Rafanelli, o argentino do Expresso da Vitória vascaíno
A Copa Sul-Americana de 2020 teve a possibilidade de render um duelo entre Vasco da Gama e o Unión de Santa Fe nas quartas-de-final. Mas, em seus compromissos pelas oitavas-de-final, os cariocas caíram para o futuro campeão Defensa y Justicia e os santafesinos, para o Bahia. Não deixa de ser uma pena por um lado: eventual visita do Tatengue à Colina poderia ter propiciado homenagens mútuas a uma figura destacada entre alvirrubros e cruzmaltinos – o zagueirão Ramón Roque Rafanelli, o tempero argentino do lendário Expresso da Vitória vascaíno dos anos 40. Vale recordar Rafa (destacado ainda por outra camisa alvirrubra, a do Bangu, além de no Brasil ter defendido ainda também o Palmeiras), que teria completado cem anos nessa semana.
Qual grafia seria a certa?
Antes de relembrarmos a carreira do beque, vale buscar dois esclarecimentos: o primeiro é de que, ao menos segundo seu visto de entrada no Brasil, ele teria nascido em 3 de março de 1921, embora seja mais divulgada a versão de que ele teria nascido dois dias depois – rendendo já diversas homenagens da torcida vascaína na data de hoje, também programada pelo Futebol Portenho. Outra elucidação é sobre a grafia correta do seu sobrenome.
Soy Tatengue, página de torcedores do time argentino de origem do zagueiro, ainda o grafa como “Rafagnello”, que parece ainda ser mesmo a preponderante no país natal: foi a mesma grafia usada pelo tradicional jornal santafesino El Litoral nessa nota de 2017, assim como a dos blogs Historia del Fútbol Rosarino ao lembrar em 2011 da final do Litoral de 1939 (chegaremos lá) e Ser de River, nessa nota de 2015 recordando um amistoso de 1943 onde os millonarios enfrentaram o Unión (também chegaremos lá).
Como se vê acima, “Rafagnello” também foi a grafia inicialmente usada também pela imprensa brasileira, ao noticiar sua chegada. É o que se constata em buscas, na hemeroteca virtual da Biblioteca Nacional, pelas diferentes versões do sobrenome – na colagem acima, há trechos do jornal carioca Diário de Notícias de 6 de agosto de 1943 (manchete principal e nota à esquerda), do Correio Paulistano do dia seguinte (coluna do meio), e o texto dividido em três partes à direita extraído do Jornal dos Sports do dia 6 também. Mas ela não durou muito além daquele momento. Logo passou a usar-se na imprensa brasileira a versão “Rafagnelli” e ela ainda é bastante difundida.
O visto de entrada do jogador, documento hoje facilmente localizável no site FamilySearch, contudo, esclarece que a grafia na qual foi registrado é Rafanelli. O próprio jogador jogou essa pá de cal, com humor, em visita à redação do Jornal dos Sports, noticiada na edição de 7 de agosto. Sob auxílio comunicativo do colega vascaíno Emanuel Figliola, uruguaio, atribuiu os equívocos gráficos à pouca fama na Argentina (mesmo assim, com o tempo o próprio JS não pôde evitar alternâncias entre as escritas com e sem o G). O Diário de Notícias de 22 de agosto de 1943 até fez piada que parece continuar atual: “presta atenção: o Espineli teima em dizer que o seu nome se escreve Espinelli [nota do Futebol Portenho: para os argentinos, era Spinelli mesmo] e, agora, vem o Rafagnelli, assinando-se, porém, Rafanelli. Quanta complicação!…”. Tanto essa brincadeira como o esclarecimento pessoal do jogador constam na próxima colagem, mais abaixo.
Embora Rafagnelli permita diversos resultados no Google e na hemeroteca, nela de fato os resultados mais numerosos foram para a versão sem o G e com o I no final. Aparentemente já atento ao tira-teima permitido pelo FamilySearch, o twitter oficial do Unión grafou-o como Rafanelli mesmo que a foto carregada na mensagem datada de 28 de abril de 2020 (comemorativa dos 80 anos da estreia alvirrubra na liga argentina) o legendasse como “Rafanello” (essa traz resultados mínimos na Hemeroteca da BN). E havia ainda a “Rafaniello”, como o próprio jogador contou naquela visita humorada e exibida também nessas imagens levantados pelo twitter @EstudeVasco.
