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Primeiro duelo Brasil x Argentina faz 100 anos hoje!

Píndaro, Marcos, Nery; Otávio Egídio, Lagreca, Pernambuco; Millon, Osvaldo, Friedenreich, Bartô e Arnaldo: a escalação brasileira contra a Argentina há exatos cem anos

Uma das maiores rivalidades do mundo completa hoje um século do primeiro encontro. Como não poderia deixar de ser, as circunstâncias eram bem diferentes, e isso se estendia ao cavalheirismo ainda bastante pregado no mundo do futebol. A primeira vez de Brasil e Argentina deveu-se à disputa da Copa Roca, taça reavivada há alguns anos sob o nome Superclássico das Américas.

A seleção argentina já havia enfrentado os brasileiros duas vezes antes, mas ainda não havia propriamente uma seleção brasileira oficial. As mais notórias foram em setembro de 1912, com o próprio ex-presidente argentino Julio Roca, na época embaixador no Brasil, implorando a seus pares que puxassem o freio em nome da complicada diplomacia entre os dois países: na semana dos 90 anos do grito do Ipiranga, os hermanos ganharam de 6-3 no Velódromo de São Paulo e de 4-0 no Rio de Janeiro, nas Laranjeiras (ocasião em que Roca teria feito a curiosa solicitação – o jogo estaria 3-0 e os jogadores teriam lhe dito que cumpriram a ordem pois fizeram apenas mais um gol).

Naqueles dois jogos e no outro que fizeram antes de 1914 (Argentina 3-2 nas Laranjeiras em 1908), o oponente alviceleste foi mais propriamente um combinado de jogadores da cidade-sede. 1914 foi o ano em que se criou, em 8 de junho, a Confederação Brasileira de Desportos, embrião da atual CBF. Dessa vez, o representante nacional teria jogadores de clubes cariocas e paulistas e assim venceu-se, em 21 de julho, o clube profissional inglês Exeter City naquele que é considerado o primeiro jogo da seleção brasileira. O duelo seguinte foi o que hoje completa um século e seria de fato o primeiro da seleção brasileira àqueles que só consideram válidos os jogos entre seleções.

O mesmo Julio Roca ofereceu uma taça a ser disputa entre a seleção da CBD e a seleção da FAF, a Federação Argentina de Futebol. O dia combinado para a disputa da primeira Copa Roca foi aquele 20 de setembro de 1914, na capital argentina, no estádio do Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires (mais conhecido pela sigla GEBA). A vinda brasileira seria combinada com a realização do Congresso Sul-Americano de Futebol, que no dia 21, com delegados também chilenos e uruguaios, fundou o que hoje é Conmebol. Contudo, os jogadores visitantes puderam pôr os pés em Buenos Aires só a poucas horas da partida após tempo ruim a bordo do navio Alcântara. O jogo aconteceu ainda assim, mas acertou-se que a disputa da Copa Roca ficaria adiada em uma semana. A partida do dia 20 ficou amistosa. Roca não conseguiria estar presente: sua saúde deteriorou-se rapidamente e ele faleceria no mês seguinte.

Os representantes da casa foram Carlos Muttoni (Independiente), Roberto González Escarrá (Porteño) e Arturo Reparaz (GEBA), Mariano Aldea (Hispano Argentino), Aquiles Molfino (GEBA) e Santiago Sayanes (GEBA), Juan José Lamas (Estudiantes), Roberto Leonardi (Estudiantes), Antonio Piaggio (Porteño), Carlos Izaguirre (Porteño) e Francisco Crespo (Tigre). A quem estranhou a ausência de Boca, River e outros como Racing e San Lorenzo,  a explicação: nenhum deles era da FAF e sim da AAF, a Associação Argentina de Futebol. Os dois órgãos eram dissidentes desde 1912 e só se unificariam em 1915. A AAF era a reconhecida pela FIFA, mas a alta sociedade portenha desfrutava mais os clubes da FAF, como o elitista GEBA, exatamente quem liderara o rompimento com a AAF. Saiba mais dele clicando aqui.

Seleção argentina de 27 de setembro, mas com alguns nomes daquele 20 de setembro: um delegado, Diomedes Bernasconi, Carlos Galup Lanús (meio agachado), Juan José Rithner, Ricardo Naón e Santiago Sayanes; Ernesto Sande, Juan José Lamas, Roberto Leonardi, Antonio Piaggio, Carlos Izaguirre e Francisco Crespo

Mas mesmo que já houvesse só um órgão para o futebol argentino, talvez estes clubes não estivessem representados: Boca e River ainda eram clubes de bairro sem um único título nacional e o San Lorenzo sequer havia chegado à elite ainda (assim como o Vélez, que era da FAF). Exceção, só o Racing, campeão da AAF no ano anterior e que emendaria outros seis títulos seguidos ao inicial. Seu hepta ainda é um recorde. Já os clubes Porteño e GEBA ainda existem, mas abandonariam o futebol. O Hispano Argentino também desapareceu, fundindo-se com outros clubes que deram origem ao atual Almagro.

