Presente na primeira Argentina campeã da Copa América, ele foi o primeiro grande ídolo do Boca, presente já na estreia xeneize na elite argentina e também nos primeiros títulos auriazuis, levando-o a deter o recorde de jogos pela seleção até os anos 40 – e ainda ser o jogador de linha boquense mais vezes usado pela Albiceleste, pois só os goleiros Américo Tesoriere e Antonio Roma passaram-no. Ontem fez-se 70 anos sem ele, o hábil pai da bicicleta, como os argentinos chamam o drible de pedalada (o que nós chamamos de bicicleta, por sua vez, lhes é a chilena) e dono de 97 gols pelo clube no campeonato argentino: o ponta Bleo Pedro Fournol, que, tal como Segundo Luna (prata olímpico em 1928 e de sobrenome original Gómez) e o zagueirão Walter Samuel (de sobrenome original Luján), que identificaram-se com seus respectivos padrastos, acabou por adotar o sobrenome da família que o criou, os Calomino.
Nascido em 13 de março de 1892 em uma família de origem francesa em Buenos Aires mas sem chegar a conhecer os pais, Pedro Calomino foi de um tempo em que o Boca ainda jogava na segunda divisão. Sim: embora se orgulhe de ser o único clube jamais rebaixado na Argentina, a equipe precisou sim passar pela segundona, criada ainda em 1899 ao passo que o time foi fundado já em 1905. Proveniente das inferiores trazido do Catedral del Norte pelo dirigente Oreste Abat, ele fez sua estreia no time adulto em 4 de junho de 1911, contra outro futuro gigante ainda adormecido na segundona, o Independiente (igualmente fundado em 1905). Já ali marcou seu primeiro gol, em triunfo por 2-1. Mas só voltaria a campo outra vez no torneio, na rodada final, em 17 de dezembro. O time corria sérios riscos de cair para a terceira divisão, tratando de afasta-los com categoria: 6-1 sobre um time de Núñez. Não o River, ainda sediado no mesmo bairro de La Boca, e sim o Comercio.
Calomino ainda atuou em dez jogos da segunda divisão de 1912, entre março e agosto, com dois gols marcados. Ainda em julho, alguns clubes se desfiliaram da AFA (então AAF) e criaram um campeonato à parte através da dissidente Federação Argentina de Futebol, a FAF – dentre eles, o Independiente, que assim saltou, nos escritórios, da segundona à elite. Outro a fazer isso foi o Argentino de Quilmes, o primeiro clube “latino” de futebol no país, daí o nome. Ainda não firmado no Boca, Calomino dirigiu-se em setembro a este clube, onde permaneceria até março de 1913. Ali, começou a mostrar-se um goleador mais regular, com seis gols em seis jogos pelo torneio da FAF. Em um torneio embolado, o Mate terminou em quinto, mas a três pontos dos co-líderes Porteño e Independiente.
Nesse embalo, já em setembro de 1912, no dia 22, Calomino estreou pela seleção argentina, em derrota de 1-0 para o Uruguai em Buenos Aires. Logicamente, era uma seleção de jogadores da FAF, cujas partidas seriam convalidadas como oficiais (pois só a AAF era reconhecida pela FIFA) após as duas ligas se reunificarem em 1914. Calomino detestava chuteiras e as descalçou no decorrer do jogo para atuar apenas de meias mesmo. Isso levou ao próprio presidente da FAF, Ricardo Aldao, a buscar esclarecer se o ponta poderia utilizar sapatos comuns, no que foi autorizado após diversos estudos de regulamentos. Em paralelo, a AAF reagia à debandada de clubes para a FAF ao ampliar sua primeira divisão com times remanescentes da segunda, dentre elas o Boca, que assim pôde na canetada estrear em 1913 na elite argentina. Calomino reestreou como auriazul em amistoso de 16 de março de 1913 contra o Racing, vencedor por 3-1. Esteve desde o início na primeira temporada boquense na primeira divisão.
Curiosamente, em 1913 o clube precisou deixar provisoriamente La Boca rumo ao norte portenho dez anos antes do River fazer definitivamente o mesmo. Por problemas de aluguel com o campo usado na doca sul, o time foi convidado de modo cavalheiro pelo Estudiantes de Buenos Aires a usar o campo dos alvinegros, no bairro de Palermo; o primeiro Superclásico (ainda Clásico Boquense até os anos 30) da elite argentina precisou ser inclusive realizado no estádio do Racing. Calomino anotou sete vezes em quinze jogos da campanha que justificou o acesso extracampo: os estreantes terminaram em segundo lugar de seu grupo. Nisso, o ponta apareceu pela seleção em 10 de agosto, em derrota de 2-0 para a seleção paulista de Friedenreich. O jogo foi não-oficial, mas na prática ele tornou-se ali o segundo xeneize aproveitado pela Argentina, após a estreia de Francisco Taggino em 15 de junho. Nada que impedisse que regressasse ao torneio da FAF para 1914, novamente pelo Argentino de Quilmes, enquanto o Boca viu-se necessitado a mandar seus jogos na cidade de Wilde.
