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Nos cem anos do clássico de La Plata, as melhores histórias de Estudiantes x Gimnasia

Poucas rivalidades de troféus tão desparelhos conseguem ser tão equilibradas no confronto direto e em torcedores. Se Juan Sebastián Verón é uma divindade no Estudiantes, uma das razões foi ter pesado para que o dérbi de La Plata começasse a realmente refletir as diferenças de conquistas em relação ao Gimnasia. Logo Verón, que tem tudo a ver com a rivalidade literalmente desde quando veio ao mundo, pois nasceu em pleno dia de dérbi em que seu pai jogou e marcou gol. É uma entre tantas anedotas do Clásico Platense, que neste 27 de agosto de 2016 completa o seu centenário.

A origem de ambos está interligada. O Gimnasia y Esgrima, de 1887, embora se declare o mais antigo clube de futebol argentino, só veio a pratica-lo em 1905, tendo até então cumprido à risca o seu nome. A experiência, inicialmente, não passou daquele ano. O departamento boleiro foi logo desativado. Os descontentes então fundaram o Estudiantes: contamos neste outro Especial. Só dez anos depois é que os alviazuis reabriram seu futebol. Nesse período, os alvirrubros já haviam sido campeões, em 1913. A reabertura dos triperos foi um sucesso imediato, vencendo-se a segundona de 1915 e possibilitando o primeiro encontro das duas equipes na elite do ano seguinte.

As frias estatísticas informam que o Gimnasia venceu fora de casa graças a um gol contra aos 24 minutos, de Ludovico Pastor. Fato atrelado a diversas curiosidades: Pastor, por ironia, era apelidado de “Sangue Azul”; dois anos antes, o Estudiantes viveu um racha no elenco entre a panelinha liderada por Pastor e outra comandada por Ángel Bottaro, o escolhido pela diretoria a ser convidado para sair; Bottaro rumaria ao recém-reaberto futebol do Gimnasia, pelo qual enfrentou Pastor há cem anos; os ingressos foram vendidos a um peso, quantia considerada altíssima para a época. O Estudiantes respondeu no seguinte, goleando por 3-0. Entre 1918 e 1924, estiveram em ligas diferentes.

No reencontro, os alvirrubros chegaram a emendar três vitórias seguidas por 3-0, anuais de 1926 a 1928. Depois, um 4-1 em 1930. O troco rival foi triunfo por 3-2 em 1931, quando o Estudiantes tinha ataque arrasador apelidado de Profesores, de goleadas de mais de cinco gols contra outras equipes mas que acabaram perdendo o título para o Boca com o clássico fazendo a diferença. A resposta dos pincharratas? 6-1 em 1932. Por décadas, a maior goleada do clássico. Dois dos gols foram de Enrique Guaita, campeão da Copa de 1934 pela Itália, e outros dois foram de Manuel Ferreira, capitão da Argentina vice de 1930 e pai de um dos arquitetos do Estádio Único de La Plata.

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Naón (que passou pelo Flamengo) e Zozaya foram os maiores artilheiros da dupla. Clássico nos anos românticos e outro com Juan Ramón Verón: seu filho nasceu em dia de dérbi!

Já uma das estrelas do Gimnasia era Francisco Varallo, último sobrevivente da Copa de 1930, falecido aos cem anos em 2010 (conheça-o). Segundo um dos Profesores, Alejandro Scopelli, Varallo tinha coração pincha: “atuava no clube Everton, da federação platense. Quis enrolar-se na equipe de suas simpatias e chegou a vestir a casaca alvirrubra em dois amistosos. Mas nesse tempo a luta entre partidários do Gimnasia e do Estudiantes era à morte. A comissão diretiva do Everton era tripera na sua maioria e resistia em dar a transferência. Varallo então aceitou ser anotado nos registros do Gimnasia”. Ambos eram concorrentes na seleção na Copa. Varallo jogou a final mesmo sem condições por pressão de um cartola gimnasista, pois Scopelli atuara na arrasadora semifinal (6-1 nos EUA).

A maior goleada do Gimnasia foi um 5-2 em 1962. Alfredo Rojas, presente nas Copas de 1958 e 1966, marcou duas vezes. Foi em meio à grande campanha tripera, que, treinada pelo ex-cracaço Adolfo Pedernera, liderou a maior parte do campeonato. Foi ali que o clube ganhou o apelido de Lobo. Um novo 6-1 alvirrubro veio no ano mais dourado do Estudiantes, 1968, quando venceu-se também a primeira Libertadores e único mundial do Pincha. Em 1970, cada um venceu o outro por 4-1, com destaque a Delio Onnis, que acumulou três gols antes de virar o maior artilheiro do campeonato francês: falamos dele neste outro Especial.

