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Ramos Delgado, o capitão negro da Argentina que brilhou no Santos de Pelé

Nota originalmente publicada em 27 de agosto de 2015, para celebrar os 80 anos que Ramos Delgado (terceiro em pé na imagem acima, ao lado de outro argentino ídolo no Santos, o goleirão Agustín Cejas) teria recém-completado se estivesse vivo

Falecido em 3 de dezembro de 2010 em Buenos Aires, José Manuel Ramos Delgado foi um dos maiores zagueiros do futebol sul-americano. A ponto de ser considerado ídolo no River mesmo sem ganhar nenhum título em seis anos neste gigante e de ter atraído mesmo com 32 anos nada menos que o Santos de Pelé, onde também foi brilhante. Era um beque limpo, que saía jogando e de liderança serena, a ponto de ser capitão em 16 dos 25 jogos oficiais que fez pela seleção. Hora de relembrar um pouco um dos raros afro-argentinos conhecidos no futebol.

Era filho de um imigrante de Cabo Verde. Nos países de língua espanhola, a tradição é o sobrenome paterno anteceder o materno, ao inverso dos países de colonização portuguesa. Assim, seu sobrenome lusitano Ramos vinha antes do castelhano Delgado, o materno. No River dos anos 40 já havia brilhado um volante chamado José Ramos, curiosamente também nascido em Quilmes assim como o zagueiro. Talvez para diferenciar-se dele, usou os dois sobrenomes – algo que, se não é exatamente raro (Carlos Navarro Montoya, Ramón Medina Bello, as duas duplas gêmeas Barros Schelotto e Funes Mori são outros exemplos mais lembrados do futebol argentino), também não é tão comum.

El Negro Ramos Delgado também seguiu o xará José Ramos em outro ponto: embora nascido em Quilmes (em 26 de agosto de 1935), começou no Lanús. Se hoje os grenás formam uma equipe de médio porte acostumada a lutar no pelotão de cima, na época tinham sua tradição mas a expressão era diminuta. Começaram a fazer campanhas interessantes no início dos anos 50, mas em 1956 é que foi a primeira vez em que realmente ameaçaram lutar pelo título profissional, algo que só voltaria a ocorrer a partir de fins dos anos 90.

No Lanús em 1956, ano dos Globetrotters; e no River, onde na imagem à direita abraça o técnico Ángel Labruna

Aquela celebrada equipe acabou apelidada de Los Globetrotters, bom indicativo de sua qualidade. Dentre os feitos, um 4-0 no San Lorenzo, 4-1 no Huracán e um 2-0 no Boca dentro da Bombonera. O Granate também conseguiu, no primeiro turno, segurar um 0-0 no Monumental de Núñez diante do River, que viria a ser o grande concorrente pela taça. Estavam empatados na liderança quando ocorreu o jogo da volta. Em casa, o Lanús terminou o primeiro tempo vencendo, gol de outro destaque daquele time, Alfredo Tanque Rojas (jogador das Copas de 1958 e 1966 e que passaria igualmente pelo próprio River, mas brilharia muito mais no Boca).

O poderoso Millonario jogava desfalcado de dois pesos pesados: o goleirão Amadeo Carrizo, lesionado, e o xerife Néstor Rossi – no primeiro turno, onde os grenás souberam segurar um 0-0 no Monumental, Rossi lesionou o visitante Benito Cejas e, para não apimentar ainda mais a partida, foi poupado. Mas a camisa pesou mais que as circunstâncias. No segundo tempo, o River virou para 3-1. O Lanús conseguiu aprontar mais um pouco, com um 5-3 no Gimnasia LP e um 4-0 no Argentinos Jrs, mas o concorrente não perdeu mais, a ponto de garantir o título ainda na antepenúltima rodada.

Os grenás ficaram a só dois pontos não só de um primeiro título, mas de romper o oligopólio dos cinco grandes (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo), vigente desde 1930 e que nem o “sexto grande” Huracán conseguia quebrar. Os vices de 1956 sentiram o baque em 1957, onde foram penúltimos. Mas Ramos Delgado conseguia se destacar, a ponto de fazer no início de 1958 sua estreia pela seleção. E de ser convocado à Copa do Mundo da Suécia mesmo sem ter participado das eliminatórias.

Um capitão negro na Argentina: ele, com uma braçadeira celeste, é o segundo em pé. O penúltimo agachado é Alfredo “Tanque” Rojas, seu ex-colega no Lanús de 1956

Ele não atuou na Copa, escapando do vexame dos 6-1 para a Tchecoslováquia que eliminaram precocemente na primeira fase os hermanos. O River era a base daquela seleção e seus jogadores terminaram bastante afetados. O time havia sido tricampeão entre 1955 e 1957 e decaiu para quinto em 1958. O Millo não sabia, mas só voltaria a ser campeão dezoito anos depois, em 1975. Ramos Delgado foi contratado como reação à queda de rendimento e seria tido como um dos grandes ídolos desse largo período sem coroas.

Ele, aliás, poderia ter começado a carreira no River: fez testes lá antes de tentar no Lanús, mas sem aprovação. A falta de troféus não importava em falta de qualidade nos elencos que o clube foi tendo. Ramos Delgado participou de grandes resultados daquele período, sendo titular tanto nos 3-2 sobre o Real Madrid em amistoso no Santiago Bernabéu em 1961, quebrando oito anos de invencibilidade que o então pentacampeão europeu tinha em casa (curiosamente, os três gols argentinos foram de brasileiros); e um 2-1 no Santos no início de 1962, ano em que os praianos venceriam suas primeiras Libertadores e Mundial, quando aquele beque anulou Coutinho.

