Quando o Huracán ajudou o San Lorenzo a ser campeão: 20 anos do histórico Clausura 2001
O desequilíbrio do clássico entre Huracán e San Lorenzo não arrefece a rivalidade, especialmente do lado quemero. Inclusive, não é incomum que títulos azulgranas sejam carimbados no dérbi: o Globo aplicou 4-1 fora de casa em 1933, venceu por 1-0 em 1936, triunfou fora por 3-2 em 1946, vencia até o finzinho no 2-2 fora de casa no título invicto sanlorencista de 1968, impôs um 3-0 sobre a volta olímpica de 1972, deixou um 2-0 em 1974… incomum mesmo é a equipe de Parque Patricios ajudar a de Boedo. Ontem fez 20 anos do desfecho de um torneio onde isso ocorreu, mas a ajudinha em nada tira méritos totais do Ciclón. O elenco treinado por Manuel Pellegrini é dono até hoje da melhor pontuação da história dos torneios curtos, no embalo ainda de um recorde de vitórias a qualquer clube no profissionalismo argentino.
Tais feitos ainda serviram de prelúdio para os primeiros títulos continentais do time do Papa – o bicampeonato da última edição da Copa Mercosul com a primeira da sucessora Copa Sul-Americana. Hoje, porém, o foco merecido é naquele Clausura 2001, também o primeiro título da carreira de Loco Abreu, a aposentar-se nesse 11 de junho. E a primeira conquista do recordista de títulos pelos cuervos, o prodígio Leandro Romagnoli, que beija o escudo na foto que abre a matéria. Boa leitura!
Prólogo
Em 1995, o San Lorenzo encerrou seu pior jejum, os 21 anos pendentes desde aquele troféu de 1974, em seca que incluiu ainda o primeiro rebaixamento de um gigante na Argentina (em 1981). Aquele Clausura, por sinal, foi um raro título que incluiu triunfo no clássico, um 3-0. A mesma espinha dorsal, com o longevo goleiro Oscar Passet, o xerife Oscar Ruggeri, o maestro brasileiro Silas, o artilheiro Claudio Biaggio e os eficientes municiadores Roberto Monserrat e Fernando Galetto tinha inclusive muita capacidade para não se resumir a uma só conquista. Mas, no Apertura 1995, ficaram em um 5º lugar que só não foi de todo morno por incluir um 5-0 no clássico.
Em 1996, eles deram muito trabalho nas quartas-de-final da Libertadores ao futuro campeão River, sendo eliminados de modo apertado pelos gols de um assumido torcedor sanlorencista feito Hernán Crespo. O foco continental foi tamanho que o mesmo elenco foi vice-lanterna do Clausura. A falta de recompensa pelo desleixo calculado resultou no fim de quatro anos do ciclo do carismático Héctor Veira (eleito em 2008 o maior ídolo da instituição) como treinador, embora a espinha dorsal ganhasse ainda mais talento com o retorno do ídolo Néstor Gorosito.
Carlos Aimar, contudo, não soube suceder Veira: o time foi 7º no Apertura 1996 e em 1997 Jorge Castelli já assumia como novo treinador. Se no Clausura goleadas sobre Huracán (5-1) e Boca (4-0) animaram no início, a promissora campanha logo perdeu rendimento, em 6º. O Apertura, no embalo da dupla Biaggio com o reforço uruguaio Sebastián Abreu, teve o segundo melhor ataque, mas longe de disputar seriamente a taça com a dupla Boca e River: o Ciclón foi 5º. Em um único ano, Abreu ao menos produziu para ser superavitário: comprado por 700 mil dólares do Defensor, foi revendido por 10 milhões ao Deportivo La Coruña. E seus duelos com o Boca de Maradona serviram para fazer do Loco o último jogador em atividade dentre os que compartilharam gramado com Dieguito.
Em 1998, a diretoria ousou e contratou quem havia treinado a seleção na Copa de 1994. Alfio Basile, sobretudo, era bastante identificado com o Huracán, como destaque defensivo no título quemero de 1973. E sua virada de casaca terminou mais lembrada por ter expulsado o futuro Papa Francisco de um treino mesmo: embora vencesse fora de casa o campeão Vélez, o Sanloré terminou em um 5º lugar bem longe da briga. Àquela altura, Biaggio, Passet e Galetto ainda seguiam no Nuevo Gasómetro dentre os protagonistas de 1995. Outro deles voltou, mas para suceder Basile como técnico, o recém-aposentado Ruggeri.