Iremos, pois, usar somente Rafanelli a partir daqui, mesmo em transcrições de matérias da época que eventualmente tenham usado outras versões.
Na Argentina, um desconhecido com glórias apenas locais
Já era 4 de abril de 1947 quando a edição daquele dia do Mundo Esportivo publicou o seguinte na quarta página: “vocês já viram Rafanelli atuar? Que tal? Bom, não é verdade? Talvez o melhor dos beques estrangeiros que têm atuado em equipes brasileiras. Cheguem em Buenos Aires e perguntem a uma pessoa de boa aparência, com cara de inteligente: conhece Rafanelli? Que tal Rafanelli? E ele dirá surpreendido, com um ar de palerma de quem julga haver equívoco na pergunta, que nada sabe. Na verdade, é assim: Rafanelli é o que ali denominam de ‘canário’. Não tem nada de portenho. Desconhece a cidade grandiosa, palmilhando-a com mil cuidados. É que Rafanelli é de Santa Fe, uma cidade quase como Santos, mas sem a importância da terra de Brás Cubas. Os grandes zagueiros argentinos chamam-se [Ludovico] Bidoglio, [Humberto] Recanatini, [Oscar] Tarrío, [Fernando] Paternoster”.
A nota seguia: “hoje, cultiva-se admiração por [José] Salomón, um marechal de Avellaneda, fala-se bem de [Oscar] Montañés ou cita-se [José] Marante com elogios sem conta. De Rafanelli, nada, nada e nada. Rafanelli, porém, é o zagueiro nascido na Argentina que tem melhor contrato. Ganha mais do que a revelação do San Lorenzo: Oscar Basso”, por sinal futuro ídolo botafoguense. “Rafanelli até certo ponto mostra a argúcia de Ondino Viera. Foi um dos muitos jogadores que foram para São Januário sem cartaz, como um bilhete de loteria para acertarem. Craqui aqui, desconhecido em sua terra, Rafanelli sempre se apega ao ditado: sento de casa não faz milagre. E vai limpando a área e vai ganhando milhares de cruzeiros. Esse futebol…”.
De fato: ao eleger os cem maiores ídolos do Boca, em 2010, a revista El Gráfico cravou os nomes dos citados Bidoglio e Marante. Em 2011, ela colocou Recanatini na revista especial dedicada aos cem ídolos da seleção, assim como Paternoster e também Salomón – estes dois, inseridos no mesmo ano na edição especial voltada aos cem maiores do Racing. Tarrío, por sua vez, deixaria o San Lorenzo para brilhar no futebol português, ao passo que Montañés foi eleito em 2016 pelo Futebol Portenho para o time dos sonhos do Gimnasia; foi o capitão da seleção em um 5-1 argentino sobre o Brasil em São Januário em 1939, pior derrota caseira brasileira até os 7-1.
Rafanelli, na verdade, não era da cidade de Santa Fe, capital da província de mesmo nome. Seu visto o identifica como natural de Margarita, no interior dela. De início, o sonho de infância era ser militar, tendo como ídolo Alexandre o Grande, segundo perfil dele que o Sport Ilustrado publicou em 1945. Mas já com 14 anos começou a jogar bola inicialmente escondido dos pais, Antonio Rafanelli e Teresa Cuello. Foi então aprovado pelos juvenis de um dos dois times que dividem a capital provincial.
O Unión, que em 1929 aplicara a derrota mais elástica sobre o Chelsea em uma excursão dos londrinos pela América do Sul (um 5-0 muito recordado em Santa Fe), vinha de um período áureo na década seguinte. O campeonato argentino ainda era restrito oficialmente à Grande Buenos Aires e La Plata, de modo que até a dupla Newell’s e Rosario Central estava restrita ao campeonato rosarino. Isso também acontecia com a dupla principal da liga municipal santafesina. Mas entre 1931 e 1940 só três edições escaparam das galerias alvirrubras, o que incluiu dois tricampeonato. No contexto do segundo deles, o de 1938-40, Rafanelli conseguiu ainda com 18 anos seu lugar na zaga do Tatengue.
