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Quando Boca e River decidiram títulos entre si?

A principal dupla rival argentina realizará hoje o que é somente a sua segunda final propriamente dita, pela Supercopa Argentina – um jogo único na neutra Mendoza entre os vencedores de 2017 do campeonato argentino e da copa argentina. Raridade que reforça a importância que será dada a um torneio normalmente simbólico. A única final “real oficial” até hoje entre Boca e River foi válida pelo Torneio Nacional de 1976. Mas eles, é claro, não deixaram de fazer decisões com caráter similar. Vamos relembra-las aqui, tanto partidas de pontos corridos que valeram título (necessariamente disputado por ambos) – ou, entre as três rodadas finais, representaram uma mão na taça, assim como, similarmente, ocorreram em semifinais de mata-matas. Os anos serão destacados em negrito. Pelos critérios, selecionamos dez.

Curiosamente, a primeira final entre ambos poderia ter sido pela segunda divisão. Sim, embora o Boca nunca tenha sido rebaixado, isso não quer dizer que não tenha passado pela segundona: ela foi criada ainda em 1899, enquanto os xeneizes (e os demais grandes clubes argentinos) foram fundados já no século XX. O primeiro dos futuros grandes a conseguir o acesso a elite foi o próprio River, em 1908, em final travada com o Racing: saiba mais daquela segundona. O time de Avellaneda havia eliminado na semifinal os auriazuis, impedindo uma decisão entre a dupla rival do bairro de La Boca.

Sim, o River também foi fundado em La Boca. A rivalidade entre os dois originou-se nisso, e não pela oposição entre ricos e pobres na Argentina (esterótipo que já não condiz com a realidade, vale ressaltar). O dérbi entre os dois era inclusive chamado de Clásico de La Boca ou de Clásico Boquense até os fins dos anos 30. Os primeiros títulos da dupla na elite vieram nos anos 20, mas com cada um disputando de 1919 a 1926 ligas separadas, sem haver clássicos decisivos.

Em 1933, Boca e River se enfrentaram na rodada final. Mesmo com um a menos, o Millo ganhou por 3-1, mas o resultado lhe serviu apenas para deixa-lo a quatro pontos do campeão San Lorenzo (quando as vitórias valiam dois e não três), já não tendo chances de título. O Boca tinha, tendo começado a rodada na liderança. Perdeu e terminou ultrapassado em um ponto pelos azulgranas. Mas, como somente os auriazuis tinham chances de título, não vamos considerar.

Revista El Gráfico no início dos anos 30, retratando Boca x River ainda como “Clásico de La Boca” ou “Clássico Boquense”

Naquela década, o Boca ganhou os torneios de 1930, 1931, 1934 e 1935; o River, em 1932, 1936 e 1937. Nenhuma dessas campanhas contou com uma corrida entre os dois até a reta final, nem com algum dérbi significativo nessa altura. Mas como nenhuma outra rivalidade via os dois times amealhando títulos juntos, aquele período serviu para começar a transformar o Clásico Boquense no Superclásico. Isso se reforçaria com a alternância de títulos entre 1940 e 1945, todos levantados por algum da dupla: Boca em 1940, 1943 e 1944, River em 1941, 1942 e 1945 – além de em 1947.

Nesse período, o River chegou a garantir o seu título em 1942 em plena casa rival, buscando com dois gols da lenda Adolfo Pedernera (descrito por Alfredo Di Stéfano, seu reserva, como maior jogador que vira) o empate em 2-2 após estar perdendo de 2-0 na recém-inaugurada Bombonera (aberta em 1940). Mas àquela altura concorria só com o San Lorenzo. Ao fim da temporada, os sete primeiros colocados travaram a Copa Adrián Escobar, torneio de prestígio na época em jogos com dois tempos de vinte minutos. Boca e River fizeram a semi e ao fim do 0-0 o Millo avançou pelo insólito critério de desempate: número de escanteio. Mas perdeu a taça para o Huracán.

Já as três edições seguintes do Argentinão foram as primeiras em que a dupla de fato concorreu até o fim pela taça. Foram os primeiros campeonatos em que ocuparam as duas primeiras posições no pódio, em ciclo cheio de ironias. A primeira delas é que os anos de 1943 e 1944 foram aqueles em que foi mais vezes utilizada a formação mais famosa do ataque da celebrada La Máquina do River (Juan Carlos Muñoz, José Manuel Moreno, Adolfo Pedernera, Ángel Labruna e Félix Loustau). Mas o Boca terminou campeão respectivamente por um e dois pontos de diferença, com o uruguaio Severino Varela se consagrando em ambas as campanhas por marcar os gols decisivos nos Superclásicos. Mas não houve encontros nas três rodadas finais.

A segunda ironia é que no torneio de 1945, houve sim um Superclásico nas três rodadas finais – no caso, na antepenúltima. E deu Boca, por goleada: 4-1 na Bombonera. O que não impediu que já na rodada seguinte o rival garantisse por antecipação o título. E a terceira ironia é que aquele célebre quinteto ofensivo não atuou junto, com Moreno exilado no futebol mexicano entre 1944 e 1946. Sem sua dose de espetáculo (Moreno chegou a ser considerado pelos mais antigos como superior a Maradona), os campeões foram apelidados de “Os Cavaleiros de Angústia” pelas vitórias em placares mais magros.