A boa Copa Mercosul, encerrada nas semifinais, desculpou um 6º lugar a vinte pontos do campeão Boca no Apertura. Se futuras caras a se consagrarem com a virada de milênio já vinham pedindo passagem antes (o atacante Raúl Estévez e o coringa Guillermo Franco havia sido promovidos da base em 1996 na formação alternativa caseira à titular que lutava pela Libertadores), o ciclo de Ruggeri ficou marcado por montar boa parte do restante – foi o ano de profissionalização do lateral Claudio Morel Rodríguez, do volante Mirko Saric e, sobretudo, o armador Leandro Romagnoli. Alguns deles, já promovidos por Basile, mas ainda relegados nos meses sob o antecessor.
O mercado com gente experiente não deixou de existir: ainda em 1998, chegaram ainda o atacante Bernardo Romeo, não renovado pelo Estudiantes; o zagueiro Horacio Ameli veio do Rayo Vallecano e sua dupla Iván Córdoba, do Atlético Nacional, enquanto o Valencia enviou do seu banco de reservas o goleiro Gustavo Campagnuolo. Em 1999, enquanto o habilidosamente polivalente (no meio ou na lateral) Walter Erviti era outro a vir da base, o bom e barato de mais destacado foi as vindas do motorzinho Lucas Pusineri do Almagro, de Cristian Zurita junto ao Gimnasia y Tiro de Salta e, principalmente, do incansável ladrão de bola Pablo Michelini dos espólios “do Racing que deixou de existir”. Rejuvenescendo mais o elenco, Ruggeri começou a bancar Campagnuolo mais do que o vetarano Passet. E mandou uma figura carismática feito o veterano atacante Alberto Acosta para o Sporting Lisboa.
Já era o suficiente para parecer dar um caldo. Se no Clausura novamente o Boca não deu chances a ninguém na corrida, no Apertura a equipe de Ruggeri, invicta na metade inicial, chegou a ter pinta de campeã. Mas a chegada às fases agudas da Copa Mercosul pareceu tirar fôlego na reta final caseira: terminou-se no mesmo 4º lugar do primeiro semestre enquanto que, na Mercosul, novamente as semifinais foram o limite. Deu para entrar na Libertadores 2000 e vender Córdoba à Internazionale, mas o ano agridoce encerrou o ciclo a quase todos os remanescentes de 1995: Galetto, Biaggio, Passet e Damián Manusovich foram expurgados pelo ex-colega Ruggeri, assim como o veterano ídolo Gorosito.
A volta à Libertadores foi precoce. Em um semestre marcado pelo suicídio da promessa Saric, os colegas caíram ainda na fase de grupos em La Copa e, pelo terceiro torneio seguido, só pegaram o 4º lugar no Clausura. No Apertura, o time foi 5º. De novidades, a ascensão de mais um goleiro, Diego Saja, estreante no time adulto na fogueira da uma expulsão de Campagnuolo no “clássico” com o Vélez em outubro de 2000; e a volta do experiente Loco Abreu, que já vinha do México, embora tivesse de se contentar em ser banco para Romeo – que, se era relegado ao time B sob Basile, enfim conseguia espaço com Ruggeri. Não que Abreu perdesse folclore, oferecendo publicamente sua alma ao diabo para ser campeão.
No papel, o time estava pronto. Mas mesmo um ídolo feito Ruggeri estava queimado com torcida e diretoria após anos de campanhas mornas – além de um desempenho agora abaixo da crítica na Copa Mercosul, onde o time foi lanterna no seu grupo. El Cabezón tinha o apoio do elenco, que o convenceu a mudar de ideia quando tentou renunciar ainda antes do fim do Apertura; o ex-zagueiro até renovou o contrato em dezembro de 2000, mas um mês e meio depois preferiu ir mesmo embora ao fim dos torneios amistosos de verão. O clube não venceu nenhuma partida. A última, já em 1º de fevereiro.
Assim, a ligação do time de 2001 com o de 1995 se resumiu a duas peças. Uma era a do zagueiro Eduardo Tuzzio, peça discretíssima no título anterior – embora profissionalizado ainda em 1993, só esteve em dois jogos naquele título, ambos vindo do banco (contra Argentinos Jrs e Gimnasia de Jujuy), e chegou na sequência a ser emprestado por um ano a um Quilmes de segunda divisão para pegar mais rodagem; e isso que ele vinha sob desgastes crescentes com a cartolagem após não ser vendido ao Panathinaikos em 1999. A outra? A do torcedor Fabricio Coloccini, presente nas arquibancadas do estádio do Rosario Central naquela conquista enquanto ainda pertencia aos juvenis do Argentinos Jrs. E que, agora, enfim chegava para defender o time do coração, emprestado pelo Milan.