Em 1939, então, Newell’s e Central foram admitidos no campeonato “argentino”, despencando o prestígio da liga rosarina. Naquele ano, os outros times de Rosario então buscaram compensar fomentando o Torneio do Litoral, tentativa de liga interprovincial com dois representantes da cidade de Paraná (os combinados entre Patronato e o Belgrano local e entre o Paraná e o Talleres local) e três de Santa Fe: a dupla principal e a terceira força, o Gimnasia y Esgrima santafesino, quatro vezes campeão municipal entre 1927 e 1933. O Unión terminou dividindo a liderança com a terceira força rosarina, o Central Córdoba. Nos jogos extras, começou surrando-o por 6-2, mas o saldo de gols não bastou para coroa-lo após derrota de 3-1 no segundo jogo: forçou-se um terceiro na neutra Buenos Aires, onde Rafanelli não evitou nova derrota, por 2-1 – resgatamos essa partida em meio à nossa nota anterior, publicada anteontem, inclusive.
Ainda assim, o domínio grande do Unión em sua liga (na Copa do Mundo de 1934, ainda que se ressalte que a Argentina abdicasse de levar os seus principais jogadores, já profissionalizados, a Albiceleste levou consigo os alvirrubros Alberto Galateo e Federico Wilde) fez a diretoria pleitear junto à AFA a inclusão do clube na elite argentina também. A federação não assentiu por completo: afiliou o Tate para a temporada de 1940, mas impôs que os novatos começassem na segunda divisão (ainda assim, apenas em 1948 é que o arquirrival Colón seria contemplado com a mesma medida; o vizinho, sem a mesma concorrência de outrora, pudera vencer quatro das cinco ligas santafesinas entre 1943-47).
Como destacado pelo twitter unionista oficial, Rafanelli tomou parte da estreia histórica do clube e da cidade de Santa Fe em um campeonato argentino, um 4-2 sobre o Estudiantes de Buenos Aires – também conhecido como Estudiantes de Devoto em referência ao bairro portenho onde tinha seu estádio e onde ainda mantém sua sede social (e como Estudiantes de Caseros por ser essa a cidade onde construiu o campo utilizado desde os anos 60). Apesar da estreia promissora, o primeiro ano do Unión na liga argentina foi de adaptação à frequência então incomum de bate-voltas a Buenos Aires: foi nono, longe de um acesso que ainda premiava apenas o campeão, o Argentinos Jrs. Em 1941, Rafanelli e colegas já ficaram em quinto, a seis pontos de uma segunda posição ainda assim distante da campanha arrasadora do campeão Chacarita, ao passo que perderam a coroa na liga municipal. A recuperaram em 1942, quando também voltaram a ser quintos na segundona nacional, onde o recém-rebaixado Rosario Central não tomou conhecimento de uma concorrência que incluía ainda o Vélez e o Quilmes.
Para 1943, a aspiração para os lados do estádio 15 de Abril já era maior. Em 27 de fevereiro, o time de basquete unionista foi campeão argentino (esse departamento revelaria nos anos 90 o ala-pivô Carlos Delfino, medalha de ouro nas Olimpíadas de 2004); e, em 21 de março, o Tatengue bateu em sua casa por 3-2 a tão afamada La Máquina, apelido do timaço riverplatense bicampeão da elite em 1941 e 1942. Não é difícil encontrar notas que afirmem que Rafanelli teria jogado pelo River, nem que fosse como juvenil – atribuindo-se inclusive que sua ausência no célebre duelo de 1948 do Millo contra o Vasco teria sido por receio de como ele se sairia enfrentando o ex-clube. Rafa, contudo, nunca defendeu a equipe de Núñez. O que sim houve foi uma sondagem séria após aquele amistoso.
Quando a temporada começou, as expectativas se cumpriam: o Unión era o grande concorrente do líder Vélez na Primera B. O zagueirão, porém, não ficaria até o fim. Os santafesinos precisaram se contentar com a honra do vice-campeonato, sem subirem ainda, sete pontos abaixo da campanha vencedora de La V Azulada.
Sondado pelo River, terminou no Vasco
Técnico vascaíno desde 1942, o uruguaio Ondino Viera foi o responsável pela sugestão de Rafanelli e sempre o exigiria nos clubes brasileiros pelos quais passaria. Mas o clube da Colina chegou a dar a contratação do argentino como perdida diante da concorrência da Banda Roja: aquela primeira colagem de notícias sobre sua vinda mostram que a impressão vascaína era de que “consegui-lo é impossível porque o River está em cima dele. Ofereceu 200 mil pesos só pelo passe”, registrou o Jornal dos Sports.
