Não se enganem. O Club Gimnasia y Esgrima La Plata não tem maiores troféus para se orgulhar, mas tradição é o que não falta ao Lobo, que neste sábado completa um século de estreia na elite argentina. Não à toa, La Plata segue equilibradamente dividida no que se refere a torcida apesar da diferença de glórias e mídia em favor do arquirrival, cujas origens remetem ao próprio Gimnasia LP. Outro demonstrativo é que não foi nada fácil chegar a uma escalação ideal para honrar a camisa tripera.
Em matérias do tipo, normalmente contamos os primórdios do clube e deixamos os jogadores eleitos contarem um pouco do resto da história. No caso gimnasista, seus inícios já foram dissecados por Joza Novalis em duas partes, quando a instituição fez 125 anos (veja nos primeiros links anexos). A escalação, por sua vez, abarca naturalmente os melhores momentos do futebol alviazul: os anos 30 (no qual o time chegou a abrir sete vitórias de vantagem no clássico de La Plata), os anos 60, a virada do século e, claro, o único título argentino obtido pela equipe do Bosque (em 1929). Com raríssimas exceções, todos jogaram pela seleção nacional enquanto pertenciam ao clube.
Antes, vale mencionar rápido essas equipes históricas não-campeãs. A de 1933, apelidada de El Expreso, liderou na maior parte do campeonato mesmo com os titulares fazendo greve em certo momento (e ainda assim o time B ganhou o clássico), mas foi prejudicada na reta final em dois duelos seguidos contra os gigantes Boca (vencia por 2-0 e levou a virada com um pênalti inexistente e um gol impedido) e San Lorenzo (perdia por 2-1 em jogo equilibrado, quando não teve um pênalti marcado a seu favor e em seguida teve um gol contra apitado apesar da bola não ter passado da linha. Em protesto, os alviazuis sentaram e terminaram tomando de 7-1), que acabariam respectivamente vice e campeão. O de 1962, que rendeu o apelido Lobo, ganhou nove seguidas e liderava a cinco rodadas do fim, quando desgringolou ao perder em casa para um Vélez irregular.
O de 1970 buscava responder o repentino sucesso do Estudiantes, goleado por 4-1, e chegou às semifinais nacionais. O apelido era La Barredora (“o varredor”) e o elenco foi dessa vez atrapalhado por uma greve que paralisou o campeonato e esfriou o embalo alviazul. Entre 1995 e 2005, então, o clube teve sua fase áurea sendo na verdade prateada. Foram seis vices em dez anos, no Clausura 1995 (bastava vencer em casa um time misto do Independiente, mas perdeu), Clausura 1996 (apesar de um 6-0 no Boca na Bombonera e de um 6-1 no Racing, o Vélez somou um ponto a mais), Apertura 1998 (sem o Boca de Carlos Bianchi dar chances, porém, 9 pontos à frente), Clausura 2002 (a seis do River) e Apertura 2005 (ganhou oito seguidas, chegou a ter três pontos de vantagem, mas perdeu em casa na última rodada para o Banfield e o Boca terminou campeão pela diferença exata de três pontos).
Há exatos cem anos, o Gimnasia estreava na elite argentina com um 4-0 fora de casa no San Lorenzo. Embora existente desde 1887, inspirado no Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires, a equipe de La Plata só foi criar em 1905 seu departamento de futebol, logo extinto e retomado apenas em 1915 – logo ganhando a segundona. Eis quem melhor representaria a trajetória que se seguiu a isso; a tradição é tanta que a escalação rendeu heresias como as ausências do recordista de jogos pelo clube, do goleador que viria a se tornar o maior artilheiro da liga francesa, do maior emblema moderno e de gente importante na excursão europeia que fez do Gimnasia o primeiro clube sul-americano a vencer tanto o Real Madrid como o Barcelona.
GOLEIRO: Enzo Noce é o recordista na posição e quarto com mais partidas pelo GELP, defendido de 1990 a 2004. Por outro lado, jamais esteve na seleção, e em tempos nos quais o futebol local ainda preponderava nas convocações para goleiro. Felipe Scarpone foi o goleiro do título de 1929 e da celebrada turnê europeia de 1930-31, mas sua única aparição na Albiceleste dera-se ainda em 1924. Já seu sucesso, Atilio Herrera, da grande campanha de 1933, chegou até a ser capitão da Argentina (jogou no Madureira). Enrique Vidallé jogou pela seleção após ser rebaixado em 1979, mas no ano seguinte foi jogar no Estudiantes. Carlos Navarro Montoya foi digno no vice de 2005 e houve quem o pedisse para a Copa de 2006, quando teria 40 anos. Escolhemos, porém, Hugo Gatti. El Loco é quem mais jogou no campeonato argentino.