Além de Coloccini (filho de um campeão com o Ciclón na segunda divisão de 1982, Osvaldo), as novidades mais importantes de 2001 vinham do Chile: a pátria de um Manuel Pellegrini ainda sem fama internacional, mas com cartas de ótima recomendação assinadas pela dupla Acosta e Gorosito – ex-comandados por ele na Universidad Católica. Pellegrini também conhecia bem outra antiga figura azulgrana: o meia Leo Rodríguez, reserva de Maradona na Copa de 1994, voltava após dez anos no exterior. Embora seus 35 anos trouxessem desconfianças iniciais, sua habilidade não estava nos longos cabelos de outrora, embora ainda cultivasse longas mechas junto a uma calvície cada vez mais aparente. Pellegrini bancaria desde o início o antigo cérebro da Universidad de Chile e não se arrependeu. Nem Rodríguez, que enfim se sedimentaria como ídolo.
Na época, não houve muito valor dado a algum “legado de Ruggeri”: El Ingeniero (“O Engenheiro”, sua profissão de formação) Pellegrini, ainda que sob início irregular (rendendo zombarias de que ele teria sido contratado para completar as arquibancadas não-contínuas que caracterizam o Nuevo Gasómetro), foi logo reconhecido por humilde e silenciosamente aprimorar rápido quem ainda era resistido pela torcida, sobretudo o caudilho Ameli ou os instáveis Pusineri e Estévez – que, usado antes como volante ou ponta, teve sua velocidade reposicionada como segundo atacante junto ao artilheiro Romeo. Que, por sua vez, até tinha espaço com Ruggeri, mas foi sob Pellegrini que conseguiu chances ainda que breves em uma seleção argentina permeada de atacantes “europeus”. Pudera: foram 15 gols em seus 16 jogos.
Outro que enfim se firmaria foi o outro caudilho: Michelini havia sido atrapalhado por lesões na sua chegada e depois pela concorrência em 2000 com Ricardo Verón. A exceção que confirmava a regra seria a de Morel Rodríguez, restrito a dois jogos pela concorrência com os peões Paredes e Juan Serrizuela. Franco, por sua vez, seria ausência em todo o semestre após lesionar seriamente o joelho – eles teriam que aguardar o pós-Clausura para terem seus momentos de protagonismo.
O início: irregular, mas já algo vencedor
Ainda sob comando interino de Víctor Doria, o San Lorenzo, quatro dias após começar perdendo na Libertadores (4-2 para o Jorge Wilstermann, na Bolívia) visitou o Gimnasia em 11 de fevereiro de 2001 usando a seguinte escalação: Saja, Celso Esquivel, Coloccini e Aldo Paredes, Pusineri, Tuzzio, Zurita e Erviti, Romagnoli e Romeo; Leo Rodríguez e Abreu sairiam do banco no lugar da dupla da frente. Romagnoli, simbolicamente, fez o primeiro gol da campanha, abrindo o placar no Bosque de La Plata já no minuto 45. Romeo ampliou logo aos 8 do segundo tempo, mas as coisas desandaram. O time da casa descontou aos 21, Tuzzio perdeu pênalti aos 32 e o empate foi sofrido a cinco minutos do fim.
Para o primeiro jogo em casa, o 4-4-2 virou um ofensivo 4-3-3 com Saja, Ameli, Tuzzio, Coloccini e Paredes (Esquivel), Pusineri, Michelini e Zurita, Leo Rodríguez, Romagnoli (Estévez) e Romeo. E veio uma primeira vitória, sobre o Newell’s, em 14 de fevereiro: Romeo abriu o placar aos 33 do primeiro tempo e, aos 21 do segundo, Pusineri desempatou no 2-1. Foi na terceira rodada, no dia 18, que Pellegrini enfim estreou. Ele só alterou uma peça na formação titular em relação ao jogo anterior. Mas que peça: Romagnoli começou no banco na visita ao Racing. El Ingeniero logo percebeu o erro e depois colocou El Pipi em campo no lugar de Zurita, enquanto Estévez substituiria Abreu.
