Quando o Racing não deixou de existir, salvo pela torcida
Hoje o Racing festeja uma liderança de seis pontos de diferença (ainda provisórios, pois o concorrente Defensa y Justicia ainda jogará) restando quatro rodadas, após ter batido ontem a noite o Estudiantes pela contagem mínima, gol de Darío Cvitanich. Se o enfoque na conquista argentina custou uma eliminação precoce na Sul-Americana, há 20 anos a preocupação era a mais pura sobrevivência como instituição. Pois aquela quinta-feira de 4 de março de 1999 entrou para a história como a data em que “deixou de existir o Racing Club Associação Civil”, no nocaute verbal da síndica Liliana Ripoll.
A quebra do Racing estava longe de ser algo recente. Mesmo em seu auge, o clube era mal administrado, ficando historicamente marcado por espasmos de glórias. Foi assim com o tri seguido (o primeiro do profissionalismo argentino) de 1949 a 1951, a encerrar jejum de 24 anos no campeonato argentino – por si só, maior que qualquer jejum dos outros ditos “quatro grandes”, o grupelho que forma com o rival Independiente e também com San Lorenzo e a dupla Boca e River. Depois foi assim com os dois títulos e um vice levantados entre 1958 e 1961: tão logo o elenco envelhecia ou se desmanchava, o rombo financeiro voltava a se impor.
Depois do título de 1961, por exemplo, o clube já despencou para nono em 1962 e teve outras duas campanhas abaixo do quinto lugar antes do período dourado vivido entre 1966 a 1967 a relativamente estendido nos dois anos subsequentes. Terminar em sexto em 1965 foi inclusive um feito: o time estava na rabeira da tabela, com o recém-aposetado artilheiro Juan José Pizzuti sendo contratado a partir da 19ª rodada daquele certame mais como um bombeiro do que como um técnico com status na função em si. Seguiu-se então quatorze jogos invictos que catapultaram a Academia.
Sete das dez vitórias que o clube teve no torneio vieram nessa série, que chegaria a 39 jogos de invencibilidade seguida com o campeonato de 1966 – um outro recorde no profissionalismo, derrubado só pelo Boca de Carlos Bianchi (exatamente em 1999, por sinal). Nascia a Equipo de José que ganharia o campeonato de 1966 e levantaria em 1967 a única Libertadores racinguista e o primeiro Mundial do futebol argentino, além de ser vice no torneio doméstico. Ainda sob José Pizzuti, o time manteve-se no páreo em 1968, chegando ao triangular-final do Nacional, e em 1969, quando fez a melhor campanha da primeira fase do Metropolitano antes de sucumbir nos minutos finais para o futuro campeão Chacarita na semifinal.
O treinador então ascendeu à seleção e rapidamente o time decaiu a ponto de terminar duas vezes seguidas em 11º lugar (em 1970 e 1971), na época a pior colocação da história do clube. Veio em 1972 um vice enganoso com o goleiro Ubaldo Fillol, pois e 1973 a colocação já era ainda pior: 12º. Em 1975 veio o 16º lugar. E em 1976, a primeira briga oficial para não cair, terminando em penúltimo, salvo por um ponto. Rondou então normalmente pelo 10º lugar, exceto o 5º logrado em 1981 – para já em 1982 terminar em 16º e por fim em 17º em 1983, quando enfim foi rebaixado. Subiu à elite somente no fim de 1985. Como o campeonato da primeira divisão da temporada 1985-86 já estava em andamento, o clube ficou inativo no primeiro semestre de 1986. Alugou seu elenco ao Argentino de Mendoza, que sequer foi às fases finais regionais por um lugar na segunda divisão.
Novos espasmos vieram em 1988, com o título da primeira Supercopa encerrando jejum de 21 anos, e a co-liderança ao fim do primeiro turno do campeonato de 1988-89; e entre 1992-94, quando o clube chegou a nova final de Supercopa e chegou a ter pinta de campeão do Apertura 1993, finalizado só no ano seguinte. Ainda foi vice do Apertura 1995 e chegou às semifinais da Libertadores em 1997, mas sempre “rebolando” nas finanças. Em 1998, reuniu um elenco de grandes nomes apostando que um eventual título atraísse credibilidade – o presidente Daniel Lalín pediu recuperação judicial para ganhar tempo contra as medidas expropriatórias dos credores. O elenco conseguiu empolgar no início, batendo com requintes de humilhação o Independiente na casa rival, em placar só repetido exatamente em 2019 para clássicos no campo do Rojo.