O Argentino atuou apenas no primeiro turno do campeonato, a última delas com um 4-1 no Independiente, antes de voltar atrás e desfiliar-se da própria FAF. Deu tempo para Calomino marcar seis vezes e fazer em 30 de agosto sua segunda partida pela Argentina, em derrota de 3-2 para o Uruguai em Montevidéu, anotando um gol. As ligas se unificaram em 1915, ano em que o ponta começou atuando pelo Hispano Argentino (um dos clubes que originariam o atual Almagro), onde deixou quatro gols em seis jogos antes de um terceiro passo pelo Boca – iniciado em 20 de junho justamente em dérbi com o River, vencedor por 2-0. Foi a oitava rodada seguida sem vitórias do time, seca que incluiu seis derrotas, um delas um 6-0 para o Racing. A sequência ruim acabou na segunda partida da volta de Calomino: exatamente contra o Hispano Argentino, derrotado por 3-1 com dois gols do “ex”.
Mas o time (ainda mandando suas partidas na distante Wilde) não se acertou tão bem, chegando a sofrer em outubro a pior derrota de sua história na liga, um 7-0 para o San Isidro. Foi preciso lutar contra o rebaixamento, afastado com um 5-0 sobre o San Lorenzo e um 2-0 no Comercio nas duas rodadas finais. Com nove gols em 16 jogos, Calomino mostrou-se vital na salvação. Ele não deixaria mais o clube, que enfim pôde voltar a seu bairro de origem em maio de 1916, com a liga já em andamento desde abril. O ponta repetiu os nove gols, em dezenove jogos de uma campanha ainda de meio de tabela, dividindo o 11º lugar com outros quatro clubes.
Nada que impedisse atmosferas festivas sob uma plateia nunca inferior a 4 mil pessoas empolgadas com o regresso do time a La Boca, ovacionando Calomino como Calumín, no sotaque genovês. Afinal, segundo o diário El Nacional assim era o ambiente de um jogo do Boca na época, em registros de um 2-1 no San Isidro: “uma atmosfera genovesa, com castanhas, peixe frito e bon barbera. (…) O cheiro da primavera se perde nos odores flutuando desde o Riachuelo e da fumaça de cachimbos. A língua da Argentina não é falada aqui, mas em bom velho patuá lígure as chances sobre o favorito são discutidas. (…) Há uma numerosa plateia no estádio, espalhadas com cor pelo algodão tricolor das ‘ragazzas’ do bairro. (…) ‘Eh, Mássalo Pieralini!’, ‘A rumpe a gamba!’, ‘Dagulé Artica, dagulé!’”. Em 1917, então, o Boca começaria uma sequência de torneios sempre no pódio, em série só quebrada já em 1932.
A série começou com um importante terceiro lugar e apenas duas derrotas, no embalo de doze gols de Calomino em dezenove jogos. Após o encontro não-oficial contra os paulistas em 1913, ele enfim estreou oficialmente pela seleção como jogador do Boca naquele período, em 15 de agosto, anotando o único gol de um duelo contra o Uruguai em Avellaneda. Terminou convocado em outubro para a Copa América (a segunda da história), onde deixou um gol no 4-2 sobre o Brasil. A terceira colocação foi repetida em 1918, em torneio que rendeu o primeiro triunfo xeneize sobre o River na primeira divisão. Calomino marcou nove vezes em dezesseis jogos na campanha. Para 1919, ele começou morno, sem marcar após três partidas, mas foi incluído para nova Copa América. Foi após o fim da pausa para o torneio que ocorreu um novo cisma no futebol argentino.
O todo poderoso Racing, então hexacampeão seguido, foi desfiliado junto com o então líder Independiente, o bivice River e outros clubes após ignorarem a rejeição da associação aos representantes por eles nomeados para representarem-nos perante ela. Eles formaram um torneio à parte, sem que a associação cedesse. Esse cisma duraria até 1926 e o Boca se aproveitou: o torneio de 1919 foi reiniciado do zero e o time já pôde sagrar-se matematicamente campeão após a oitava vitória em oito jogos, nos quais Calomino marcou cinco vezes, incluindo no inapelável 7-0 sobre o Huracán – o time que seria o principal antagonista xeneize naquele cisma. O ponta também notabilizou-se pelo gol que perdeu propositalmente, ao desperdiçar contra o Estudiantes, que vencia por 1-0, um pênalti que sabia ter sido mal marcado.