Mas, naquela tarde, a insensatez inicial foi punida, em derrota de 2-0. Em 22 de fevereiro, o San Lorenzo então recebeu um Belgrano que lutava contra o rebaixamento. Usou de início Saja, Tuzzio, o veterano Guillermo Rivarola, Coloccini e Paredes; Pusineri e Michelini; Estévez, Leo Rodríguez e Romagnoli, com Romeo mais à frente. Romeo e Rodríguez anotaram o 2-0, em ocasião em que Juan Serrizuela (no lugar de Pusineri) e Zurita (no de Romagnoli) também jogaram. Mas a vitória pareceu econômica. Assim como o 2-1 em 1º de março sobre o Deportes Concepción, na 2ª rodada da Libertadores; ou um 1-0, mesmo que visitante, sobre o nanico Almagro na 5ª rodada do Clausura, em 4 de março: gol de Romeo aos 28 do primeiro tempo de uma partida realizada no estádio do Platense.
Saja, Tuzzio (Serrizuela), Ameli, Coloccini e Morel Rodríguez, Pusineri, Michelini (Rivarola) e Leo Rodríguez, Romagnoli (Erviti), Estévez e Romeo foram os usados contra o Tricolor. Veio então o clássico com o Huracán, que nunca havia vencido dentro do Nuevo Gasómetro o dérbi. E não foi ali que venceu. Dos titulares contra o Almagro, Pellegrini só não repetiu Morel, trocado por Paredes. El Pipa Estévez abriu o marcador aos 44 do segundo tempo ao emendar de primeira um cruzamento da canhotinha de Romagnoli pela linha de fundo esquerda, mas o veterano Sergio Berti aguou tudo ao empatar naquele 11 de março: enquanto o resto da defesa pedia impedimento, Berti aproveitou um misto de hesitação e furada de Saja na hora de um chutão e o tirou debilmente da jogada antes de concluir. 48 horas depois, derrota para o Nacional pela 3ª rodada da Libertadores…
O jogo seguinte tampouco foi muito auspicioso a Saja, que levou quatro gols do Lanús em 16 de março. Menos mal que os colegas (Tuzzio, Ameli, Coloccini e Morel Rodríguez, Rivarola e Michelini, Romagnoli, Leo Rodríguez e Estévez, com Romeo à frente) fizeram cinco, mesmo fora de casa. Se no primeiro tempo o placar só foi alterado por Romagnoli, o segundo teve de tudo: empate grená no primeiro minuto; outros três gols entre os 5 e os 11 minutos (período em que Romeo anotou o 2-1 e depois o 3-2); virada-relâmpago lanusense, com Silvio González indo às redes aos 21 e 24 minutos… e contra-virada na reta final: El Pipa Estévez empatou aos 39 e Ameli virou no minuto 45.
Para a oitava rodada, então, Campagnuolo voltou ao gol. Tuzzio, Ameli, Coloccini e Paredes, Michelini e Rivarola, Romagnoli, Leo Rodríguez, Estévez e Romeo fecharam os titulares em 25 de março no “jogo de seis pontos” contra o grande concorrente daquele Clausura, o então líder River. Mesmo no Nuevo Gasómetro, Martín Cardetti marcou duas vezes com 15 minutos de jogo para pôr o Millo na frente. Romeo encostou ainda aos 28, mas Saviola anulou a reação quatro minutos depois. Cinco pontos abaixo do time de Núñez, não era possível perder outra vez se o Ciclón ainda quisesse aspirar ao título.
Ao menos dentro da fronteira, o time não só não perdeu mais como começou a vencer todo mundo até o final. A começar pelo “clássico com o Vélez”.
A série histórica começa
Em 1º de abril, Pellegrini deu nova chance seguida a Campagnuolo no gol e preencheu o resto dos cuervos com Serrizuela, Ameli, Coloccini e Paredes, Rivarola, Zurita, Romagnoli e Erviti, Estévez e Romeo. O River até venceu seu jogo contra o Chacarita, mas Romeo e um pênalti convertido por Rivarola construíram no segundo tempo em Liniers o 2-0 que abriu uma série histórica para além daquele Clausura. Dois dias depois, um último suspiro na Libertadores, com o 2-0 sobre o Jorge Wilstermann. A série prosseguiu em 7 de março com um 3-1 no Colón. Pellegrini trocou apenas Ameli por Tuzzio e Zurita por Michelini em relação aos titulares anteriores.