Ramos Delgado, também em 1962, foi à Copa do Mundo. Era pedido pela crítica, mas o técnico Juan Carlos Lorenzo só usou-o após perder na estreia por 3-1 para a Inglaterra. O beque fez sua parte: a Argentina não sofreu gols da Hungria no segundo jogo, mas também não marcou. O 0-0 deixou a situação periclitante e nova eliminação precoce se confirmou. A recuperação viria entre 1964 e 1965, quando El Negro enfim virou titular absoluto. Foi o capitão na conquista mais importante da Albiceleste até a Copa de 1978: a Copa das Nações, sediada em 1964 no Brasil, derrotado em casa por 3-0. Falamos aqui.

O zagueiro retratado como “melhor beque-central do mundo” em reportagem da Placar em 1970. Ano em que um campeão da Copa do Mundo foi seu reserva

Ele participou de todas as eliminatórias para a Copa de 1966, mas novamente não foi levado em conta pelo técnico Juan Carlos Lorenzo, que reassumiu a seleção às vésperas do mundial – e se limitou a usa-lo em um amistoso não-oficial contra o Cagliari em 1º de junho de 1966, um dos últimos testes pré-Copa. Ramos Delgado àquela altura estava no Banfield, com quem o Lanús, curiosamente, iniciaria uma rivalidade a partir dos anos 80; o zagueiro, assim, é de certa forma o único a representar a Argentina vindo dos dois lados do Clásico del Sur. Ao fim de 1966, os banfileños ficaram só em 13º, mas os santistas ainda lembravam daquele beque que os segurou pelo River em 1962. Quando Mauro Ramos de Oliveira deixou a Vila Belmiro em 1967, o Peixe contratou o ex-capitão da seleção argentina para repor a vaga do capitão do bi brasileiro.

Era tempo de renovação no Santos: os alvinegros haviam perdido o Estadual e a Taça Brasil em 1966, encerrando o ciclo do técnico Lula. Mas a renovação incluiu aquele veterano de 32 anos, enfim campeão pela primeira vez em clubes. E foi emocionante: o São Paulo lutava para encerrar dez anos de jejum e conseguia isso até o último minuto da última rodada, quando levou o empate do Corinthians. Terminou igualado com o Santos, o que forçou um jogo-extra fatal aos tricolores. Em doze minutos, o San-são estava 2-0 para os praianos, com o desconto são-paulino só ocorrendo a 2 minutos do fim.

Em 1968, não teve para ninguém. O título estadual veio com quatro rodadas de antecedência, mesmo com o fim de onze anos de invencibilidade do Santos contra o Corinthians pelo torneio. E venceu-se também o torneio nacional mais prestigiado, o Roberto Gomes Pedrosa. Em 1969, veio o tri estadual, títulos na Recopa Sul-Americana (torneio diferente daquele com mesmo nome existente hoje: reunia os campeões da Libertadores, similarmente ao que fez a extinta Supercopa nos anos 80 e 90) e também na Recopa Mundial (a Internazionale, derrotada na Itália, não se atreveu a vir ao Brasil jogar a partida da volta).

Como técnico do Belgrano em 1978, liderou o 1º turno da liga cordobesa, mas ficaria no vice para o rival Talleres

Em dupla de miolo de zaga ainda recordada com Djalma Dias, Ramos Delgado foi titular em todas as partidas decisivas desses títulos, assim como em outro evento famoso em 1969 – o dia em que o Santos interrompeu a Guerra de Biafra, na Nigéria. A qualidade de El Negro se revela também no fato de que Joel Camargo iria à Copa do Mundo de 1970 mesmo sendo reserva daquele argentino. Ramos Delgado se aproximou bastante de Pelé, a ponto de ser padrinho de uma das filhas dele, e de ser no restaurante do zagueiro em São Vicente que “o Rei” comemorou o nascimento do filho Edinho.

Mesmo passando dos 35 anos, desempenhou-se muito bem entre 1970 e 1971, lutando pela Bola de Prata da Placar. Em 1970, ele também foi o zagueiro escolhido na primeira eleição do Prêmio Arthur Friedenreich. Mas a idade pesou e em 1973 o argentino teve de manter o fim da carreira na Portuguesa Santista. Mas a casa era a Vila: foi técnico alvinegro entre 1977 e 1978. Teve o mérito de promover Pita, mas não fez sucesso. Após regressar à Argentina nos anos 80, treinando All Boys, River e Estudiantes (também sem maiores realizações), outra vez voltou ao Santos em meados dos anos 90.

Ele veio trabalhar nas categorias de base, abandonando temporariamente uma carreira de jornalista esportivo, onde havia se diplomado em 1994. Dois profissionais renomados dessa área, aliás, indicaram-no naquele mesmo ano para o time dos sonhos do Santos em eleição promovida pela Placar: Michel Laurence, criador da Bola de Prata, e o notório santista Milton Neves. Pouco antes, em 1993, a revista exaltou o hermano ao elogiar Ricardo Rocha: “desde Ramos Delgado, no fim da década de 60, o clube não tinha um becão assim”. El Negro Ramos Delgado, infelizmente, teve o mesmo triste fim de outra lenda argentina na Vila, o goleiro Agustín Cejas, com quem chegou a jogar por lá. Faleceu em 2010, com a memória destruída pelo Alzheimer. Sobre Cejas, confira este outro Especial. Também já dedicamos um sobre outros jogadores afro-argentinos e este outro para os hermanos que passaram pelo Santos.

Em uma volta ao River, como técnico em 1982: celebra com Fillol e Jorge García uma vitória sobre o Boca

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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