Alguns brasileiros também vieram de clubes hoje obscuros. Eis a escalação: Marcos Carneiro de Mendonça (Fluminense), Píndaro (Flamengo) e Nery (Flamengo), Otávio Egídio (São Bento), Lagreca (São Bento) e Pernambuco (Fluminense), Millon (Paulistano), Osvaldo Gomes (Fluminense), Friedenreich (Ypiranga), Bartô (Fluminense) e Arnaldo (Paulistano). Perderam de 3-0, com dois gols de Izaguirre e um de Molfino, que cumpriu curiosa trajetória: só ele, dos que jogaram apenas uma vez pela seleção, foi capitão e marcou gol. O goleiro argentino Muttoni já havia jogado pela seleção, vindo do Racing. Foi o primeiro dos dois que a Argentina usou da dupla rival de Avellaneda, e por muito tempo foi o único – o outro foi Gabriel Calderón, nos anos 80. O juiz foi o uruguaio León Peyrou.

Se hoje a mídia (e não só ela) de ambos os países se contaminou pela xenofobia mútua, na época o tratamento foi oposto. As manchetes eram para o Papa Pio X, morto no mesmo dia 20, e etapas da Primeira Guerra Mundial, mas houve espaços para notas como “a instituição dessa bela Copa deve-se à grande ideia da entente cordiale sportiva, levantada no ano passado”, no Jornal do Brasil do dia 27. “Os delegados brasileiros visitaram o general Julio Roca, com quem conversaram durante alguns momentos, mostrando-se penhorados com o carinhoso acolhimento que lhes dispensou”, está no O País de 23 de setembro, que registrou também que “os footballers brasileiros continuam sendo alvo de significativas manifestações de apreço de seus colegas portenhos (…). Em todos esses estabelecimentos foram recebidos com altas provas de distinção, retirando-se agradavelmente impressionados”.

A Gazeta de Notícias de 23 de setembro relatou assim: “devido ao mal tempo reinante, o Alcântara, em que foram os sportsmen brasileiros, só chegou a Buenos Aires domingo de manhã, sendo os nossos patrícios recebidos com inequívocas manifestações de simpatia pelo Sr. Dr. Ricardo Aldao, presidente da Federação Argentina de Football. (…) Devido ao atraso da entrada do vapor, foi transferida para o próximo domingo a disputa da Taça Julio Roca. Não obstante isso, ao cansaço da viagem e ao mal estado do campo, jogaram no mesmo dia, em Palermo, um match amistoso com argentinos, que os venceram por 3 a 0. (…) A população bonaerense tem sido pródiga em demonstrações de carinho e simpatia à delegação esportiva brasileira”. Já o jornal O Imparcial de 28 de setembro também fez registros da partida propriamente dita. Ei-los abaixo:

Os brasileiros a bordo do Alcântara: Lagreca, Píndaro, Rubens Salles (autor do gol no dia 27, não jogou no dia 20), Marcos, Nery, Pernambuco e Joaquim de Souza Ribeiro; Millon, Osvaldo, Bartô, Friedenreich e Arnaldo

“A disputa da ‘copa’ Julio Roca estava, como é do domínio de todos, marcada para o dia 20, mas o cansaço de que se achavam possuídos os jogadores patrícios fez com que os argentinos, num requinte de gentileza, transferissem a tão importante prova para ontem, a fim de poderem os conjuntos rivais entrarem em luta pelo menos em determinada igualdade de condições. Foi um gesto louvável o dos distintos sportsmen platinos. Uma vez decidida a transferência do aludido match, ficou combinado que o team brasileiro treinasse num encontro amigável com o seu adversário, o que redundou em um ensinamento para os jogadores ‘auriverdes’, que de tão emocionante peleja conseguiram unicamente tirar experiências.

O primeiro encontro argentino-brasileiro deu-se no campo do ‘Gimnasia y Esgrima’, em Palermo, tendo a ele assistido inúmeras pessoas que ‘aliadas’ lá estavam estrategicamente dispostas para aplaudir as equipes contendoras. (…) Foi juiz o Sr. L. Puyrosa [sic], da liga Uruguai, que – coisa entre nós difícil – agiu com imparcialidade. A sorte favoreceu-nos e desse modo o team brasileiro ficou jogando a favor do sol, tendo entretanto para importuna-lo de frente um vento que, de momento a momento, soprava varrendo o ground. Piaggio, center argentino, foi quem teve a honra de dar o kick inicial.