Contra os santafesinos, Coloccini abriu o placar, Leo Rodríguez o desempatou com um pênalti e o reserva Jorge Quinteros, que substituiu Estévez, fechou. Era preciso secar o River, que um dia depois visitaria a Bombonera no Superclásico. Deu tão certo que Riquelme fez gol até perdendo pênalti em uma surra de 3-0, aproveitando um rebote não afastado para criar a icônica “comemoração do Topo Gigio” para protestar contra Mauricio Macri.
Foi então a vez de visitar o Rosario Central. Que, mesmo com uma campanha semifinalista de Libertadores pela frente, exagerou no desinteresse naquele 11 de abril: levou de 3-0 em pleno Arroyito para a formação Campagnuolo, Serrizuela, Ameli, Coloccini e Paredes, Rivarola, Michelini, Leo Rodríguez e Erviti, Estévez e Romeo. Na única partida sem Romagnoli, Ameli, um pênalti convertido por Rodríguez e Romeo construíram a goleada toda ainda no primeiro tempo.
O River, do seu lado, tratou de fazer o dever de casa contra o Argentinos Jrs, um 3-2 repetido na 12ª rodada à muito custo em Santa Fe, quando Eduardo Coudet desempatou aos 43 do segundo tempo contra o Unión. O San Lorenzo entraria em campo no dia seguinte, 15 de abril, não podendo se descuidar em casa contra o Independiente. Foi duro, mas a vitória veio. É que Diego Forlán abriu o placar no Nuevo Gasómetro e, embora Romagnoli e Zurita virassem, Livio Prieto empatou no fim do primeiro tempo. O 2-2 persistia até Romeo achar o chorado gol do triunfo aos 45 do segundo. Dois dias depois, a frente na Libertadores foi abandonada: o Concepción venceu por 3-2 no Chile e confirmou a eliminação argentina ainda na fase de grupos.
Não houve muito espaço para lamentação, pois o bote do futuro campeão pôde se dar na 13ª rodada, em 22 de abril. O San Lorenzo, agora com foco total no Clausura, não tomou conhecimento do Talleres e conseguiu um segundo 3-0 seguido fora de casa, agora em Córdoba – gentileza de Romeo (por duas vezes) e Serrizuela. Enquanto isso, o River deixou escapar uma vitória em casa sobre o Gimnasia, que alcançou um 3-3 aos 46 minutos do segundo tempo. Campagnuolo, Ameli, Coloccini, Paredes e Serrizuela, Rivarola, Michelini, Romagnoli e Leo Rodríguez, Estévez e Romeo enfim alcançavam o Millo na liderança.
Na 14ª, os dois times viveram montanha russa. Visitando o Newell’s, o River saiu perdendo de 2-0 antes de meia hora de jogo. Mas conseguiu ainda no primeiro tempo uma notável virada-relâmpago, com Saviola, Yepes e Cardetti anotando gols entre os 38 e os 44 minutos – enquanto a formação Campagnuolo, Serrizuela, Ameli, Coloccini e Paredes, Tuzzio e Michelini, Romagnoli, Leo Rodríguez, Estévez e Romeo não conseguia sair do zero na visita a um time muito menos capacitado, o Los Andes, na última temporada até hoje dos Milrayitas de Lomas de Zamora na elite.
Como se não bastasse, naquele 29 de abril o artilheiro Bernie Romeo sofreu uma contratura muscular que o tiraria de ação até a 18ª (e penúltima) rodada – Abreu entrou em seu lugar. A co-liderança perigou até os 38 do segundo tempo, quando Coloccini marcou o golzinho que bastou. Alívio que não foi total para Ameli: ao pedir silêncio à própria torcida, desengasgando cornetas de anos, o zagueiro azedou a relativa trégua e, ainda que se desculpasse ao longo da semana, só seria tolerado por mais um semestre. Uma inoportuna lesão de Campagnuolo forçou então Pellegrini a voltar em recorrer a Saja em 3 de maio, no cumprimento de tabela na despedida cuerva na Libertadores 2001; um empate em casa com o Nacional (1-1).