Em 8 de março de 1975, com Juan Ramón La Bruja Verón de volta após alguns anos no Panathinaikos, ocorreu o empate em 3-3 no dia do nascimento de Juan Sebastián La Brujita Verón. O pai foi mantido incomunicável pelo técnico Carlos Bilardo sobre o parto até o fim da partida. Não houve clássicos entre 1979 e 1985, quando o Lobo esteve na segundona. No reencontro em 1985, o Estudiantes ganhou por 1-0 mas depois sofreu dez clássicos seguidos sem vencer, tabu que só conseguiu devolver no último encontro, no primeiro semestre de 2016. De 1985 a 2005, antes de La Brujita Verón chegar em 2006 para reerguer os alvirrubros, foram duas décadas em que o Gimnasia foi o melhor time da cidade no campeonato (foram cinco vices) e no clássico.

Foi a época de dérbis folclóricos como o 1-0 em 1992 conhecido pelo gol do terremoto do uruguaio José Perdomo, ou o 2-1 em 22 de maio de 1994, gols de Gustavo Barros Schelotto e Favio Fernández, que praticamente condenou o Pincha (dos jovens Verón e Martín Palermo) ao rebaixamento. Não que o Estudiantes estivesse morto; venceu imediatamente a segundona e dois anos depois teve seu troco: a última rodada do Clausura 1996 teve o clássico no qual, se o rival vencesse, teria sido campeão. Mas Palermo e colegas, que já haviam ganho de 3-0 no campeonato anterior, mantiveram o 1-1. O Lobo ainda sorriu com um 3-0 em 1998, um 4-2 em 2003 (no qual o rival abandonou) e um 4-1 em 2005.

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Russo e Airez na catedral de La Plata, nos anos 80. Nos 90,  Troglio e Rojas disputam

Quando Verón voltou, no segundo semestre de 2006, o retrospecto era de 45 vitórias do Estudiantes e 44 do Gimnasia em jogos pelo campeonato. O cartão de visitas veio no primeiro reencontro: 7-0, a maior goleada e em torneio que rendeu título ao Pincha após 23 anos. Desde então, foram mais dez vitórias alvirrubros no campeonato e apenas uma alviazul, que foi providencial – foi no Clausura 2010, em que o Estudiantes perdeu o título por um único ponto para o Argentinos Jrs. A freguesia se manteve também no primeiro clássico internacional, na Sul-Americana de 2014. José Luis Calderón é ícone do Estudiantes quase à altura de Verón: rebaixado em 1994, venceu a segundona de 1995, foi campeão nacional em 2006 e da Libertadores de 2009. Nos 7-0, fez três gols.

Mas, embora sempre tenha sido torcedor pincharrata (por causa da mãe), Caldera chegou a jogar nos juvenis do Gimnasia, time do pai, como contou há alguns anos à revista El Gráfico: “fanático, doente pelo Lobo. Me levava para ver o Gimnasia nos sábados e com meu padrinho ia aos domingos ver o Estudiantes. E me fiz pincha. Teve que aguentar. Uma vez brigamos mal. Foi em 1995, quando ganhamos o clássico por 3-0 com dois gols meus. Em um, sacudi a camiseta. ‘Mas pirralho de merda, quem pensas que és? Como vais sacudir a camiseta assim?'”, contou. Calderón terminou dispensado na base por ter vindo do Cambaceres, sucursal do Estudiantes. Nem a esposa escapa: “não dá muita bola para futebol. É torcedora do Gimnasia, então nem fala muito”.

Já os gêmeos Guillermo e Gustavo Barros Schelotto viveram experiência inversa, com passagem pela base do Estudiantes: “Verón jura que vesti a camiseta. Mas nada, não me regularizei. Nem usei roupa de treino. Verón estava sempre e ficávamos com ele. Terão sido dois meses, não mais”, assegurou Guillermo em 2010, também à El Gráfico. Quem conhece sua parceria e amizade com Palermo no Boca mal imagina como se odiavam: “havia muita rivalidade entre os clubes, porque eram juvenis muito bons. Palermo era assim de alto desde os doze anos, então lhe atiravam um cruzamento e ganhavam. Na sexta divisão inferior, perdemos a final com o Estudiantes e na primeira rodada da quinta nos tocou o clássico. Íamos ganhando e Palermo me acotovelou, creio que de propósito, porque a partida estava quente. Houve um tumulto e expulsaram Gustavo, Martín e outro nosso”.

