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O dia em que Maradona deixou o futebol

“Por sorte ou por desgraça, a oportunidade de exercitar este hábito se apresenta corriqueiramente. É que falar dele, entre argentinos, é quase um de nossos esportes nacionais. Para elevá-lo até a estratosfera , ou para condená-lo ao fogo perpétuo dos infernos, os argentinos gostamos, ao que parece, de convocar seu nome e sua memória”.

Estas primeiras linhas, tão primorosamente escritas por Eduardo Sacheri em seu conto “Me van a tener que disculpar”, fazem referência ao maior mito do futebol argentino de todos os tempos. Foi exatamente em um 25 de outubro de 1997 que Diego Armando Maradona realizou sua última apresentação como jogador de futebol profissional. E fiel ao consagrado estilo “maradoniano” de ser, foi logo em um superclásico chuvoso no Monumental de Núñez, com vitória Xeneize e polêmicas.

Este especial vem para convocar a sua memória. Há exatamente 15 anos atrás, um dilúvio caía sobre a capital da República Argentina. Nem mesmo toda água do mundo seria suficiente para impedir que 60 mil torcedores lotassem o estádio do River Plate. A partida marcada para 18h10 era válida pela décima rodada do Apertura de 1997 e reunia todos os elementos necessários para fazer deste superclássico um verdadeiro “megaclássico”.

Boca e River vinham disputando cabeça a cabeça a ponta da tabela. Mas havia algo que incomodava extremamente a grande maioria Millonaria presente na cancha naquele fim de tarde; um incômodo tabu de sete anos sem vencer o seu maior rival no Monumental. Desde 1991, o River não conseguia bater dentro da própria casa os Bosteros. A última vez havia sido um 2 a 0 com gols de Pipa Higuaín (pai do atual atacante do Real Madrid) e Rubén Polillita da Silva, curiosamente dois jogadores que passaram por ambos os rivais. A seca no clássico só não durou tanto porque o River venceu duas vezes na Bombonera, em 1994, mas o jejum em casa duraria incríveis 9 anos, até 1999.

Aquele jogo que completa hoje 15 anos, aliás, esteve repleto de outros a terem vestido as duas camisas: o boquense Nelson Vivas passaria para os lados de Núñez em 2003, enquanto seu colega César Toresani já havia feito o caminho inverso, assim como Claudio Caniggia e o técnico Héctor Veira – o treinador do momento mais mágico do River, o ano de 1986, onde se conquistou as primeiras Libertadores e Intercontinental do clube, além do nacional (Caniggia estava lá também, mas na reserva). Já os riverplatenses Sergio Berti e Sebastián Rambert eram ambos ex-jogadores da Ribeira.

Quem foi ao jogo naquele dia não imaginava que presenciaria a despedida de Maradona. De fato, o anúncio de que abandonaria o futebol viria somente cinco dias mais tarde, em 30 de outubro de 1997, data do 37º aniversário dele. Na casa de seus pais em Villa Devoto, Diego revelou por rádio que estava se aposentando.

“Vou deixar de jogar. Não aguento mais. Esta aposentadoria é definitiva. Me pediu o meu pai chorando. Não pode ser que minha família sofra tanto com cada controle (antidoping) e que a onda de rumores nos envolva”, sentenciou o eterno referente de camisa 10. A mídia havia noticiado erroneamente que seu pai, também chamado Diego, havia falecido.

Maradona disputa bola com Astrada no superclássico de 1997

Aos 37 anos de idade, Maradona não atravessava um bom momento. Estava na mira da AFA depois de um resultado positivo em um exame antidoping num jogo contra o Argentinos Juniors (vitória do Boca por 4 a 2 e com um gol de Diego, na primeira rodada). Após três semanas suspenso, pôde voltar, mas obrigado a realizar constantes controles feitos pela máxima entidade do futebol argentino e até mesmo que por meio de ordens judiciais. Sentindo-se minado nas forças, alegava estar sendo perseguido.

Também sofria com lesões. Desde seu retorno ao futebol, em julho (ele havia tirado um ano sabático desde agosto de 1996, para tratamento contra as drogas), uma série de contraturas musculares o incomodava e o capitão do Boca havia conseguido uma sequência máxima de quatro jogos. Depois de mais de um mês após sua partida anterior, contra o Colo Colo pela Supercopa, em 24 de setembro, conseguiu recuperar-se e voltar justo a tempo do confronto contra o River. Mas, dentro de campo, era visível que ainda não estava completamente curado. O campo pesado castigou Maradona, que não conseguiu desfilar a tradicional habilidade e técnica.

O River foi o primeiro a pisar no gramado do Monumental. Logo em seguida, veio o Boca. A fila de jogadores era puxada por Maradona aos gritos de : “Huevo! Huevo! Vamos, carajo!” Os Xeneizes vestiam um controverso uniforme criticado até mesmo por Diego, que ameaçou não jogar caso fosse utilizado. O motivo de toda polêmica eram duas estreitas faixas brancas que separavam o azul do ouro na tradicionalíssima camisa boquense. O uniforme foi usado e Maradona vestiu sua eterna camisa 10 com a faixa de capitão no braço esquerdo.

Antes da bola rolar, Diego fez questão de correr até o banco do River e cumprimentar Ramón Díaz, técnico do Millo. Ramón era um antigo desafeto desde o tempo em que ainda atuava dentro das quatro linhas. Os motivos para tal inimizade, que teria feito Díaz perder convocações para as Copas de 1986 e 1990, nunca vieram à tona; mas, conforme havia prometido no meio daquela semana, Maradona fez questão de apertar a mão do rival, que mal olhou em seus olhos.

