“Linda noite para a prática do futebol! O Huracán recebe no Tomás A. Ducó o Racing Club de Avellaneda nesta noite esplêndida para a prática do esporte! O Racing, que não vem com um bom pé no campeonato, quer desquitar-se nada menos que contra o Globo de Parque de los Patricios, um dos candidatos a ganhar o título! Arranca Jorge, leva a bola, deixa no caminho Brindisi (grande manobra!), vai levando a bola pela esquerda… Ataca a equipe do Racing, ilude perfeitamente Houseman, joga a bola para o Gringo Scotta… perigo de gol! Dá para o Panadero Díaz, perigo de gol, perigo de gol, atirou, pegou no travessão!! Incrível como se salva o Huracán, espetacular!! O público do Racing gritava ‘gol’…”.
O Segredo dos seus Olhos já seria ótimo sem essa cena, mas mesmo quem torce o nariz para o futebol há de convir que ela, mesmo breve, entrou para a história. A película, a segunda do cinema argentino a receber o Oscar de melhor filme estrangeiro (o primeiro foi o também excelente A História Oficial, de 1985, a retratar as Avós e Mães da Praça de Maio – leia mais aqui), foi lançado há exatos cinco anos. Meia década depois, nossa intenção não é sermos mal humorados, mas vale ressaltar os pequenos erros encontrados nessa cena espetacular. Longe de ser na produção, e sim no texto.
A quem não assistiu, antecipamos que pode haver spoilers!
Os erros estão na inclusão de dois jogadores que não poderiam estar naquele Racing x Huracán de 1975, ano em que presumivelmente se passa a cena – em diálogo anterior a ela, menciona-se que o Racing vive jejum de nove anos, ou seja, desde 1966, quando fora campeão argentino pela última vez. O time na realidade venceu a Libertadores e a Intercontinental em 1967, mas na Argentina é comum que, ao falar-se de jejum, torneios internacionais, mesmo tão importantes, sejam desconsiderados (por exemplo, fala-se simplificadamente que o clube viveu seca de 35 anos, até vencer de novo o Argentinão, em 2001, mas o time venceu também a Supercopa 1988, sobre o Cruzeiro, nesse período).
Além do mais, outro dado reforçaria a compreensão de que o jogo seria em 1975 e não 1976, quando o tal jejum de 9 anos mencionado seria mais literal. Nesses dois anos, o decadente Huracán lutou pelo título – ficou no vice em ambos, para River e Boca – e o Racing foi mesmo mal, muito mal: 16º de 20 clubes em 1975 e penúltimo em 1976 (só não sendo rebaixado por 1 ponto a mais que o San Telmo). Mas em 1976 ambos ficaram em grupos diferentes e não se cruzaram.
Racing e Huracán tampouco duelariam em 1976 no Torneio Nacional, que existiu entre 1967 e 1985 para reunir os melhores clubes do campeonato argentino (renomeado “metropolitano” nesse período) com os melhores das ligas do interior. Novamente eles ficaram em grupos diferentes e só o Globo seguiu na competição. Além disso, o golpe militar argentino que depôs a presidente Isabelita Perón, para a qual o personagem Isidoro Gómez vinha trabalhando como guarda-costas após ser solto da prisão realizada durante a partida do filme, foi no início de 1976, em 24 de março.
Independentemente de datas, a narração já estaria equivocada com um dos jogadores: Héctor Gringo Scotta jamais jogou no Racing (nem no Grêmio, ao contrário do que algumas fontes na internet sustentam). Formado no Unión de Santa Fe, brilhou especialmente no San Lorenzo, participando do ciclo mais vitorioso dos azulgranas até então, quando o time venceu três campeonatos entre 1972-74 e foi semifinalista da Libertadores 1973. Em 1975, Scotta seguia brilhando no clube do Papa, ao marcar 60 gols na temporada, até hoje um recorde anual de gols no futebol argentino.
El Gringo chegou à seleção e manteve poder de fogo (7 jogos, 5 gols), mas em 1976 foi ao Sevilla. Brilhou na Andaluzia (veja) mas na época ir à Europa mais atrapalhava que ajudava na visibilidade e acabou não chamado à Copa 1978, onde só Mario Kempes veio do futebol estrangeiro. Ao fim da carreira, nas divisões inferiores, continuou marcando seus gols – foi artilheiro da segundona de 1986 pelo Nueva Chicago. Mas nunca jogou no Racing, e sim seu irmão, Néstor Scotta, apelidado de Tola e não de Gringo. Foi um oásis naqueles anos ruins da Academia, que em 1975 ainda viu o rival Independiente vencer a Libertadores pela quarta vez seguida (e a sexta no total).
Tola Scotta defendeu o Racing entre 1973 e 1976, saindo de lá com média de meio gol por jogo. Também foi ele quem de fato defendeu o Grêmio, por onde fez história no futebol brasileiro: também formado no Unión, foi contratado pelo River, onde não foi tão regular (mas mesmo assim esteve no jogo festivo de fim de século dos millonarios) e por isso acabou emprestado ao Tricolor em 1971. Ele acabou marcando aquele que é considerado o primeiro gol do campeonato brasileiro, ao menos para aqueles que se opõem à unificação estabelecida pela CBF em 2010 com os torneios pré-1971.