A equipe, porém, teve pela frente exatamente aquele Boca de Carlos Bianchi muito mais eficiente, a engatar a invencibilidade de 40 jogos na temporada 1998-99 suficientes para ultrapassar em um a marca da Equipo de José. O terceiro lugar não bastou e apenas maquiou as estatísticas, pois a Academia cedo ficou longe da briga pela taça. As estrelas reunidas por Lalín especialmente para aquele Apertura 1998 (os habilidosos Ángel Morales e Diego Latorre, o bom goleiro Gastón Sessa e o técnico Ángel Cappa) já abandonavam o barco, e o característico azar do time fez com que o ídolo que ficara para o Clausura 1999, Rubén Capria, recontratado por Lalín na mesma época seis meses após ter sido vendido ao México, lesionar-se em 1999 e perder quatorze rodadas. A conversão de recuperação judicial em falência já estava à vista em 1º de fevereiro de 1999, data da edição em que a revista El Gráfico colocou a fiel torcida na capa sob os dizeres “essa história não pode terminar assim – Racing vive”.
Em 4 de março, parecia não haver jeito, porém. A administradora Liliana Ripoll viraria a vieja chiflada nos cânticos racinguistas, e sua efígie figurou em notas falsificadas de pesos jogadas em provocação da torcida do Independiente exatamente no último clássico. Uma injustiça causada pela emoção cega da paixão dos fanáticos, na visão serena de Humberto Maschio, figura da Equipo de José que àquela altura em 1999 integrava a comissão técnica mesmo sendo ele próprio um credor de nove meses de salários atrasados (havia sido assistente na comissão técnica de 1995, como espião): “saí correndo a campo como os demais torcedores do Racing. Não podia acreditar. Não tinha bronca quanto a Ripoll, porque demonstrou ser uma grande senhora, mas creio que esse gesto dos torcedores do Racing impediu que o clube deixasse de existir”.
Vinte anos depois, entrevistada pelo La Nación, Ripoll declarou que a frase havia sido bem calculada para gerar exatamente a reação que acarretou. “Eu disse ao juiz Gorostegui: ‘já pensou o que vai ocorrer quando os torcedores encontraram o clube fechado? Não sou eu quem irá pôr a faixa’. No caminho do gabinete até os corredores, onde sabia que ia encontrar com jornalistas de plantão, me ocorreu que tinha que dizer algo que produzisse uma explosão no torcedor”. O técnico que trabalhava com Maschio era exatamente quem ainda detém o recorde de jogos pelo Racing, e já na fase ruim: o ex-zagueiro Gustavo Costas, presente tanto no rebaixamento em 1983, nos dois anos de segundona e no malfadado aluguel ao Argentino de Mendoza como nos bons espasmos subsequentes, até ser transferido em 1996 em fim de carreira ao Gimnasia de Jujuy. Costas, outro credor, havia sido recém-convidado para assumir o time principal, após exercer o cargo nos juvenis.
Costas descreveu sobre Ripoll que “me pediu que fosse a uma reunião que haveria com o juiz e distintos treinadores do clube e referentes do Racing. O clube já estava em quebra. Fui para perguntar como estava minha dívida, inclusive cheguei tarde na reunião. Éramos como 60 em um juízo de La Plata e o juiz nos disse que o Racing havia quebrado, que não havia um peso, que Cappa ia embora e que das pessoas aí presentes deveria sair o novo treinador de acordo a uma pesquisa que fariam com sócios e que a AFA opinaria. Eu não queria saber de nada. Três dias depois, a síndica me chamou e me pediu se podia ir com o Bocha (Maschio) a La Plata, ao juizado. E ali nos comunicou que seríamos a dupla técnica. ‘Não é você quem diz que gosta tanto do Racing? És o único que podes enfrenta-lo para que não fiquem com o clube’, me respondeu Ripoll. E então fiquei”.
Isso tudo ocorreu ainda na pré-temporada. O time treinava sem saber se poderia jogar. Foi quando o Clausura 1999 estava exatamente na véspera do seu início, designado para 5 de março, que Ripoll soltou a bomba. Que acertou quase literalmente Lalín à noite: suas boas intenções não o livraram no calor do momento de sangue do rosto espirrado após ser atingido por um bumbo arremessado em plena entrevista. Costas descreveu então o que se seguiu ao anúncio: “tomava mate em minha casa. Escutei pelo rádio e não acreditava, não acreditava, ‘é impossível’, pensava. Aí sem mais comecei ligar para todo mundo, para Teté (o ex-jogador Fernando Quiroz), a Coco Reinoso, a vários. Estava em Campana, peguei Fede, meu filho mais velho, e fomos a Avellaneda. Nos encontramos com Teté e o resto no Shell da 9 de Julio, deixamos aí os carros e fomos em dois ou três carros para a sede. Em poucos dias enchemos o campo, houve 40 mil pessoas nesse dia”.