Os atacantes locais investiram celeremente, dando lugar a que Nery, o fullback rubro-negro, fizesse a primeira tirada, que foi coroada com aplausos da seleta assistência. Voltaram os argentinos à ofensiva e o nosso goal foi assediado por shoots, que eram desviados da trajetória pelas rebatidas dos ágeis fullbacks, e pela perícia de Marcos de Mendonça. Crespo enviou às barras brasileiras um hábil e vigoroso shoot que foi detido, em bela forma, por Píndaro. Passados alguns minutos, os nossos patrícios deliberaram dar uma investida às barras inimigas: Osvaldo avança impetuosamente pela extrema e dá um ‘centro’ que Luís Bartô escora, estando, porém offside. A esfera foi ter a rede do team local, mas o ponto foi pelo juiz, mui justamente anulado.

Há outra investida do inside brasileiro e Muttoni devolve a ‘pelota’ ao centro de campo, merecendo este seu feito muitos aplausos. Aos vinte minutos de jogo, Egídio comete uma falta perto da área de penalidade: Sayanes foi encarregado de dar o free-kick e a esfera foi ficar mesmo diante do goal de Marcos, que teve ocasião de fazer habilíssimas defesas. Estavam mais ou menos equilibradas as equipes adversárias. Mas este estado de coisas não se manteve inalterável: os argentinos foram tornando mais impetuosas as suas investidas, até que nos conseguiram dominar quase que inteiramente. Aos quarenta e um minutos de jogo, Izaguirre, recebendo um passe de Piaggio, burla pela primeira vez a atenção de Marcos, fazendo, violentamente, a esfera agitar a rede do goal, cuja guarda lhe estava confiada. Sempre atacando, o team argentino nada mais conseguiu até o final do primeiro half.

Cenário da partida, o campo do Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires, que desativou o futebol em 1917

Recomeçada a peleja, Freindereich [sic] dá uma saída fazendo supor a todos os presentes que o jogo iria ser mais equilibrado que o do primeiro tempo, pois que os avantes sucederam-se em rigorosos ataques que muito comprometiam as barras por ele visadas. Devido a um corner de Nery resultou o segundo goal para os argentinos. Crespo bateu a pelota fazendo-a cair em frente ao goal brasileiro, donde após uma série de shoots indecisos, foi vigorosamente impulsionada por Marfino [sic], que, pela segunda vez conseguiu iludir a vigilância de Marcos. Mais algumas investidas e o keeper brasileiro teve oportunidade de produzir uma defesa que lhe valeu estrepitosas palmas.

Piaggio, após uma série de dribblings, consegue aproximar-se da área do goal e, quando, à distância de dois metros, pretendeu dar um shoot vigoroso, leva a pelota, arrebatada por Marcos, que num último esforço resolveu abandonar a posição que guardava. O último goal dos argentinos foi feito por Izaguirre, a uma distância de cinco metros. Marcos nem teve tempo de divulgar a pelota, tal a rapidez com que foi arremetida. Freindereich [sic] dá vigoroso shoot contra o goal argentino, mas devido ao pouco auxílio que lhe prestam, coisa alguma consegue. Quase no final do match, Luís Bartô deu um violento kick que batendo na trave horizontal do goal de Muttoni fez a esfera ricochetear à área de penalidade, donde a fez sair Sayanes. Os players brasileiros organizaram alguns ataques, mas coisa alguma conseguiram, porque o juiz dava, pouco depois, por terminado o match, estando os argentinos vencedores do mesmo pelo score de 3 goals a 0.

Os nossos colegas do jornal ‘La Prensa’ em suas apreciações sobre o team brasileiro acharam que os seus jogadores são bons e que são hábeis conhecedores dos recursos de seus companheiros, condição esta em que se torna mais eficaz. São para conosco muito complacentes os ponderados cronistas do diário bonaerense. O nosso team não é bom; possui jogadores excelentes mas estes não formam a sua totalidade. A nossa linha de halves poderia ser perfeitamente melhorada, o mesmo acontecendo ao ataque que só tem um jogador à altura de um verdadeiro scratch, e este é Freindereich [sic]. ‘O goalkeeper brasileiro e os backs mostraram ser seguros’, diz ‘La Prensa’.

Sobre estes três jogadores muito ainda têm que falar os argentinos, mesmo porque são tidos como os primeiros da América do Sul em suas posições – já se vê. É pena que a falta de tempo e a precipitação com que foi deliberada a partida do nosso team não dessem lugar para que pudéssemos organizar um outro muito mais forte e homogêneo. Apostamos que os argentinos não teriam para nós expressões mais admirativas, se não ao lado dos bons que lá se encontram vissem jogar Mimi – o primeiro forward dos nossos grounds; Juvenal, Xavier; o veloz Formiga, Rolando, Lulu, Demóstenes e outros.”

Em uma semana, a primeira Copa Roca completa seu centenário e logicamente falaremos dela. Até lá!

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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