O brasileiro Delém chora o pênalti perdido em 1962. Norberto Ménendez, ex-River, foi carrasco em 1964 e 1965 e tira um sarro do desafeto Amadeo Carrizo

Em 1947, o River da revelação Alfredo Di Stéfano foi campeão e o Boca, vice, mas por antecipação e sem Superclásico no fim do campeonato. Foram seis pontos de diferença, enormidade quando a vitória ainda valia dois. Novos pódios com os dois vieram em 1954 (Boca primeiro, River terceiro e sete pontos de diferença) e 1956 (o inverso e três pontos de diferença), mas novamente sem um Superclásico nas três rodadas finais.

A rivalidade voltou a pegar fogo especial mesmo nos anos 60, a mais marcante em decisões. Todas cruéis ao River, que entre 1957 e 1975 não ganhou nenhum título oficial, no seu pior jejum – muitas vezes majorado pelo rival. A primeira vez foi em 1962 e era o Boca quem amargava um jejum considerável, de oito anos, então o segundo maior que vivia. Na penúltima rodada, ambos se encontraram na Bombonera igualados na liderança. O dérbi histórico foi marcado por um pênalti para cada lado. E com brasileiros cobrando-os: Paulinho Valentim acertou para os anfitriões.

A cinco minutos do fim, Delém teve a chance de empatar, mas teve a cobrança defendida por Antonio Roma – que, é verdade, adiantou-se gritantemente em três passos, infração que não foi anulada. O campeonato não foi matematicamente definido ali, mas psicologicamente sim. Detalhamos aqui o drama e euforia daquele momento.

A década foi pródiga em Superclásicos nas rodadas finais. Em 1963, o Boca bateu o River por 1-0 no Monumental, mas mais para atrapalha-lo, pois o foco excessivo na Libertadores (algo então inédito) custara aos auriazuis, vices continentais, fôlego no torneio doméstico – vencido pelo Independiente por dois pontos de vantagem sobre os millonarios.

O único Boca x River na rodada final de pontos corridos valendo título para ambos foi em 1969. Madurga, autor dos gols xeneizes, e a desafiadora volta olímpica de Marzolini contra a irrigação

Em 1964, novo encontro na penúltima rodada permitiu ao Boca ser matematicamente campeão, pela primeira vez, em pleno Superclásico. O River, porém, já não tinha chances, ainda que terminasse o torneio em terceiro, mas a sete pontos do rival. Abriu o placar, mas levou o empate no segundo tempo, gol do veterano Norberto Menéndez – ídolo riverplatense nos anos 50 e único três vezes campeão argentino por ambos. Já em 1965, só um ponto separou a dupla. E a ultrapassagem veio na antepenúltima rodada. Deu Boca 2-1 na Bombonera. E com Menéndez novamente marcando o gol decisivo.

Mesmo vice, o River classificou-se à Libertadores de 1966, exatamente a primeira a admitir livremente também os vice-campeões nacionais. Boca e River estiveram no quadrangular-semifinal, com o Boca vencendo o rival na rodada final por 1-0 – por sinal, gol de outro ex-millonario, Alfredo Rojas. Mas os auriazuis não tinham chances; o resultado só forçou um jogo-extra entre River e Independiente, empatados na liderança. O River avançou, mas adiante perdeu para o Peñarol uma finalíssima quase ganha, tragédia que originou o apelido de gallinas. Como a semifinal não era mata-mata, não consideramos.

Em 1968, um ponto separou o Boca em favor do River no Torneio Nacional. Mas sem Superclásico nas rodadas finais. O Millo terminou líder empatado com Racing e Vélez, forçando um triangular onde os velezanos levaram a melhor, campeões pela primeira vez da elite. Já o ano de 1969 foi duas vezes cruel com a Banda Roja: no Torneio Metropolitano, o River eliminou o rival na semifinal, com o 0-0 em jogo único no neutro estádio do Racing favorecendo a melhor campanha dos millonarios na fase de grupos. Mas na decisão o River levou de 4-1 do nanico Chacarita, no único título funebrero na elite.

Não se limitaria a isso. Boca e River adiante disputaram cabeça a cabeça o Torneio Nacional. E dessa vez o Superclásico ficou para a rodada final, com dois pontos separando-os. Dois gols de Norberto Madurga (campeão brasileiro de 1972 pelo Palmeiras) deram o título aos visitantes no Monumental, que seguraram empate em 2-2: foi a primeira volta olímpica do Boca na casa rival, ineditismo não suportado pelo staff dos anfitriões, que acionou o sistema de irrigação para melar as comemorações. Inebriado, o capitão xeneize Silvio Marzolini, melhor lateral-esquerdo da Copa do Mundo de 1966, deu então duas voltas olímpicas. O técnico boquense, por ironia, era o ídolo millonario Alfredo Di Stéfano.

