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O mundo que criou o Superclássico

Quadro “Origem de la bandera de Boca”, de Benito Quinquela Martín, célebre por retratar o bairro de La Boca, repleto de imigrantes, e suas atividades portuárias

Para o brasileiro de 2013, a Argentina pode até ser o lugar onde se vai passar um final de semana comendo parrilla e tomando vinho malbec a preços módicos. Mas, para os nossos tataravós, não era bem assim. A cidade de Buenos Aires que viu o superclássico nascer e crescer era bem diferente.

Há cem anos (o Superclásico surgiu no campeonato argentino em 1913: clique aqui), Buenos Aires tinha algo como 3 milhões de habitantes, aproximadamente metade deles consistindo de imigrantes. Para se ter uma ideia, segundo os dados de 1920, essa cifra era mais do que as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo juntas. A grande verdade é: no início do século XX, quem pensasse em América Latina pensaria automaticamente em Buenos Aires.

O segredo de tamanha riqueza andava em quatro patas. Já naquele tempo a Argentina se destacava mundialmente, através da produção de carne bovina e, secundariamente, ovina, segundo o historiador Horacio Mosquera. A riqueza criada pelo gado e seus produtos derivados (leite, lã, laticínios) era produzida na província de Buenos Aires, e a capital do país se aproveitou disso para se transformar na grande metrópole latino-americana daquele tempo.

A imigração estrangeira deu à cidade um tom que o visitante ainda pode notar hoje. Mas também medo. As primeiras décadas do século XX tiveram como característica central a chamada “argentinização”, basicamente uma busca de integrar os imigrantes ao país, para que a identidade nacional se mantivesse a salvo. A excelência da educação argentina é em boa medida filha desse esforço para garantir que a enorme massa de recém-chegados se transformasse o quanto antes em “argentinos”.

Quinquela Martín também resgatou os tempos do River no bairro de La Boca nessa pintura para a confeitaria do Monumental de Núñez – os barcos têm os nomes La Rosales (ao fundo direito) e Santa Rosa (no canto direito), nomes dos clubes que se fundiram para forma-lo

Uma das consequências do tamanho e da riqueza portenha foi o enorme desenvolvimento do mundo das diversões. A historiadora Carolina González Velasco afirma que “a oferta de diversão em Buenos Aires era imensa. Quem andasse pela Avenida Corrientes veria pela frente teatros, cinemas, circos e todo o tipo de atração disponível”. Em um futuro breve, emissoras de rádio,  como Belgrano e El Mundo, se espraiariam pelo país muito antes que a Nacional fizesse o mesmo pelo Brasil. Os portenhos tinham muitas opções.

Naturalmente, as riquezas não eram desfrutadas por igual por toda a população. Segundo Mosquera, “Buenos Aires era muito rica, mas isso não quer dizer que todos estivessem bem. A pobreza era muito comum”. A maioria dos que estavam do lado “errado” eram imigrantes que povoavam os bairros pobres da cidade. E nesses bairros começaram a nascer as primeiras agremiações futebolísticas não-britânicas, que se espalharam pela cidade naquele início de século.

Muitos desses clubes tiveram vida curta, mas outros entraram para a história do futebol argentino. Como os rivais do superclássico, que nasceram no mesmo bairro: o (até hoje humilde) de La Boca, reduto de imigrantes, principalmente italianos.

O crescimento do futebol naqueles anos não surpreende. Mais desenvolvidos naquele momento que o Brasil, argentinos e uruguaios tiveram mais contatos com ingleses, que dominavam economicamente a América Latina, se envolvendo em diversos tipos de negócio, como a construção de estradas de ferro. Justamente por isso, começaram a jogar o esporte bretão primeiro, se desenvolveram mais cedo e foram melhores que nós por muito tempo.

Ponte Transbordador, que liga La Boca à cidade de Avellaneda (onde está o Racing), em construção há cem anos, em 1913. Hoje ela é uma das oito do tipo ainda existentes e, destas, a única fora da Europa

Apenas para que se tenha uma ideia, em 1902, quando se disputava o primeiro campeonato paulista, o Alumni vencia a 11ª edição do campeonato argentino, e a seleção jogou pela primeira vez (a brasileira estrearia em 1914, justo para encontro contra a Argentina). Esse foi o contexto em que irrompeu o futebol argentino.

Como em toda a América Latina, o esporte bretão chegou via influência inglesa, mas logo ganhou vida própria. No caso hermano, a partir dos anos 10, simbolizado pelo Racing, apropriadamente trajado com as cores da bandeira: foi o primeiro clube de fora da comunidade britânica a ser campeão da elite (também há cem anos, em 1913) e emendou a taça com a das seis edições seguintes – este hepta argentino seguido ainda é um recorde, por sinal. Também é de 1913 a linha A do metrô de Buenos Aires, o primeiro de todo o hemisfério sul da Terra.

E esse foi o cenário que viu o nascimento de um dos maiores clássicos do universo. Boca e River, oriundos do bairro de La Boca, repleto de imigrantes e onde o espanhol era segunda língua, foram resultados não apenas do enorme esforço de seus pioneiros, mas também de um tempo em que a Argentina estava entre os países mais ricos do planeta.

O Superclásico pode ser visto como filho do enorme talento dos argentinos com a bola. Mas também é uma grande lembrança de um período em que sua capital tinha todos os motivos de se orgulhar por ser uma das maiores do mundo.

Futebol, uma das opções de lazer, celebrado por garotos que bem lembram o filme “Era Uma Vez na América”
Tiago de Melo Gomes

Tiago de Melo Gomes é bacharel, mestre e doutor em história pela Unicamp. Professor de História Contemporânea na UFRPE. Autor de diversos trabalhos na área de história da cultura, escreve no blog 171nalata e colunista do site Futebol Coletivo.

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