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Nos 70 anos da eleição de Perón, conheça suas influências no futebol

Em 24 de fevereiro de 1946, a Argentina voltava a eleger democraticamente seu presidente após nove anos. Pela primeira vez, Juan Domingo Perón chegou ao poder. Populista, ainda que, apesar da patente militar, não tenha chegado a ser um ditador (sempre tornou-se presidente por eleições democráticas; golpeados, duas vezes, foram mandatos ganhos por ele), confusão comum no Brasil pelo contemporâneo e “equivalente” Getúlio Vargas ter tornado sinônimas as duas coisas, não deixou de interferir no futebol argentino. Sua influência é incalculável. Vamos lembrar as mais significativas.

A mais famosa, inegavelmente, é o do Cilindro de Avellaneda, o estádio do Racing. Inaugurado para os primeiros Jogos Pan-Americanos, em 1951, recebeu oficialmente o nome do ex-presidente do país em pleno auge do peronismo: naquele mesmo ano, o general seria reeleito tendo cerca do dobro de votos de seu concorrente. A homenagem rende o equívoco muito difundido de que Perón seria torcedor racinguista. O estádio teria sido construído com apoio explícito do governo, mas o presidente era, na realidade, torcedor do Boca, conforme já admitiu a própria revista El Gráfico que celebrou os 110 anos do Racing, em 2013.

Maior artilheiro do San Lorenzo, José Sanfilippo (ex-Bangu e Bahia), que conheceu pessoalmente Perón, contou em outra edição da El Gráfico, em 2015, que o presidente desconversava: “Estive com ele umas quantas vezes, na Espanha (…). Lhe falava de futebol para tira-lo dos temas habituais, mas o cara era inteligente, nunca chegou a me dizer de que equipe era. O que lembro muito bem é que no ano anterior à Copa 1974 nos disse que a Holanda ia ser campeã do mundo. Eu queria me atirar embaixo da mesa de risada, mas Perón nos contou que vinha assistindo futebol na Europa e que jogavam muito bem e com grande técnica”

Tanto Boca como Racing, de qualquer forma, se ligaram bastante ao peronismo – e também o San Lorenzo, daí a relação com Sanfilippo. Há versões que sustentam que a maior tragédia no Superclásico, a morte de dezenas de torcedores do Boca em 1968, pisoteados no Monumental, teria ocorrido por repressão policial pela torcida auriazul ter cantado a Marcha Peronista: saiba mais.

Boca de 1952, com faixas negras sobre a listra dourada: luto por Eva Perón. À direita, ela ainda atriz ao lado do ex-vascaíno Bernardo Gandulla

A Marcha, aliás, teve entre seus compositores um ex-jogador da seleção argentina: Oscar Ivanissevich, ministro da Educação e embaixador nos Estados Unidos durante os governos Perón, um período contraditório capaz de abrigar tanto milhares de refugiados judeus (a Argentina tem a quinta maior comunidade israelita no mundo) como criminosos nazistas. Em 1968, Perón estava no exílio e a Argentina vivia sob as botas da ditadura do General Juan Carlos Onganía.

Perón estava no exílio desde 1955, ano em que foi tirado da Casa Rosada sob bombardeios. O golpe fez Humberto Maschio, grande ídolo do Racing (jogou pela Itália a Copa de 1962 e venceu pela Academia a Libertadores e Mundial de 1967), deixar o militarismo: “estava fazendo o serviço militar com o General Valle, um cara extraordinário, torcedor do Racing, o qual um ano depois fuzilaram. Nesse tempo, eu jogava no terceiro quadro e então Valle me propôs ir trabalhar no Ministério da Guerra, ao lado da Casa Rosada. Ficava um pouco como cadete e ao meio-dia ia embora”, lembrou em longa entrevista à revista El Gráfico em 2011.

Prossegue Maschio: “no dia do bombardeio, estava lavando as mãos para sair e vibrou todo o edifício. Saí correndo para ver o que acontecia. E estavam bombardeando: nessa manhã, Perón estava no edifício. Ainda se vê as marcas na frente do Ministério. Às 4 da tarde se acalmou e pude sair por trás. Renunciei. Não voltei mais”. O general buscou asilo na Espanha, com quem tinha boas relações nos anos 40 a ponto de haver uma “Copa Eva Duarte” a ser decidida o campeão espanhol e da Copa do Rei. Duarte era o sobrenome de solteira de Eva Perón.

Resquícios do peronismo foram imediatamente suprimidos. A seleção de basquete campeã da primeira Copa do Mundo, em 1950, foi desmanchada; a delegação olímpica foi reduzida de 134 pessoas em 1952 para 37 em 1956, suprimindo o corredor Osvaldo Suárez, três vezes campeão da São Silvestre: “me tiraram a possibilidade de ser campeã olímpico. Estava fazendo em 2h23 e me proibiram de ir faltando cinco dias. Teria triunfado porque estava terminando dois minutos a menos que o que ganhou. Sofri e no dia de hoje sigo sentindo. Foi uma ferida muito profunda”. No futebol, por sua vez, La Plata voltou a ser La Plata.