A negociação se arrastou porque, em tempos de muito mais valor dado à honra, os representantes cruzmaltinos teriam recebido promessa verbal dos unionistas para então receberem inicialmente informação de que não seria cumprida. Na mesma nota, falou-se que o Unión teria tratado de providenciar a demissão de quem teria faltado com a palavra. O Correio Paulistano completou, um dia depois da nota do JS: “depois de ser esperado por várias semanas, resolveu embarcar quando o presidente do Vasco já não esperava a sua chegada e considerava mesmo encerradas as negociações”.
O negócio foi fechado por 1,5 milhão de cruzeiros. Voltando ao anúncio do Jornal dos Sports, a conclusão da nota era feita com primeiras palavras do argentino destinadas ao novo clube: “eu tenho sabido de compatriotas meus que, a despeito de suas boas qualidades, são perseguidos por incrível má sorte. Para lhes ser sincero, quando alguém me fala disso, chego a ficar apavorado. Depois, me encho de coragem. O que tiver de acontecer tem forças… sim, tem força. E minha ‘estrela’ não me desemparará”. De fato, gente badalada na Argentina não vinha vingando tanto no Brasil.
Primeiro time brasileiro a importar largamente hermanos, o America não emplacou com uma colônia em 1933 que incluía um campeão de Copa América (Juan Rivarola) e um titular da Argentina vice mundial em 1930 (José Della Torre). Outro da Argentina vice de 1930, o ponta Mario Evaristo lesionou-se em seu único jogo pelo Santos, em 1938. Em 1939, o próprio Vasco enfrentara problemas para regularizar as contratações de Bernardo Gandulla e Raúl Emeal, ambos com passagens prévias pela seleção e imediatamente campeões no Boca assim que voltaram a seu país, em 1940 – enquanto o Flamengo, naquele mesmo 1939, até encerrava seu pior jejum estadual com uma colônia argentina.
Só que quem deu certo naquele Fla haviam sido justamente gente com menos cartaz na Argentina, a exemplo do talismã Agustín Valido e de Carlos Volante, e não o maior artilheiro da história do Gimnasia LP (Arturo Naón) ou um campeão mundial pela Itália em 1934 feito Raimundo Orsi. Como se não bastasse, um promissor reforço rubro-negro para 1940, Julio Castillo, acabou falecendo naquele mesmo ano, vitimado por uma diabetes não comunicada sob temor de ver o negócio cancelado. Teófilo Juárez tivera banca de campeão por River e negociado com o Atlético de Madrid nos anos 30, mas El Indio, inicialmente aplaudido no São Paulo, saiu dos fundos tricolores após atuação ruim na decisão estadual de 1940, contra o então Palestra Itália; virou a casaca e era comparado a Domingos da Guia, mas tampouco deu sorte, precisando encerrar precocemente a carreira ao lesionar-se como palestrino no certame de 1941.
O autor do primeiro gol de La Bombonera e jogador de seleção tanto no Boca como no San Lorenzo (Ricardo Alarcón) e um beque rústico dos primeiros títulos profissionais do Independiente (Sabino Coletta, também aproveitado pela seleção) não passaram dos dez jogos na Gávea, embora integrassem o período do tricampeonato seguido flamenguista de 1942-44. O citado Volante inclusive chegou a teorizar que a menor pressão psicológica de quem deixava a Argentina sem tanta celebração parecia favorecer os reforços menos badalados. Escanteado no Independiente, Armando Renganeschi veio do nanico Almagro para construir sua exitosa carreira brasileira a partir do Bonsucesso para então destacar-se inicialmente por Fluminense (bi em 1940-41 com outro ex-Almagro, o citado Américo Spinelli) e São Paulo. O Bonsucesso também foi a primeira parada de Juan Echevarrieta após ser expulso do Gimnasia, em 1940. Foi dispensado também por Gentil Cardoso para então virar dono da melhor média de gols do Palmeiras.