Diferentemente dos demais citados, era o grande chamariz das partidas do clube. Se não esteve na seleção, foi por seu estilo espalhafatoso de jogar e trajar-se em tempos de disciplina e austeridade militares. Fama que ultrapassou fronteiras na época: “mistura de jogador, palhaço e beatle. (…) Sua preocupação é dar show, e por isso ele é a grande coqueluche da torcida argentina. A publicidade dos jogos do Gimnasia se resume a uma frase: Gatti joga! (…) Mas ele não tem a mínima chance de chegar à Seleção Argentina, porque é exatamente a negação daquilo que a AFA que impor ao futebol”, escreveu a Placar em 1970. Gatti era o goleiro de La Barredora. Veterano, faria história nas primeiras Libertadores vencidas pelo Boca, em 1977-78, quase indo à Copa de 1978.
DEFENSORES: na lateral-direita, o uruguaio Guillermo Sanguinetti chegou a ser o recordista de partidas pelo Gimnasia. Ficou de 1991 a 2003, obtendo quatro vice-campeonatos, a Copa Centenário de 1994 (para muitos, o único título do Lobo) e participando da primeira Libertadores disputada pelo clube. Como gimnasista, venceu a Copa América de 1995 e sua foto com o manto tripero está exposta no museu do Estádio Centenário na seção dedicada aos uruguaios mais longevos no futebol argentino. Veterano, marcou duas vezes em um 4-2 em clássico de 2003, maior goleada tripera na casa do rival, que abandonou o jogo. Quem superou Sanguinetti em partidas foi seu contemporâneo Jorge San Esteban, que além do obtido pelo colega participou também do vice de 2005 e na outra Libertadores que contou com o Gimnasia, a de 2007.
Mas San Esteban não era exatamente um zagueiro técnico e isso se traduz em sua passagem pela seleção, que durou literalmente um único minuto em 1999. A zaga fica então nos anos 30. O flanco direito, em vez de San Esteban, terá Oscar Montañés, por sua vez quem tinha o recorde de jogos antes de San Esteban e Sanguinetti. Montañés ficou de 1932 a 1945 e sabia jogar também no meio. Esteve 15 vezes em campo pela Argentina e em nove foi capitão, incluindo o dia em que ela venceu o Brasil por 5-1 no Rio de Janeiro, pior derrota caseira tupiniquim até os 7-1. No outro flanco, Evaristo Delovo. Apareceu em 1929 e foi pé-quente, ganhando naquela temporada o único campeonato argentino vencido pelo Gimnasia.
Forte e expeditivo, Delovo esteve nas vitórias sobre Real Madrid e Barcelona e também na campanha quase campeã de 1933. Ficou até 1941, com passagem já veterano pela seleção, em 1940. Antonio Rosl é o outro lateral. Ele conseguiu o feito de ir à Copa de 1966 como gimnasista. Por quê um feito? Porque desde que estreara em 1963 o clube lutava contra o rebaixamento. Marcador correto, passou em 1968 ao San Lorenzo para ser participar do primeiro título profissional invicto do futebol argentino, usando por baixo do manto azulgrana a camisa tripera – a final foi contra o Estudiantes. Voltou a La Plata em 1974. Por um mísero ponto o clube não participou do octagonal final. Parou em 1976, ano em que ajudou o Lobo a participar da miniliga pelo título.
MEIAS: José María Minella, ainda em vida, batizou estádio-sede da Copa de 1978, de sua Mar del Plata natal. Fizera nome como jogador e técnico de La Máquina do River dos anos 40, mas antes brilhara em La Plata. Integrante do ciclo histórico de 1929-33, foi capitão icônico da seleção nos anos 30. Era um volante de boa técnica, polida de seus inícios como meia-esquerda. Nos flancos ofensivos, Andrés Guglielminpietro fica no direito e Diego Bayo no esquerdo. Guly foi um meia-artilheiro que passou pelo Lobo entre 1994 a 1998, alcançando três vices e deixando 21 gols em 103 jogos. Dali foi ser campeão italiano pelo Milan na temporada do centenário rubronegro; jogaria também na Inter.