Foi o primeiro título argentino do Boca, que na sequência obteve outros troféus ao longo de 1920: decidiu e levou contra o Rosario Central tanto a Copa Ibarguren (tira-teima entre o campeão argentino e o campeão rosarino para definir moralmente o melhor time do país) e a etapa argentina da Copa Honor – onde o ponta anotou já na prorrogação o único gol. Depois o Boca bateu o Nacional uruguaio para levantar a Copa Competencia, que opunha times portenhos, rosarinos e uruguaios, tal como a Copa Honor. Ao fim do ano, veio o bicampeonato argentino seguido, com uma só derrota e sete gols de Calomino em vinte jogos. O sucesso esportivo, porém, não impediu uma severa crise econômica no clube em 1921, com muitos pilares do clube (em especial o goleiro Américo Tesoriere e o meia Alfredo Garassini) debandando provisoriamente para o Sportivo del Norte, atual Colegiales.
O Boca então emendou duas campanhas de terceiro lugar enquanto o Huracán levava seus dois primeiros títulos na elite. Calomino, por seu lado, decresceu para só dois gols em doze jogos de 1921, mas oito em treze em 1922. A falta momentânea de títulos com o clube não impediu que Calomino pudesse se sobressair com a seleção: ele esteve presente no primeiro título da Albiceleste na Copa América, em 1921. Em 1922, ausente da Copa América, ficou marcado especialmente por um jogo não-oficial, contra a seleção da província basca de Guipúzcoa. A pedalada era desconhecida pelos europeus e, em meio à surra de 4-0 (um dos derrotados era inclusive argentino: Eduardo Arbide, um espanhol de sangue que defendia a Real Sociedad antes desse time abrir-se a partir dos anos 80 a forasteiros não-bascos), levou à loucura o marcador adversário Arrate, que chegou a revoltar-se: “ou vais para trás ou para frente, mas jogue com lealdade!”.
O troco no Huracán veio de modo categórico em 1923, que marcou o retorno dos ídolos renegados no Colegiales e a estreia da sólida dupla defensiva Ludovico Bidoglio e Ramón Muttis. A dupla terminou igualada na liderança e o conselho executivo da associação então designou dois jogos-desempate, já em março de 1924, em jogos que já se intercalavam com o campeonato de 1924 sob andamento. O Boca ganhou o primeiro de 3-0 em 16 de março de 1924 e perdeu o seguinte por 2-0 em 30 de março e, diante de inexistência de critérios de desempate, as vitórias para cada lado forçaram um jogo-extra. Em 6 de abril, esse duelo terminou sem gols, forçando um segundo jogo-extra, ganho já em 27 de abril por 2-0 pelos xeneizes em partida tão aguardada que requisitou-se arbitragem de uruguaios. Calomino não marcou nessas quatro finais, somando oito gols em 28 jogos naquela campanha de 1923, com a principal referência ofensiva auriazul centrando-se em Domingo Tarasconi (futuro artilheiro das Olimpíadas de 1928), autor de 39 gols.
Foi uma despedida à altura para o veterano, que não pôde prosseguir para a histórica excursão europeia de 1925: vinha sofrendo com problemas de visão em um dos olhos. Ele só atuaria mais seis vezes pelo Boca depois do título, em mais quatro jogos pelo torneio próprio de 1924 (foram seis jogos e dois gols; o Boca ao fim voltaria a ser campeão), no 1-0 em nova Copa Ibarguren contra o Rosario Central e no 0-0 em julho contra o Plymouth Argyle, o primeiro time europeu enfrentado pelo Boca – e contra quem Calomino atuou também pela seleção, em amistosos não-oficiais vencidos por 3-0 em junho e 1-0 em 20 de julho. Uma semana depois, pendurou as chuteiras precisamente na ocasião da inauguração do novo estádio xeneize, em 27 de julho, em derrota de 2-0 para o Argentinos Jrs.
Com as chuteiras penduradas, Calomino até participou como bandeirinha de outro clássico platino de 1924, no histórico duelo do primeiro gol olímpico oficial do futebol, em outubro. Apenas em 1945 é que ele foi superado em jogos oficiais pela seleção, pelo zagueiro José Salomón; até então, dividia com o velho colega Tesoriere o recorde, considerando-se seus jogos vindo do Argentino de Quilmes. Descansou em paz em 12 de janeiro de 1950, com seu Boca recém salvo na última rodada de 1949 do rebaixamento – e quase dez anos depois de ser contemplado com a honra de primeiro içar a bandeira boquense na então recém-inaugurada Bombonera. Se não era mais o maior goleador, superado por Francisco Varallo e por Roberto Cherro (ambos já aposentados àquela altura), o primeiro ídolo era o maior filho pródigo: suas três passagens, até hoje, só foram superadas pelas quatro de Claudio Tapia, vencedor da Copa de 1986.
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