Mas e Rafanelli, afinal? Ele estreou em um 5-0 contra o Bonsucesso em 28 de agosto de 1943 e teria agradado desde o início, mesmo com a nau vascaína perdendo as chances de título estadual bem antes das rodadas finais; chegou a sofrer inclusive sua pior goleada no clássico com (o campeão) Flamengo, 6-2. E foi ultrapassada até pelo São Cristóvão, que fechou o pódio o Fluminense. O embrião do Expresso da Vitória seria o time de 1944: campeão do Torneio Relâmpago e do Torneio Municipal, arrastou a definição do Estadual até a última rodada – marcada pelo tricampeonato flamenguista ocorrendo por um gol no final, anotado por um Valido em lance sempre reclamado pelos vascaínos como faltoso.
Em 1945, não teve jeito: a Colina superou nove anos de um jejum finalizado brilhantemente, com uma campanha invicta onde se pôde celebrar ainda na penúltima rodada, após um 4-0 no Madureira. O Jornal dos Sports, além de equiparar a importância de Rafanelli na campanha à do artilheiro Ademir de Menezes, já o vinha exaltando especialmente desde um 3-3 amistoso com o Palmeiras ainda em junho daquele ano: “o Vasco da Gama teve no zagueiro Rafanelli a sua figura de mais fulgor. Mais uma vez, o jogador de Santa Fe revelou-se como o maior zagueiro dos que atuam na Capital Federal. Pelo menos aqui nenhum outro fullback conseguiu agir com um sentido mais irrepreensível”. Anos mais tarde, em entrevista publicada em 8 de maio de 1953 no jornal paulista Mundo Esportivo, o argentino recordou: “meu maior prêmio recebi em 1945, quando o Vasco sagrou-se campeão invicto. Tal como meus companheiros de equipe, fui premiado com a importância de 70 mil cruzeiros”.
Em 1946, Ademir foi para o Fluminense e o estadual se embolou, com os tricolores, Botafogo, Flamengo e o ainda grande America – rubros e vascaínos tinham ainda a mesma quantidade de títulos estaduais – se igualando na liderança e forçando um quadrangular extra que deixou a Cruz de Malta, quatro pontos abaixo do quarteto, de fora. Ademir seria decisivo para o Flu terminar campeão, com as Laranjeiras tendo disparado o melhor ataque (74 gols), em contraste com os 42 do Vasco. Isso compensou em muito o fato de a defesa dos campeões ter sido mais vazada (36 gols antes do quadrangular extra) que a do time de Rafanelli (33), que seguia fazendo bem o que lhe cabia junto com Augusto e Barbosa. Um primeiro questionamento mais sério ao argentino viria em janeiro de 1947. Vasco e Palmeiras representaram em Montevidéu o Brasil em um hexagonal amistoso (em tempos de muito mais valor a esses torneios) com as duplas Boca & River e Nacional & Peñarol.
O Vasco foi lanterna e, após derrota de 3-1 para o Boca, a atuação do zagueiro foi cornetada pelo Diário da Noite com a manchete “Rafanelli e Jorge ficaram com complexo de Boyé”, em alusão ao artilheiro do campeonato argentino de 1946 que integrara também a Albiceleste vencedora da Copa América em 1945 e 1946. Mario Boyé, afinal, marcou dois gols em um momento em que o Boca jogava com dois homens a menos. No retorno ao Brasil, os cariocas venceram em março o prestigiado Brasileirão de seleções estaduais, empregando os cruzmaltinos Augusto, Haroldo, Eli, Danilo, Jorge e Chico nos 4-1 pela finalíssima contra a seleção paulista. Veio então o estadual de 1947 e não teve para ninguém longe da Colina: melhor ataque mesmo ainda sem Ademir, a melhor defesa e outro título estadual invicto. Além da conquista ser especial também por fazer o Vasco enfim ultrapassar o America em títulos estaduais, credenciou-lhe o direito de representar o Brasil no pioneiro Sul-Americano de Clubes de 1948 – em função da taça da seleção carioca naquele Brasileirão de Estados.