Durante a homenagem ao repórter fotográfico José Luis Cabezas, assassinado nove meses antes, as duas torcidas se uniram num pacto de silêncio respeitoso. José Luis investigava escândalos de corrupção envolvendo importantes empresários argentinos. Seu corpo foi encontrado numa cidade da costa atlântica argentina, com as mãos algemadas nas costas e dois tiros na cabeça.

De volta ao futebol, foi o River quem começou melhor. Resultado dessa superioridade inicial, Sergio Berti, ex-Boca, abriu o placar aos 40 minutos do primeiro tempo, 1 a 0. Maradona andava sumido dentro de campo. Sua presença só foi notada quando finalmente conseguiu arrematar a gol num chute prensado que saiu fraco, de perna direita e que que foi facilmente defendido por Burgos.

Cumprimentando o desafeto Ramón Díaz

Quando o árbitro Horacio Elizondo apitou o final da primeira parte, Diego caminhou para o vestiário. Era a última vez que deixava um campo de futebol em uma partida oficial. Tirou a camisa, sentou-se num banco e disse para o treinador do Boca naquele ano, Bambino Veira, “basta”. Pediu a substituição e foi atendido. No seu lugar, entrou o amigo Caniggia, embora versões românticas ainda propaguem que o substituto foi outro.

Isto porque Veira realizou uma outra mudança no intervalo, dando chance para que a torcida Xeneize encontrasse um novo símbolo, herdeiro de Maradona no meio de campo e na camisa 10: Vivas saiu para a entrada de um jovem Juan Román Riquelme, ainda vestindo uma estranha camisa 20 que não lhe caía bem.

Logo no começo da etapa complementar, os visitantes empataram, com um ex-River. Toresani manda para o fundo do gol depois de grande jogada de Diego Latorre. Aos 22 minutos, Martín Palermo marcou de cabeça o 2 a 1, virando o cotejo e selando a vitória no superclássico. Era o primeiro gol de Palermo, recém-chegado do Estudiantes a pedido de Diego, contra o River. O lance gerou reclamações dos Millonarios, uma vez que o boquense Bermúdez bloqueara a saída do goleiro Burgos.

Os anfitriões ainda tiveram boas chances nos últimos minutos, com Cardetti e Salas, mas não alteraram o placar. No apito final, Maradona volta ao campo de jogo para comemorar o triunfo com os seus companheiros. Com o busto nu, festeja diante da torcida rival e gesticula obscenidades. Interpelado por algum repórter ainda chega a afirmar; “Assim me dá vontade de jogar até depois dos 40”. Mas com certeza a frase dita por Maradona que mais repercutiu desde aquele dia em diante foi: “Caiu a calcinha do River”.

Em gestos obscenos à torcida rival após a vitória; e o gol de Palermo, contratado a pedido de Maradona

E dessa forma Diego Armando Maradona deixou de ser um jogador profissional de futebol para ser uma espécie de anti-herói, amado ou odiado na mesma proporção, mas sempre recordado em nome e em memória. Abalado, o Boca, que com aquela vitória roubara a liderança do rival, perdeu o jogo seguinte, para o Lanús, e foi reultrapassado pelo River. Foi um dos últimos campeonatos lutados até o fim pela dupla. O Boca não perdeu outra vez e o River teve duas derrotas na campanha, mas foi o campeão – os auriazuis empataram demais. Mas tiveram a melhor pontuação de um vice na era dos torneios curtos, só inferior a de sete dos mais de quarenta campeões desde a introdução desse formato, em 1991.

O Boca perderia a taça por 1 ponto. É de se imaginar como seria se não tivesse usado Maradona, mesmo decadente, em só metade da campanha. Observação necessária: naquele dia, uma vez mais Maradona, que despediu-se do Boca tendo apenas o título de 1981 e sem jamais ter disputado a Libertadores na carreira, foi escalado para o antidoping. Deu negativo.

Atualização em 21-12-2012: fizemos um especial para aquele campeonato histórico, o último também de Francescoli: clique aqui.

Atualizações em 2017: nos vinte anos daquela campanha do Boca, relembramos diversos capítulos dos momentos finais da carreira de Maradona. Clique abaixo:

Como ninguém sabia que Maradona ia parar de jogar, as manchetes foram para Palermo

20 anos do último retorno de Maradona ao futebol: o incrível Boca do 2º semestre de 1997

Ícone do emergente Vélez, Chilavert quase foi de River e Boca. Vontade não faltou

Quem já foi colega de Messi e Maradona?

20 anos da última transferência direta entre Boca e River: Sebastián Rambert

Boca, 20 anos atrás: último gol da carreira de Maradona e primeiro (na estreia) de Schelotto!

20 anos do único jogo de Maradona em torneios sul-americanos de clubes

Escalações:

Boca Juniors: Óscar Córdoba, Nelson Vivas (Juan Román Riquelme), Jorge Bermúdez e Néstor Fabbri; Rodolfo Arruabarrena, César Toresani, Diego Cagna, Nolberto Solano e Diego Maradona (Claudio Caniggia); Diego Latorre (Christian Traverso) e Martín Palermo. T: Héctor Veira.

River Plate: Germán Burgos, Hernán Díaz, Celso Ayala, Eduardo Berizzo e Diego Placente (Juan Pablo Sorín); Roberto Monserrat (Martín Cardetti), Leonardo Astrada, Sergio Berti e Marcelo Gallardo; Sebastián Rambert (Marcelo Escudero) e Marcelo Salas. T: Ramón Díaz.

Leonardo Ferro

Jornalista e fotógrafo paulistano vivendo em Buenos Aires desde 2010. Correspondente para o Futebol Portenho e editor do El Aliento na Argentina.

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