Saja seguiria de volta à titularidade em 13 de maio. As outras alterações em relação ao jogo anterior se resumiam a Erviti na vaga de Leo Rodríguez e Abreu pela primeira vez titular no torneio, no posto do lesionado Romeo. A mais chamativa, porém, era mesmo em relação ao goleiro que voltava, a quem o chileno falou mesmo expressamente que “espero não ter me equivocado”. El Chino estava confiante: “fique tranquilo, Ingeniero, escolheu bem”. Marra justificada com 11 minutos de jogo, quando pegou um pênalti de Ernesto Farías, oxigenando os colegas: se ali a partida estava em 0-0, ficou no 5-0 para os líderes sobre o Estudiantes. Dentro de La Plata. O placar, inclusive, foi aberto apenas quatro minutos depois daquela defesa, por Tuzzio. Outros quatro minutos depois, Coloccini já fazia o segundo.
No segundo tempo, Estévez, Romagnoli e o reserva Mario Santana (que entrou no lugar de Erviti) desenharam a goleada que ofuscou um ótimo 3-0 do River sobre o Racing no duelo de gigantes da rodada. Em contraste ao caminhão de gols marcados, o novo dono das metas azulgranas só sofreria um golzinho em toda aquela reta final. A discussão Saja-Campagnuolo minguou tanto que, ao fim do torneio, o concorrente foi repassado a um Racing periclitante (para ser campeão, diga-se, fazendo de El Flaco uma rara figura bicampeã argentina seguida por clubes diferentes).
Depois do 5-0 como visitante, o San Lorenzo jogou outra vez fora de casa, em 20 de maio. Pellegrini sabia que não havia o que mexer e usou os mesmos titulares que trituraram o Estudiantes. A pena deles contra o Chacarita (que alugou o campo do Vélez) não foi muito menor: um 4-0 que rendeu ainda os primeiros gols de Abreu na campanha. Cobrando pênalti, o uruguaio, que se aposentará hoje, abriu e fechou a goleada que Romagnoli e Estévez completaram.
Mas o River não arredava: o 1-1 com o Belgrano em Córdoba prevalecia até os 39 do segundo tempo. Saviola achou então mais dois golzinhos para manter a co-liderança e a ilusão de uma torcida ansiosa por um título no centenário oficial: o Millo fez sua festa de 100 anos dali a cinco dias e pareceu não sofrer da ressaca outras 48 horas depois, quando, em 27 de maio, trucidou por 5-1 o pobre Almagro. Enquanto isso, Pellegrini usou pela terceira rodada seguida a formação tão azeitada contra o Estudiantes. O inimigo agora era outro: o Boca.
Aquela rodada se deu em meio às quartas-de-final na Libertadores. Já sem aspiração no Clausura e sem subestimar um Vasco da Gama que vinha com 100% de aproveitamento na fase de grupos, embora derrotado em São Januário por 1-0 na ida, Carlos Bianchi usou uma formação praticamente reserva contra o Ciclón: Abbondanzieri, Calvo, Barbosa, Pinto e Clemente Rodríguez, Marchant, Pereda e Omar Pérez, Gaitán, Giménez e Barijho só viram os nomes em negrito serem titulares em alguma das futuras finais continentais contra o Cruz Azul. Os reservas queriam mostrar serviço e ofereceram jogo duro no Nuevo Gasómetro – especialmente Barijho, cria do Huracán. Mas El Loco Abreu aproveitou seu terceiro jogo de titular para somar seu terceiro gol na campanha, o mais importante.
Aos 35 minutos, Ameli cobrou uma falta quase do meio-campo para levantar à área boquense. O pulo da defesa auriazul, ao invés de afastar a bola, a recuou involuntariamente e o uruguaio, cheio de oportunismo, ficou a sós com Abbondanzieri e não precisou encher o pé: o chute meio torto foi o suficiente. O Boca verdadeiro foi visto três dias depois, quando despachou o Vasco com um 3-0 na Bombonera – enquanto o River, pelo mesmo placar, se despedia contra o Cruz Azul no Azteca.
A conclusão incomum
Veio então a penúltima rodada, em 5 de junho. Apesar da contribuição com ares de talismã, Abreu voltou ao banco para o regresso de Romeo, na única alteração promovida por Pellegrini para enfrentar o Argentinos Jrs, que mandou a partida no estádio do Ferro Carril Oeste. A razão empregada no lugar da emoção mostrou-se certeira: dos cabeceios de Bernie, aos 20 e aos 36 minutos, renderam os dois gols da tarde e, de quebra, o fizeram superar o riverplatense Cardetti na artilharia. Como a revista El Gráfico relatou: “o San Lorenzo adotou essa mentalidade ganhadora. A tem. A somou a seu repertório muito mais rápido do que o técnico Manuel Pellegrini podia suspeitar. Mas o futebol tem destas coisas. Essa magia. Esse saudável desconcerto”.