Uma das páginas mais gloriosas do clube e do futebol brasileiro, contudo, também significou o início do fim para Rafa em São Januário. Ele foi titular ao longo da competição, mas, talvez recordando-se daquela exibição ruim contra o Boca, o treinador Flávio Costa optou por não utiliza-lo no jogo contra o River, partida que definiria o torneio. Costa explicou à Placar, já em outubro de 1975: “ele era um excelente central. Mas, na véspera, senti que ele estava nervoso. Era de Santa Fe, província do interior, e nunca tivera cartaz na Argentina. Sentia o peso de ter de enfrentar seus famosos patrícios. Preferi escalar Wilson, que nem sabia o nome dos argentinos”. O zagueiro até atuou na partida, substituindo o próprio Wilson no decorrer do jogo a partir da uma lesão do surpreendente titular da ocasião. Mas pareceu nunca ter digerido a opção do treinador, começando a ter um ambiente conturbado com Costa e a direção.
Estrangeiro recordista de jogos no Bangu, nem tanto no Palmeiras
Suspensões se tornaram comuns ao longo de 1948 (em que o Botafogo encerrou longo jejum justo quando ironicamente negociou o estrelista Heleno com o Boca) e o Vasco o colocou à disposição no mercado – ainda que a um preço alto demais para o Olaria, que segundo o Jornal dos Sports “estava disposto a conquistar os excedentes do stock vascaíno – Barqueta, Rafanelli, Djalma, Tuta, Mário e Moacir. As negociações não chegaram a bom termo, porque faltou capital, pois só o preço de Rafa é pra cima de 200 mil pacotes”. O Diário da Noite, por sua vez, registrou que o argentino chegou a manter a forma em treinos no America e que teria sido sondado também pelo Fluminense e principalmente pelo Palmeiras – em negócio que só não foi fechado pelos alviverdes já esgotarem o limite de estrangeiros, segundo a nota, que também narrou que Rafanelli cogitara voltar a seu país.
Quem fechou com ele, contudo, foi o Bangu, por 250 mil cruzeiros. O time de Moça Bonita buscava suprir a lacuna de ninguém menos que o astro aposentado Domingos da Guia. O argentino estreou em um 2-2 com o Flamengo em 31 de março de 1949 e não dava espaço ao próprio Domingos (que ainda frequentava o elenco como assistente técnico e eventual reforço para treinos e amistosos) nem nos treinamentos, exaltou o Pequeno Jornal. E um reencontro com o Vasco pareceu carregado de rancores: um 2-2 em julho rendeu a Rafanelli seis pontos após um choque com a versão vascaína de Heleno de Freitas, destacou o Diário de Notícias. O ex-clube foi campeão, mas o argentino seguiu bem na nova casa: os alvirrubros tiveram uma defesa menos vazada que a do vice-campeão Fluminense. E se fortaleceram ainda mais trazendo Zizinho em março de 1950.
O Expresso da Vitória foi novamente campeão em 1950, com o Bangu terminando em terceiro, quatro pontos abaixo – e a um do vice, o America. Em 1951, então, Rafanelli e colegas primeiro venceram em janeiro o Torneio Início do Rio-São Paulo. Depois, fizeram sucesso na Europa em um combinado com o São Paulo, com direito a um 3-0 na seleção holandesa, um 4-3 no combinado de Munique, um 3-2 no Racing de Paris (então a principal força da capital francesa) e um 4-1 no Sporting Lisboa (então o maior campeão português), dentre outros, em um setor defensivo protegido ainda pelo também argentino José Poy – outro que muito mais reconhecido no Brasil do que na terra natal.
Na volta ao Rio de Janeiro, a metade alvirrubra do combinado esteve muito perto da reconquista estadual: os banguenses terminaram a temporada igualados ao Fluminense, forçando finais, travadas já em janeiro de 1952. Faltou sorte: na primeira delas, derrota de 1-0, o argentino sofreu uma entorse no joelho e, diante da inexistência de substituições, precisou ficar em campo; fez número como ponta-direita e desfalcou o time nos 2-0 sofridos na segunda final, detalhou o perfil do beque no Bangu.net. O Bangu ainda se intrometeu entre os quatro primeiros do estadual de 1952, embora já longe de disputar contra o canto do cisne do Expresso da Vitória (que, entre 1945-52, fez o Vasco saltar de quinto para segundo maior vencedor estadual, abaixo apenas do Flu). Rafanelli, ainda assim, foi celebrado: cumprindo seu décimo ano no Brasil e sem registrar expulsões mesmo sendo zagueiro, foi agraciado com o Prêmio Belfort Duarte. Ele fez sua última de suas 122 partidas pelo Bangu em 31 de janeiro de 1953, em amistoso vencido por 5-3 sobre o Atlético Mineiro. Ondino Viera, que o levara ao Bangu, agora treinava o Palmeiras, que enfim acertou com o beque.