Ele abriu o placar aos dez minutos de um 3-0 no São Paulo em pleno Morumbi. Faria sucesso também no Deportivo Cali, pelo qual foi duas vezes artilheiro da Libertadores (nenhum outro argentino conseguiu isso), em 1977 e 1978, ano em que levou o time à final contra o Boca. O Deportivo perdeu, mas foi a primeira equipe da Colômbia a chegar à decisão. Infelizmente, o Scotta racinguista (e gremista) faleceu cedo, em um acidente de carro em 2001.
Já Rubén El Panadero (“O Padeiro”) Díaz de fato jogou no Racing, desde 1965, e despediu-se em 1978. Era o ofensivo lateral-esquerdo da Equipo de José, o elenco blanquiceleste campeão argentino em 1966 no embalo de uma invencibilidade de 39 jogos (só superada pelos 40 que o super Boca de Carlos Bianchi alcançou em 1999) e da Libertadores 1967, a única do clube, e a Intercontinental também de 1967, a primeira de um time argentino. Chegou a jogar dez vezes pela seleção, entre 1970-72, estreando com um 2-0 no Beira-Rio sobre o futuramente tricampeão mundial Brasil.
Só que o Panadero não jogou no Racing entre 1973 e 1976, pois nesse período estava no bom elenco do Atlético de Madrid. Quem poderia jogar era Roberto El Ropero Díaz, contratado pela Academia justamente em 1975. Era um tanque de guerra que sabia usar seu tamanho e de fato jogava pelo flanco esquerdo do ataque, de onde saiu o chute que na cena do filme acertou o travessão do Huracán.
Roberto Díaz ficou até 1980, voltando rapidamente em 1982, deixando 51 gols pelo clube. Até poucos, mas que ainda fazem dele o maior artilheiro racinguista em mais de trinta anos (Diego Milito, que acaba de voltar ao Racing e já reestreou marcando seu 38º gol por ele, pode alcançar o Ropero se manter o pé calibrado). Jogou a Copa América 1979, marcando um gol no Brasil.
Sobre outros nomes mencionados na cena: René Houseman e Miguel Ángel Brindisi eram emblemas daquele ótimo Huracán (leia mais aqui) e foram um dos poucos que se salvaram na melancólica Copa do Mundo de 1974 pela seleção – Houseman, comparado a Garrincha pelos dribles pela ponta-direita e os problemas com alcoolismo, foi o artilheiro argentino com 3 gols; Brindisi marcou um de falta no Brasil. Aliás, Brindisi, que já veterano brilharia também como dupla de Maradona no Boca, chegou a deter o recorde de jogos pela Argentina (46), e foi inicialmente superado justamente por Houseman (55), que jogaria também a Copa 1978. Parque de los Patricios é o bairro huracanense e Tomás A. Ducó, o seu belo estádio, sobre o qual dedicamos este outro Especial.
Já o racinguista Alberto Jorge, que conduz o início da jogada da cena, esteve entre os pré-convocados à Copa 1978 mesmo já jogando no México, mas não superou a dura concorrência com outros camisas 10, nem o jovem Maradona. Virou ídolo especialmente por dar um desafogo à torcida em um Clásico de Avellaneda no segundo semestre daquele 1975: contra o Independiente recém tetra seguido na Libertadores, o Racing venceu por 5-4 com quatro gols de Jorge. Ninguém marcou tanto em um só clássico entre os dois. Sobre outros blanquicelestes mencionados no filme (não na cena), já dedicamos um especial a Osvaldo Negri (clique aqui) e em outro abordamos Pedro Manfredini (aqui).
Atualização em 24-01-2020: nessa data, publicamos Especial póstumo sobre outro racinguista mencionado no filme, embora não na famosa cena: Juan José Pizzuti, maior personagem da história do time.
O narrador da cena, por sua vez, “interpretou” José María Muñoz, célebre locutor da época e cuja voz pode ser ouvida naquele recente comercial da Coca-Cola sobre “o abraço da alma” (veja). Apesar da cena mostrar um momento de pressão do Racing, na vida real o Huracán venceu o jogo que eles fizeram naquele ano no Tomás A. Ducó: 3-2 em 18 de maio, gols justamente de Brindisi, Houseman e um contra de Rodolfo Domínguez para o Huracán e com Scotta e Hugo Gottardi fazendo os racinguistas.
Por fim, vale ressaltar que o filme, em que o vilão principal é um torcedor fanático pelo Racing, foi baseado em um conto do escritor Eduardo Sacheri. Que é torcedor do rival Independiente…
Atualizações: após esta matéria, dedicamos especiais a alguns dos jogadores mencionados nela. Clique abaixo para conferir:
Miguel Ángel Brindisi, mito do Huracán e irmão mais velho de Maradona no Boca
Héctor Scotta, o maior artilheiro de uma só temporada argentina: 60 gols em 1975
15 anos sem o gremista Néstor Scotta, autor do 1º gol do Brasileirão 71
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