Palermo complementou: “fui me banhar e me mandei à tribuna, onde estavam meus velhos e amigos. Até que vi um dos que haviam expulsado e fui encarar. Se armou uma revolução bárbara de pais, torcedores e agregados. Voavam socos para todos os lados e o jogo seguia. Foi tremendo: até a polícia teve que se meter”. Ele e os Schelotto foram contratados juntos pelo Boca em 1997. Guillermo lembrou as cicatrizes: “eu conhecia o caminho e quando fui com Gustavo, Martín nos viu no pedágio e nos fez sinal de que nos seguia, porque ele ia pela primeira vez. No vestiário estávamos os três sozinhos. Houve um ‘olá, como vai?’, nos demos a mão e ficamos uma hora sentados os três, sem se falar”.

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O goleiro Sessa no clássico pelo Estudiantes, sem o escudo do time na camisa: torcia pelo Gimnasia, onde também jogou. À direita, Sanguinetti e colegas nos 4-2 do abandono alvirrubro

Gastón Sessa conviveu com os Schelotto na escolinha For Ever e com Palermo nos juvenis do Estudiantes, embora torcesse pelo Gimnasia. Também em 2010, explicou que “eu jogava no Estudiantes e depois ia ver o Gimnasia. A confirmação oficial foi quando saímos campeões na quinta divisão juvenil. Um garoto armava um vídeo e passou com uma câmera. Tinha que dizer nome, apelido e de que clube éramos torcedores. Eu disse: ‘Gastón Sessa, me chamam de Gato, sou torcedor do Gimnasia’. O cara ficou duro. ‘Como?’. Antes não havia tanta violência como agora. Um dia, vem o técnico Garisto e pergunta: ‘quem é o garoto do Gimnasia?’. Me promoveu para treinar com os profissionais e, quando quis acordar, era reserva de Yorno na primeira divisão”.

“Já me xingaram desde a primeira partida. Ia ao gol com todo o nervosismo da estreia e da tribuna do Estudiantes um grupinho gritou: ‘pirralho, é bom que agarres bem hoje, tripero filho da…’. Em geral, quando um goleiro vai estrear, tem os torcedores próprios a seu lado. Não aconteceu comigo. Joguei uma vez o clássico (pelo Estudiantes), perdemos de 2-0, e os torcedores do Gimnasia me aplaudiam, não sei se ironicamente ou o quê. Atenção, que nunca joguei com a camisa do Estudiantes. Minha camisa nunca teve o escudo pincha, vejam esse detalhe nas fotos, me fazia de tonto e jogava com a camisa que queria”. Na mesma ocasião, alfinetou: “até pouco tempo atrás, no Estudiantes jogava um torcedor do Gimnasia. Não me peças o nome, mas o conheço bem”.

O clássico já recebeu declarações de outras personalidades. Alejandro Sabella, campeão como jogador e técnico no Pincha, negou categoricamente que um dia vá treinar o rival: “sou profissional, mas há certos limites que não se podem cruzar”. Rubén Galletti, ex-jogador e filho de ex-jogador do Estudiantes, ataca o extremismo: “é mentira que porque és do Gimnasia não podes sentar e tomar um café com alguém do Estudiantes”. Em 2009, o Lobo escapou dramaticamente do rebaixamento ao devolver um 3-0 com dois gols depois dos 45 minutos do segundo tempo enquanto o rival vencia a Libertadores. Trocaram felicitações mútuas, que Sessa, agora enfim jogador gimnasista, minimizou.

“Verón chamou o Chirola, sim, e eu também chamei o Caldera quando foram campeões da América. Protocolo. A verdade é que não sentia. O deles também foi protocolo, esqueça”, declarou o goleiro. Já José Luis Brown, líbero campeão com o Estudiantes e autor de gol na final da Copa do Mundo de 1986, valorizou esse clássico ao ser indagado se torcia pelo rebaixamento do Lobo: “não gostaria que a cidade perdesse o clássico. Tenho muitíssimos amigos do Gimnasia. Eu quero que joguem mais quinhentos clássicos e que em todos ganhe o Estudiantes”. Esse é o espírito!

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Já Calderón esteve no Gimnasia, em 1990, embora torcesse pelo Estudiantes. À direita, comemora um dos três no histórico 7-0 de 2006

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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