De fato, a movimentação já vinha sendo grande, atraindo até engravatados que em dia útil colocavam a camisa do time por cima do terno, até chegar ao domingo de 7 de março. Na data em que o Racing deveria estrear no Clausura, dezenas de milhares rumaram em procissão ao Cilindro mesmo sem jogo. As estatísticas variam entre 30 mil e 40 mil enfermos pelo clube nas arquibancadas e no gramado. Plateia muito superior ao público de outros estádios em que paralelamente se desenrolavam partidas “de fato”. Vendo tudo pela televisão, os jogadores se juntaram àquele momento, assim como lendas antigas, de Juan Carlos Cárdenas (autor do gol do título mundial) a Fillol (a vociferar que “com o sentimento do Racing não se brinca”). A imagem forte mitigou as regras jurídicas. Houve até abaixo assinado endereçado ao presidente Carlos Menem para que interviesse no processo.
E o governo, a ponto de também quebrar economicamente, entendeu que socialmente muito mais grave que credores tapeados em um primeiro momento seria aquela ativa torcida ficar sem o Racing, com o âncora (e torcedor racinguista) Bernardo Neustadt anunciando que “há dez minutos estive com o presidente Menem. Lhe disse: se quer terminar seu mandato de maneira gloriosa, salve o Racing. Me olhou firme e me disse: ‘vou salva-lo'”. Na rodada seguinte, o clube pôde voltar a campo (atraindo 30 mil visitantes ao estádio do Rosario Central), ainda que o peso da situação acarretasse em três derrotas seguidas, incluindo uma em casa no clássico de Avellaneda. A quinta rodada reservou a primeira vitória naquele Clausura, um 4-2 sobre o Unión. Ainda assim, nem sempre o time era autorizado a jogar.
Além da estreia, remarcada para 19 de maio (2-2 com o Talleres), foram adiadas também partidas da 9ª rodada, da 11ª e da 12ª, disputadas cerca de um mês depois do programado. Nesse contexto, a vitória de 3-2 sobre o River dentro do Monumental foi uma exceção. A Academia perdeu de 4-0 para o Boca e despediu-se do Clausura com um 3-0 sofrido em casa para o Estudiantes e um 4-0 na visita ao San Lorenzo nas três partidas finais de um 14º lugar. E no Congresso veio a aprovação da Lei do Fideicomisso, dando mais sobrevida ao transformar a instituição formalmente em uma empresa gerenciada pelos capitais privados aportados. Nada que fosse imune a críticas de quem não via toda essa comoção quando empresas quebravam expondo 200 empregados na rua; ou quando, já em 2000, o médico René Favaloro (conhecido mundialmente por implantar a cirurgia de pontes de safena) matou-se após não ver atendido seu apelo ao governo para auxiliar sua fundação, também endividada em dezenas de milhões de dólares.
O Apertura 1999 já não teve derrotas de goleada e o time pôde ficar no 6º lugar, mas longe do sossego. Afinal, ainda se fizeram “necessárias” diversas outras romarias de milhares de “enfermos racinguistas” para impedir que imóveis e outros bens do clube fossem arrematados; além disso, o clube chorou ainda em agosto a perda de sua histórica matriarca Tita Mattiussi, a octogenária funcionária devota desde a infância às instalações e bem-estar dos jogadores – e outra pessoa a quem o clube vinha devendo dinheiro, por sinal. A relativa boa campanha também acarretou na transferência do ídolo das vacas magras Marcelo Delgado, representante racinguista na Copa do Mundo de 1998, ao Boca. Em paralelo, o elenco juvenil, com Diego Milito, vencia o campeonato da categoria.
Ainda viriam novas turbulências em curtíssimo prazo, com o elenco campeão de 2001 sucedendo exatamente uma campanha de última colocação – com o time ainda perigando seriamente o rebaixamento à altura de 2008, quando precisou jogar a repescagem com o Belgrano. Nada perto do ponto mais baixo sentido em 4 de março de 1999, em queda brecada inicialmente com a romaria de fiéis surgida espontaneamente em 7 de março – data que passaria a ser designada como “o dia do torcedor do Racing”. Vinte anos depois, a perspectiva séria de obter o segundo título argentino no espaço de cinco anos significaria tempo excessivo de espera para uns, mas já é um paraíso nas cores blanquicelestes…
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