“O Argentinos Jrs não era um desafio fácil. Estava obrigado a somar para se safar da repescagem. Mas o San Lorenzo o demoliu. (…) Em um quarto de hora, o San Lorenzo resolveu tudo. Dois cruzamentos, dois cabeceios estupendos desse magnífico especialista que é Romeo. (…) Dizíamos em partidas anteriores que o San Lorenzo tem o gol fácil. (…) Quando vai em frente, gera a sensação de que o gol pode ser iminente. Isto por óbvio não é científico, mas é o que transmite. E se o contágio que se recicla nas tribunas e volta a campo convertido em rigor futebolístico se aduba com produções individuais inquietantes, como as de Estévez, Romagnoli e Romeo, a película não é imprevisível. É o que sofrem os rivais contra o San Lorenzo. Sofrem este momento. Esta convicção para meter o pé no acelerador e frear nos instantes adequados. Porque não é kamikase a equipe. Vai, mas não se desprotege. Vai, mas não lhe seduz a ideia do suicídio coletivo. E isto tem um nome: funcionamento”.
Em paralelo, o River visitava o Huracán, contra quem estava mordido: é que, no torneio anterior, um surpreendente empate arrancado pelo Globo em pleno Monumental impediu que o Millo ultrapassasse um Boca que, na ressaca do Mundial contra o Real Madrid, havia sido inesperadamente derrotado pelo Chacarita. O arquirrival mantivera-se líder e pôde festejar adiante sua primeira tríplice coroa. O Huracán, por seu lado, recém-voltava da uma estadia na segunda divisão e tinha suas próprias lutas: além da honra do outrora “sexto grande”, a equipe de Parque de los Patricios ainda tinha chances de se classificar à Copa Mercosul.
E, alheio ao fato de poder ajudar o rival de bairro, os quemeros tiveram seus gols no Ducó gritados pelos azulgranas: Gerardo Morales, com um golaço, matou no peito um lançamento para então soltar mesmo sem ângulo pela direita um chute que acertou o ângulo do segundo pau. Saviola, perdendo a cabeça ao jogar no chão e pisar no peito de Graieb, já havia levado cartão vermelho direto quando um o goleiro Costanzo saiu mal do gol no lançamento de Lucho González e chegou atrasado na dividida aérea com Morales. Os paraguaios Derlis Soto e Celso Ayala correram rumo à bola que entrava mansinha e o pé do huracanense a alcançou antes para garantir que entrasse nas redes.
Mas um empate-relâmpago veio aos 18 e 24 minutos do segundo tempo. Damián Álvarez recebeu bem de Ortega, desviou de dois marcadores e acertou um belo gol em chute rasteiro no canto. Ortega, depois, pulou mais alto para acertar sem goleiro um cabeceio, aproveitando uma cobrança de falta pela ponta direita. O empate não bastava e o técnico Américo Gallego colocou no minuto seguinte o atacante Nelson Cuevas no lugar do xerife Astrada, e aos 32 trocou Álvarez pelo iniciante D’Alessandro. O nervosismo millonario pela virada, contudo, voltou-se contra si. Ayala levou vermelho direto ao soltar a cabeça num adversário, já aos 45 minutos do segundo tempo.
Héctor Baldassi ainda deu cinco minutos de acréscimo e os nove jogadores do River tiveram ainda assim uma chance de virar, mas o cabeceio de Hernán Díaz à bola levantada por Cuevas foi bem encaixado pelo goleiro Martín Ríos. Quem não fez, levou: Raúl Christian Chaparro, que substituíra Morales, serviu Juan Carlos Padra. Ele ia marcando um belíssimo gol, com seu toque sutil encobrindo Costanzo, mas acertando caprichosamente o travessão… Soto, porém, novamente estava ali por perto para garantir a bola na rede, aproveitando o rebote. A enciclopédia do centenário huracanense preparada pelo Clarín, em 2008, não deixa de frisar que aqueles 3-2 ajudaram bastante o San Lorenzo, mas incluiu aquele jogaço na lista dos cem maiores triunfos da história quemera.
