racing, por outro lado, garantiu-se com uma rodada de antecedência na fase final, com um 6-0 no Talleres de Remedios de Escalada. Embalo mantido no triangular, com um 5-0 no Tigre no estádio do River e um 3-0 no Boca na canha vizinha do Independiente. O triunfo categórico sobre os xeneizes consumou-se com 38 minutos de jogo, após Barrera anotar seu segundo gol na tarde.
O Racing padeceria de um jejum de 24 anos, entre 1925 e 1949, no campeonato argentino. Assim, a Copa Beccar Varela de 1932 serve para realçar a importância de alguns ídolos normalmente vistos como não-campeões; além de Barrera (que ficaria até 1938), o torneio coroou em especial o ponta Natalio Perinetti, desde 1917 no clube, já sendo o último remanescente do elenco hepta na Copa de 1930 e parando de jogar exatamente em 1933; os beques titulares da seleção de 1930, Fernando Paternoster (desde 1927 no Racing e que logo iria ao exterior) e José Della Torre (desde 1926, saindo em 1934 para jogar no America-RJ); outro defensor, o áspero beque José María González (1928-38); o goleirão Juan Botasso, titular da final da Copa de 1930 e que chegara no ano seguinte para ficar até 1935; o lateral Antonio De Mare (1926-38) e o meia-esquerda Vicente del Giúdice (1928-37 e 1939). Curiosamente, além de Della Torre outros dois daquele elenco serviriam o America-RJ, os atacantes Alberto Fassora e Roberto Bugueyro, em tempos em que o clube da Tijuca tinha mais títulos que Vasco e Flamengo.
Os anos de 1939, 1941, 1942, 1943, 1944, 1946 e 1949, por sua vez, teriam a Copa Adrián Escobar, que levava o nome do presidente da AFA. Ela já começava em mata-mata, mas, diferentemente da Superliga, ela era restrita aos sete primeiros colocados da liga – com o campeão entrando nas semifinais. A diferença mais notável era quanto à duração, com jogos de vinte minutos e com a final tendo trinta, e ao critério de desempate (o número de escanteios). Com um timaço reunindo em especial o trio de ataque com mais gols somados no futebol argentino, alinhado com Vicente de la Mata, Arsenio Erico (maior artilheiro do clube e do campeonato argentino) e o futuro ídolo são-paulino Antonio Sastre, o campeão Independiente já vinha de outros troféus subsequentes ao título de 1939: ganhara já em 31 de março de 1940 a Copa Ibarguren, tira-teima entre o campeão “argentino” e o campeão rosarino; e em 9 de julho de 1940 levantara a Copa Ricardo Aldao, entre o campeão argentino e o uruguaio.
A Copa Adrián Escobar de 1939, a princípio, seria travada inteiramente em 8 de dezembro daquele ano, graças àquele formato de jogos-relâmpago. O Independiente eliminou por 1-0 o Boca na semifinal. Na final, prevaleceu o 0-0 com o San Lorenzo e igualdade em 1-1 nos escanteios, mesmo após prorrogação. A final foi então ressuscitada em como partida preliminar a um amistoso entre Argentina e Uruguai em 15 de agosto de 1940. Dessa vez, cada tempo teria trinta minutos ao invés de quinze. Eugenio Maigán, aos 11 do primeiro tempo, e Juan José Maril, aos 24 do segundo, anotaram os gols sobre os azulgranas, cujo ataque reunia o matador basco Isidro Lángara, o brasileiro Waldemar de Brito (descobridor de Pelé) e Tomás Beristain, jogador da seleção que depois brilharia na Portuguesa Santista.
O torneio voltou em 1941 e serviu para coroar uma grande fase do Huracán, cujo posto tradicional de “sexto grande”, posto modernamente em dúvidas por só ter ganho um título argentino desde 1928 (em 1973) não era discutido: o Globo havia liderado boa parte do torneio de 1939, onde tornou-se o primeiro a bater em um mesmo turno os cinco grandes (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo). Quando a definição de grandeza foi dada em 1937, o clube cumpria dois dos três requisitos, os de vinte anos ininterruptos na elite e dois títulos nela – tinha quatro, assim como o River e o Independiente. Faltou ter ao menos 15 mil sócios, mas as boas campanhas mantidas após 1939 logo alavancaram os quemeros nisso; em 1945, já eram 23 mil sócios, só quinhentos a menos do que o Boca. Foram três finais seguidas na Escobar, com duas conquistas. Em 1941, com quartas-de-final em 1º de novembro e semis e final no dia 2, o Huracán bateu por 1-0 o Independiente e por 2-1 o Newell’s.
Na decisão, o Huracán não pôde na decisão contra o River, campeão regular de 1941 (e assim sede de todos os jogos) cujo timaço começou naquele ano a ser La Máquina e venceu por 1-0. Mas para 1942 a história foi mais saborosa ao time do bairro de Parque de los Patricios, cujo ataque era formado pelos três jogadores que mais marcaram gols na seleção brasileira: Herminio Masantonio (seis), Norberto Méndez (cinco e maior goleador da Copa América) e Emilio Baldonedo (sete). As quartas-de-final ocorreram todas no estádio do San Lorenzo em 26 de novembro e nelas o Huracán passou primeiramente pelo Newell’s graças aos escanteios: 4-2 nisso após 0-0 em gols. A semifinal e a final se deram em 1º de dezembro no estádio do River, bicampeão da liga. Enquanto a semi rendeu um triunfo de 1-0 no clássico com o San Lorenzo (sem gols e escanteios no tempo normal, houve dois tempos de cinco minutos como prorrogação e Ramón Guerra marcou o único gol no quarto minuto do primeiro) e nova revanche contra La Máquina. Após os quemeros terem sido os únicos em 1942 a vencerem as duas partidas na liga contra os bicampeões, bateram-nos por 2-0.