Rafanelli, porém, não vingou em São Paulo. Teve uma estreia muito criticada (vitória apertada de 4-3 sobre a Portuguesa, em 26 de abril, pelo Rio-São Paulo que viria a ser conquistado pelos rubroverdes) e sequer ficou para o estadual: disputou outras três partidas pelo Rio-São Paulo, já sem nem mesmo vencer (2-1 para o Santos, 3-3 com o Flamengo e 3-1 para o Bangu).
Assim, na antevéspera do jogo com o Flamengo, saíra aquela nota do Mundo Esportivo, onde ele já precisava dar explicações: “não estou velho como dizem. Tenho apenas 32 anos de idade. Reconheço que não tenho jogado bem e isso naturalmente devido ao fato de ter estado inativo. Verdade que também senti a mudança de clube e mesmo de clima. Devo dizer, no entanto, que fiz o possível para corresponder. Essa mesma torcida que me atirou os mais ingratos epítetos um dia verá que está errada. E esse dia não demorará, pois venho treinando assiduamente, com a melhor boa vontade possível, a fim de recuperar minha melhor forma. Se não todos, pelo menos a maioria dos jogadores – creio eu – sente os reflexos inegáveis de uma mudança. Aconteceu comigo e poderá acontecer com qualquer um”.
Porém, com a sucessão de resultados ruins, ele só durou mesmo por mais três amistosos esporádicos: 6-0 no Velo Clube e derrotas de 3-1 para o Guarani e de 5-3 para o Paulista de Jundiaí, em 12 de julho – é o que consta em seu diminuto perfil no Verdazzo. Nem mesmo seu adorador Ondino Viera conseguiu mantê-lo diante da tanta pressão de uma torcida decepcionada e conhecida pela superexigência até com ídolos. Rafanelli chegou a fazer testes no XV de Jaú, mas o negócio com os palmeirenses não saiu e o argentino radicou-se mesmo no Rio de Janeiro. Foi solteiro convicto por muito tempo, segundo outra informação prestada naquela nota de 1953, onde declarava ainda estar à procura de alguém ideal para os cuidados do lar – embora viesse da Argentina já como pai de Roberto (que lhe daria os netos Silvina e Marcelo), terminou por casar-se com Laura Sanches. Com ela, falecida em 1999, teve uma filha, Romina.
Em 1982, a Placar pela primeira vez elegeu um time dos sonhos do Vasco. A velha guarda do colégio eleitoral votou em peso no argentino, como os ex-colegas Ademir, Chico, o comentarista Sérgio Noronha e os ex-presidentes Ciro Aranha e Eurico Lisboa, embora o preferido para acompanhar Augusto já fosse Bellini. O próprio Bellini não foi reeleito em nova votação da revista entre torcedores ilustres, em 1994, mas prevalecia ali a recente aura de tetracampeão de Ricardo Rocha – ainda que Ademir novamente votasse no ex-colega, contemplado também pelos votos de Barbosa e Martinho da Vila (o músico tornou a insistir com o argentino na terceira e última eleição, em 2006).
Rafa viveu pouco além dos 80 anos. Embora confiasse naquela entrevista de 1953 que acreditava “que o que possuo garanta os dias do futuro”, passou os últimos deles na Docelar, casa de repouso niteroiense, em um quarto humilde sem nem mesmo um televisor em preto-e-branco. Houve tempo para uma homenagem junto a velhos colegas do Expresso da Vitória em 1997, quando a Conmebol equiparou o Sul-Americano de 1948 à Libertadores e contemplou o Vasco com uma vaga na Supercopa (precisamente na última edição desse torneio), competição que reunia somente os campeões de Libertadores – por sua vez, um troféu que só chegaria à Colina no ano seguinte.
O argentino foi mesmo um dos últimos sobreviventes dentre os ícones daquele timaço – depois dele só restaram Augusto, Lelé e por fim Friaça. Partiu às 6h50 de 6 de julho de 2001 no Hospital Estadual Azevedo Lima, onde se internara para tratar de uma pneumonia, sendo enterrado em Maricá.
https://twitter.com/VascodaGama/status/1367948244685365251
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