Três pontos separavam agora River de San Lorenzo. Uma possível igualdade de pontos ao fim da rodada final forçaria um jogo-extra, mas nem mesmo o técnico riverplatense acreditava mais: a nota pós-jogo da El Gráfico já começava com essas aspas de Américo Gallego: “peço perdão aos torcedores porque não pudemos lhes dar um campeonato”, murmurou ele “com a voz entrecortada pela angústia”. A nota cravava: “terminou-se um novo campeonato para o River, embora as estatísticas digam que ainda é possível alcançar a ponta na última rodada. É difícil neste momento fazer uma análise mais ou menos profunda; é fácil dizer que Gallego se equivocou outra vez”, em referência à sua insistência em não priorizar a Libertadores com os titulares e deixar o Clausura para reservas, como Bianchi havia feito no ano anterior: “o veredito das pessoas, as que lutaram a arquibancada do Huracán e entregaram a alma, (…) foi claríssimo. ‘Gallego hijo de puta, la puta que te parió‘”.
Com efeito, o líder, com a mesma formação vitoriosa contra o Argentinos Jrs, tratou de desanimar cedo qualquer migalha de esperança: de pênalti, Romeo abriu o placar logo aos 8 minutos de partida contra o Unión. Erviti ampliou aos 29 e assim a torneira se abriu no jogo paralelo do concorrente: aos 40 minutos, Diego Klimowicz abriu o placar para o Lanús em La Fortaleza. Aos 44, o Unión até descontou no Nuevo Gasómetro enquanto que Ortega empatou para o River aos 15 minutos do segundo tempo. Nada que causasse maior suspense. Ficando claro que os visitantes em Bajo Flores não teriam como estragar a festa azulgrana, o River ainda terminou derrotado – gol de Claudio Sarría aos 33. Assim, nem houve maior espaço a polêmicas quando o jogo do líder foi encerrado ainda aos 41 diante da invasão de campo.
Os 47 pontos são até hoje a pontuação mais alta de algum campeão na era dos torneios curtos. A taça, a princípio, encerrou um jejum já substancial de seis anos; e, curiosamente, seria a última nacional por outros exatos seis, em espera que terminaria em outro 10 de junho, mas de 2007, pelo elenco de Lavezzi e Gastón Fernández, onde as únicas semelhanças guardadas foram nova demissão do técnico Ruggeri antes do torneio – pois o sucessor Ramón Díaz abdicou de Saja em prol de Agustín Orión, mandando El Chino ao Grêmio. Curiosamente, os vizinhos festejaram junto, com o Huracán deixando outra passagem pela segunda divisão em 24 de junho.
Já naquele 10 de junho de 2001, a festa cuerva era total: o rival de bairro, em duelo direto contra o Vélez, perdeu de 2-0 e acabou ultrapassado em um ponto pelo adversário pela última vaga na Mercosul 2001. Mercosul esta que, representando a primeira conquista continental de um gigante, glorificou ainda mais aquela espinha-dorsal consagrada há 20 anos, com alterações sutis: o veterano Beto Acosta voltou para a vaga do veterano Abreu – enquanto que Diego Capria, ex-Atlético Mineiro, chegou do Belgrano para preencher uma certa lacuna defensiva. Pé-quente, o novo zagueiro até marcou o gol que, já na segunda rodada do Apertura, representou a 13ª vitória seguida do Sanloré. Até hoje, essa marca nunca foi sequer igualada por qualquer clube no profissionalismo.
Capria converteria ainda o pênalti do título da Mercosul, consertando uma insensibilidade do Milan: os italianos eram os proprietários do passe de Coloccini e direcionariam seu empréstimo ao Alavés. Naquele Clausura, ele havia sido o único a jogar todas as 19 partidas. Eram as suas únicas pelo time do coração até voltar em 2016, mas suficientes para fazê-lo ser considerado um dos cem maiores ídolos do clube na edição especial que a revista El Gráfico publicou a respeito em 2001: se os colegas dedicavam o troféu a Saric, o zagueiro relembrava que “em 1995, escapei para ir a Rosario ver a equipe do Bambino Veira que foi campeã. Voltei às 4 da manhã e abracei minha velha, que estava na cama doente. Sei que ela, desde o céu, me mandou agora este título para que o desfrutasse eu e o desfrutemos todos”.
Pingback: 20 anos do arrasador Mundial sub-20 que os argentinos puderam desfrutar em casa
Pingback: Há 20 anos, acabava o jejum de 35 do Racing
Pingback: Em dois Racings para um Independiente: José Serrizuela, o tubarão da Copa 1990
Pingback: Depender de ajuda rival para ser campeão: um raro histórico na liga argentina
Pingback: 20 anos do último título nacional de um gigante: como o Independiente demoliu o Apertura 2002