A cobrança de Suñé e ele erguido por Tarantini

Em 1970, dois pontos voltaram a separar Boca e River, mas sem duelos nas fases decisivas. O Millo ficou à frente, mas perdeu o título nos critérios de desempate para o Independiente. Em 1972, Boca e River fizeram no neutro estádio do Vélez o jogo único da semifinal do Torneio Nacional. Deu River 3-2, mas o filme de 1969 se repetiu: na decisão, o time de Núñez terminou derrotado, dessa vez pelo placar mínimo pelo San Lorenzo. A seguir veio aquela final de 1976, já detalhada neste outro Especial. O jogo único ocorreu na neutra cancha do Racing e só teve um gol, anotado nos minutos finais em falta cobrada por Rubén Suñé – que nos 40 anos do lance, em 2016, foi homenageado com uma estátua no museu boquense, em La Bombonera.

Em 1978, vale menção a outra semifinal sem mata-mata, pela Libertadores. Na rodada final do triangular, o Boca venceu por 2-0 dentro do Monumental e se assegurou na decisão, onde faturaria o bi seguido. Como tantas vezes nos anos 60, os gols foram de vira-casacas: Heber Mastrángelo e Carlos Salinas eram ambos ex-River.

Os anos 80, por sua vez, foram um declínio. O River teve um ano mágico em 1986, onde ganhou pela primeira vez a Libertadores (eliminando o rival na fase de grupos) e o Mundial, além de virar o primeiro time argentino a conseguir a tríplice coroa, vencendo também o nacional. Desempenho enganoso em relação à década: foi o único ano de títulos que o time teve de 1981 a 1990. O Boca, por sua vez, padeceu de jejum entre 1981 e 1989, seca que a nível nacional durou de 1981 a 1992. Mas houve espaço para um Superclásico especial em 1989.

O duelo foi válido pela liguilla, torneio-repescagem que existiu de 1986 a 1992 pela outra vaga argentina na Libertadores (e cujos vencedores não se inibiam em comemorar com volta olímpica). River e Boca haviam caído em mata-matas prévios, o que não significou a eliminação, e sim uma sobrevida em mata-matas à parte entre os derrotados. Após dois jogos em 0-0, o River ganhou por 2-1 e celebrou a “final dos derrotados”, na prática uma semifinal. Adiante, o Millo bateu o San Lorenzo, que havia ganho o mata-mata dos vencedores. A vitória no Superclásico foi agridoce: nela, Daniel Passarella foi expulso, no que terminou sendo a última partida da sua carreira.

Mastrángelo classifica no Monumental o Boca à final da Libertadores de 1978. Em 1989, o River venceu a liguilla sobre o rival, mas Passarella, expulso, pendurou as chuteiras

No Apertura 1992, o Boca foi campeão argentino e deixou o rival de vice, mas sem Superclásicos nas rodadas finais. O duelo também não ocorreu na reta final do Apertura 1993, onde os auriazuis ficaram em quarto, mas a dois pontos do campeão River. Nem no Apertura 1997, em novo título millonario, um ponto acima do rival – o dérbi, histórico, marcou a despedida de Maradona, mas ocorreu ainda na metade da campanha. No Clausura 1999, o Boca voltou a ser campeão e a ver o rival como vice, mas sete pontos atrás. Três pontos separaram no Apertura 1999, favorável ao River, mas novamente sem o duelo no fim.

No novo século, Boca e River ficaram no pódio juntos no pódio no Apertura 2000 (deu Boca), no Clausura 2002, Clausura 2003, Clausura 2004 (todos do River), Clausura 2006 (Boca), Apertura 2006 (título do Estudiantes), Clausura 2008 e no Torneio Final 2014 (ambos do River). Mas a AFA, em tempos de crescente violência entre as torcidas, parece ter se preocupado em agendar os Superclásicos sempre para o meio do campeonato, e não mais para as retas finais. Quando o acaso proporcionou encontro pelas copas continentais, a regra foi adotar torcida única. Quando a medida ainda não era generalizada, foi aplicada já na semifinal da Libertadores 2004, que dispensa comentários.

Relembramos aqui aquelas semifinais épicas, com direito a dois gols nos minutos finais, combo gol + provocação + expulsão de Tévez e anticlímax mútuo: derrotado na ida por 1-0, o River, com nove jogadores, buscou o gol da sobrevida por 2-1 nos acréscimos (não havia ainda o critério do gol fora de casa), pouco após o baque do gol quase decisivo de Carlitos. Mas a euforia deu lugar à derrota nos pênaltis, para o desespero de Maxi López, único a errar. Jogadores do Boca, por sua vez, já declararam que o esgotamento psicológico para superar aquela tensa semifinal ainda os exauria na decisão, perdida para a surpresa Once Caldas.

O Millo veio a ter seu troco dez anos depois, em outras semifinais, na Sul-Americana 2014, com a diferença de adiante ter sido campeão. O 0-0 renhido na Bombonera foi seguido do 1-0 no Monumental, com o Boca perdendo pênalti e o River festejando o gol solitário, mas suficiente, de Leonardo Pisculichi.

Pisculichi e o único gol das semis da Sul-Americana 2014: “agora mando eu” foi o recado do River
Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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