Guglielminpietro foi um dos incompreendidos por Marcelo Bielsa na seleção: El Loco insistia em coloca-lo como volante-esquerdo. Bayo também foi um incompreendido. Até jogou pela seleção, mas não em partidas oficiais, atrapalhado por tempos onde ir à Europa mais atrapalhava do que ajudava (esteve no Celta de Vigo de 1958-61). Pouco para o terceiro maior artilheiro do Gimnasia: foram 71 gols (um deles no 5-2 em clássico de 1963, maior goleada alviazul no rival) em 138 jogos em duas passagens que alcançaram os anos de 1955 a 1966. O ponto alto, claro, foi a campanha de 1962. Ganham a posição de Pedro Troglio e Gustavo Barros Schelotto, ídolos dos anos 90 e 2000 que nem cogitados foram na Albiceleste. Fabián Rinaudo, nome mais recente, até jogou pela Argentina como tripero em 2009, mas em jogo onde só usou-se atletas caseiros. Vale registro ainda a Alberto Márcico, que veterano quase foi artilheiro em 1996.
ATACANTES: Martín Maleanni foi o herói da final de 1929. Ismael Morgada foi o artilheiro daquele título. Jesús Díaz fez gols sobre Real Madrid e Barcelona. José Echevarrieta tornou-se o atacante com mais alta média de gols no Palmeiras, do qual ainda é o forasteiro com mais gols. Francisco Loiácono jogou pela Argentina e pela Itália. Alfredo Rojas jogou Copa do Mundo. Delio Onnis, de La Barredora, fez mais de meio gol por jogo e se tornaria o maior artilheiro do campeonato francês em fase dourada da Ligue 1, quando ela concentrava os expoentes da boa geração gaulesa dos anos 70 e 80.
Para centroavante, porém, Arturo Naón é incontestável. Ele, que passaria pelo Flamengo, não é só o maior artilheiro do Lobo em números absolutos, mas também nos relativos. Fez 95 gols em 97 jogos. E isso que era reserva no título de 1929 e na turnê europeia, aflorando no Expreso de 1933. Um centroavante que tinha também habilidade para armar jogadas ao invés de apenas conclui-las, El Torito jogou pela seleção, mas para seu azar e de outros contemporâneos a AFA ainda era amadora até 1934 e com isso apenas amadores foram à Copa do Mundo daquele ano. As partidas foram exatamente depois do fracassado mundial.
Em uma das pontas, improvisamos Francisco Varallo, na sua época um meia-direita mas que hoje em dia seria exatamente um ponteiro. El Cañoncito ganhou o campeonato de 1929 e foi o representante gimnasista na primeira Copa do Mundo, da qual foi o último sobrevivente (faleceu em 2010, aos cem anos). Jogou pouco, se consagrando mais no Boca, mas deixou meio gol por jogo no Bosque. Ganha a posição de Manuel Fidel, contemporâneo que é o segundo maior artilheiro do Lobo e alviazul com mais gols no clássico platense, mas com menos transcendência que o Pancho.
Na outra ponta, Guillermo Barros Schelotto. Filho de ex-presidente do GELP, El Mellizo foi ídolo pelos gols na fase áurea, incluindo na final da Copa Centenário e três em um 6-0 em plena Bombonera sobre o Boca, rendendo convocações à seleção; e por ter vindo dar a cara para bater na campanha infrutífera contra o rebaixamento em 2011.
TÉCNICO: O húngaro Emérico Hirschl conduzia o Expreso de 1933, Adolfo Pedernera era o comandante do Lobo de 1962 e José Varacka, o de La Barredora de 1970. Roberto Perfumo treinou os campeões da Copa Centenário de 1993, mas participou só da final. Os mais adorados no posto foram Pedro Troglio e Carlos Griguol. Emblema como jogador e técnico, Troglio treinou os vices de 2005 e 2014; demitido na semana passada, estava há cinco anos no cargo. É talvez o maior emblema dos últimos 20 anos do clube. Ficamos, porém, com Griguol. Seu elenco tinha um jogo mais bonito. E, acima disso, não era um freguês do Estudiantes como o Gimnasia acostumou-se a ser nos últimos dez anos – o revés de 3-0 no último clássico foi o que justamente custou o emprego do concorrente. Com Troglio, o time virava para 3-2 jogo perdido por 2-0 (em 2000) ou ganhava de 3-0 (1998).
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