Curiosamente, os gols vieram de retaguarda, através do volante Manuel Giúdice, futuro técnico dos primeiros títulos argentinos na Libertadores (no Independiente bi de 1964 e 1965); e do beque Jorge Alberti, homem com mais partidas pelo clube. Em 1943, Masantonio, maior artilheiro do Huracán, já havia partido para o Defensor uruguaio quando foi travada a Copa Escobar, com quartas de final em 8 de dezembro no Monumental e semifinais e final no dia 11 no Gasómetro. Mesmo na casa do River, o Globo pôde batê-lo por 1-0. A semifinal foi um 0-0 com o Independiente, com 3-3 nos escanteios. Assim, o Huracán precisou da sorte de campeão para avançar: o desempate foi no cara-ou-coroa. Pela frente, o Platense. Após um 0-0, o Huracán pôde dar a volta olímpica diante de público de 20 mil pessoas em pleno estádio do arquirrival. Afinal, “goleara nos escanteios” por 4-1, podendo-se coroar campeão com um gol (do Tucho Méndez, ainda nas quartas-de-final com o River) em três jogos…
A edição de 1944, por sua vez, serviu para coroar o Estudiantes, sem nenhum título desde seu único campeonato até então, o de 1913. Com jogos nos dias 30 de novembro e 2 de dezembro, todos no Gasómetro, o Pincha pôde então se dar ao gosto de eliminar tanto La Máquina do River (0-0, com 4-3 nos escanteios), nas quartas; como o bicampeão da Escobar, batendo por 2-1 o Huracán nas semis. Na final, os donos da casa, o San Lorenzo. O jovem (ainda iria à Copa do Mundo de 1958) Ricardo Infante, posteriormente o único jogador a somar dez gols na lenda Amadeo Carrizo, fez o único gol do encontro, logo no primeiro minuto. No elenco alvirrubro campeão, figuravam Gabriel Ogando, um dos maiores goleiros do clube; o lateral Luis Villa, depois ídolo no Palmeiras autointitulado campeão mundial; o atacante Juan José Negri, depois jogador das duplas Boca & River e São Paulo (fez um dos gols do título de 1953) & Santos; e o maior artilheiro do time de La Plata, o ponta Manuel Pelegrina.
O torneio de 1946 foi abandonado após as quartas-de-final, travadas já em 29 de março de 1947, na espera do retorno do campeão de 1946 (o San Lorenzo) de sua consagradora excursão europeia. A Copa Adrián Escobar então voltou para uma última edição em 1949, com jogos nos dias 9 de dezembro no estádio do Huracán e 10 de dezembro no do Independiente. Dessa vez, serviu para premiar pela primeira vez um time rosarino desde que a dupla Newell’s e Rosario Central foi admitida no campeonato argentino, a partir de 1939. Elio Montaño, que jogaria uma partida pelo Internacional, fez os dois gols (aos 14 e 19 do segundo tempo) de uma rara vitória de virada no formato relâmpago do torneio, em 2-1 sobre o San Lorenzo nas quartas – outro com passagem futura pelo Brasil era o goleiro Eusebio Chamorro, que defenderia o Flamengo.
Nas semis, a Lepra bateu por 1-0 o Vélez, gol de Heraldo Taveri aos 18 minutos, e então encarou na decisão um Racing que acabara de finalizar o jejum de 24 anos sem títulos. A decisão foi das mais movimentadas: Ezra Sued abriu o placar para o Racing aos 2 e aos 15 ele foi ampliado por um antigo ídolo do rival Rosario Central, Rubén Bravo (que jogaria no Botafogo). Mas aos 18 o ponta Víctor Ortigüela diminuiu. Aos 9 do segundo tempo, Juan Armando Benavídez empatou. Com a igualdade também no escanteios, houve prorrogação. Enfurecida, a torcida racinguista invadiu o campo e tirou as camisas sangre y luto dos rosarinos, que jogaram o tempo extra com camisas emprestadas do anfitrião Independiente. O 2-2 se manteve, mas agora com os leprosos ficando à frente por 4-2 nos escanteios. Foi a grande conquista nacional do Newell’s até seu primeiro título argentino, já em 1974 – coroada ainda por uma exitosa excursão europeia com nove vitórias, três empates e só duas derrotas, em especial um 5-0 sobre o combinado Benfica-Sporting.
Essa não é a primeira vez que Boca e Tigre decidirão um título. Como outra prévia para a final da Copa da Superliga, vale relembrar nota do ano passado sobre a definição do Apertura 2008, em que ambos travaram um triangular com o San Lorenzo, e onde o Boca terminou campeão mesmo perdendo de 1-0 para os rubroazuis na partida final: clique aqui para conferir.
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