O suicídio coletivo do futebol sul americano
O que houve ontem na Bombonera foi absolutamente inaceitável. Dizer isso é apenas repisar o óbvio. Sobre o assunto e suas consequências imediatas nada tenho a acrescentar em relação ao post opinativo do meu amigo Rodrigo Vasconcelos. Quero abordar outro tópico: o fato de que o futebol sul americano está fazendo o possível para morrer.
Apenas para situar o leitor: tenho 42 anos, sou gaúcho, gremista, mas cresci em Volta Redonda, vibrando loucamente com o Voltaço nas arquibancadas de madeira do velho estádio Silvio Raulino de Oliveira. Morei 12 anos em Campinas, sem perder um jogo da Ponte Preta, “o time do povão de Campinas”, como bradava o grande Pereira Neto nos microfones da antiga Rádio Educadora. Moro em Recife e torço para o Santa Cruz. Não sou geração playstation, não tenho time na Europa. Aprecio muito o futebol que se joga por lá, onde estão os melhores, mas sou muito crítico com um certo tipo de visão que tende a achar que tudo o que existe por lá é perfeito.
Isso posto, vamos dizer o óbvio: o futebol sul americano está nas mãos de pessoas que fazem de tudo para o destruir. Há peculiaridades de um país para outro, mas no fundo é a mesma coisa. O mais triste é ver que a maioria prefere perder tempo discutindo outras coisas. Debates imbecis sobre futebol brasileiro x futebol argentino, Europa x América do Sul e coisas assim. Essas coisas são imbecis principalmente por deixarem em segundo plano o essencial. Enquanto isso se folcloriza e naturaliza o que temos de pior, e brigamos entre nós mesmos para ver quem é o menos pior.
O Brasil tem clubes muito ricos para o padrão regional. Mas não tira proveito disso. Paga fortunas para jogadores comuns e salários absolutamente acima da realidade mundial para técnicos ultrapassados. A Argentina passou anos com torneios curtos, que favoreciam uma visão imediatista, na qual jovens talentos nunca tinham chance, pois o que importava era o próximo resultado (por isso Conca, Montillo e tantos outros não tiveram vez em seu país natal), enquanto suas barras mafiosas ganhavam mais e mais poder. O futebol uruguaio era destruído por vampiros como Paco Casal, o crime organizado entrava no futebol colombiano e por aí afora.
Tudo isso por um conjunto de motivos, um dos quais está presente em todos os casos: a cartolagem. Ontem barras do Boca tiveram toda a liberdade de fazer o que fizeram. Mas por que? Como disse o Rodrigo, como entraram com bomba de gás de pimenta e tiveram liberdade de jogar a mesma no túnel do River? Por terem um poder imenso. Controlam os vendedores no entorno do estádio, estacionamento, venda de camisas oficiais do clube, etc. Não apenas no Boca. Até no mais humilde clube do ascenso. Nosso colega Joza Novalis poderia falar horas sobre isso.
O pior é que são problemas estruturais comuns a todo o continente. Mas o que se discute? Se Brasil ou Argentina é melhor e mais organizado, se o clube do país vizinho se vendeu para favorecer algum rival, se diz que essas bizarrices são o que diferencia nosso futebol e dá charme a ele, que esse é o “espírito” da Libertadores. Enfim, todo um conjunto de discussões que no fundo nada mais faz que legitimar o que está aí sem mexer nos grandes problemas estruturais do futebol sul americano.
Eu não quero ter orgasmos vendo um Southampton x Swansea. Não quero ver o futebol sul americano imitando o europeu. Acho que temos nossas particularidades e tradições, e que elas nos farão sempre grandes. Eu amo a Libertadores, o brasileirão, o argentino, o uruguaio, etc. Mas não acho que isso implique em defender as pessoas que jogam nosso futebol no chão e estar satisfeito com o que está aí. Estaduais, brasileirão com estádios vazios, argentino com 30 clubes, uruguaio às moscas, etc. Apoiar essas coisas não é ser contra o “futebol moderno”. É ser contra o bom futebol que poderíamos perfeitamente jogar aqui.
Enfim, temos algumas opções frente ao que houve ontem. Uma é dizer “argentinos são idiotas, que país de merda”. Outra é se sair com o “isso sim é Libertadores, abaixo o futebol moderno”. A terceira é reconhecer que temos problemas gravíssimos e profundos com os quais precisamos lidar. Eu fico com a última.