Essa é uma das facetas menos conhecidas fora da Argentina: a cidade das diagonais havia sido renomeada como Eva Perón nos dias seguintes ao falecimento da ex-primeira dama, em 1952. Um circo de culto à personalidade, para usar os termos da ironia do personagem de Antonio Banderas em “Oh What a Circus”, do musical Evita de Andrew Lloyd Webber. A mudança afetou a dupla futebolística platense. O Estudiantes de La Plata virou “Estudiantes de Eva Perón”, assim como o Gimnasia y Esgrima La Plata virou “Gimnasia y Esgrima Eva Perón”.

O Estudiantes se deu mal. Alinhava-se com a oposição: um mês antes da morte de Evita, o Pincha havia sido alvo de protestos por não distribuir os dois mil exemplares que recebera do livro autobiográfico dela, Razón de mi Vida. Sofreu intervenção governamental e seus melhores jogadores foram embora, como os artilheiros Pellegrina e Ricardo Infante. Com a sigla E. de E.P. no distintivo ao invés da clássica E. de L.P., os alvirrubros sofreram no ano seguinte seu primeiro rebaixamento. Já o Gimnasia, com a nova denominação, fez o caminho inverso, vencendo a segunda divisão daquele 1952.

Uma última homenagem em vida a Evita veio em 1951, com a inclusão do Sarmiento na Associação do Futebol Argentino. A AFA, apesar do nome, era restrita a clubes da Grande Buenos Aires e às cidades de La Plata, Rosario e Santa Fe. O Sarmiento é da cidade de Junín, bem afastada da capital federal embora seja da Província de Buenos Aires. O clube deixou as ligas regionais para ser incluído na segunda divisão e até hoje está diretamente afiliado, chegando à elite em 1981 e no ano passado. Não se sabe onde Evita nasceu, mas havia sido em Junín que ela crescera e onde casou-se com Juan.

Segundo escritos de Max Gehringer, sob as ordens do general a Argentina deixou de participar das eliminatórias às Copas do Mundo de 1950 e 1954. Temia-se em ambas um vexame sem os astros exilados no Eldorado Colombiano, vigorado de 1949 a 1954 após greve geral dos jogadores em 1948 que, não atendida, fez muitos ficarem seduzidos com as altas cifras oferecidas pela nascente liga profissional da Colômbia. No caso da Copa de 1950, também pesava as relações conturbadas entre AFA e CBD após a briga generalizada na Copa América de 1946 (a duas semanas da eleição de 70 anos atrás: falamos aqui). A Argentina já não havia vindo ao Brasil em 1949, quando disputou-se em solo tupiniquim a Copa América, embora a Albiceleste fosse a detentora dos três títulos anteriores.

O Estudiantes e o Gimnasia passaram a ser da Cidade de Eva Perón, nome de La Plata entre 1952-55

A história é a rainha da ironia e foi justamente em plena edição de outra Copa do Mundo, em 1974, que o general faleceu. Ele estava havia pouco meses de volta à presidência. Pôde voltar a seu país em 1973 após eleições civis no primeiro semestre. O eleito, Héctor Cámpora, fiel aliado, renunciou e convocou novas eleições no segundo semestre, na qual Perón foi o vencedor colocando sua nova esposa, Isabelita, como vice. José Sanfilippo estava no avião que trouxe Perón de volta da Espanha e lembrou na mesma entrevista concedida à El Gráfico em 2015:

“Me convidaram (…) dois sindicaistas que eram torcedores do San Lorenzo e sabiam que eu era peronista. Havia atores, políticos e esportistas nesse avião. Quando o comandante disse que estávamos sobrevoando território argentino, houve uma grande ovação e nos pusemos a cantar a Marcha Peronista”.

Perón também se relacionou por atos de presidência com jogadores e ex-jogadores da seleção. Em sua breve mandato nos anos 70, condecorou Miguel Ángel Brindisi (veja), na época quem mais havia defendido a Argentina e que se recusava a jogar na Europa para manter suas chances de convocação à Copa de 1974 – na época, ir ao exterior mais atrapalhava do que ajudava (Brindisi foi ao mundial e fez gol no Brasil). Nos anos 40, concedeu indulto a Benjamín Delgado, a pedido de Evita, sensibilizada com campanha pela libertação do ponta-esquerda da Copa América de 1926, preso havia oito anos por assassinar a esposa (Delgado, posteriormente, mataria também sua nova esposa, foi preso e jamais visto novamente).

Perón falecera às vésperas do último compromisso argentino no mundial, contra a Alemanha Oriental. Teve jogador que não quis atuar. Os hermanos usaram braçadeiras negras na ocasião. Isabelita assumiu o cargo e seria derrubada em 1976, com o futebol sendo a única coisa mantida na programação normal no dia do golpe (explicamos aqui). Mario Kempes, então no Rosario Central e de família ligada ao peronismo, levou-a consigo imediatamente ao Valencia, sentindo o que viria pela frente. A influência de Perón, para estudiosos, se impregnou até mesmo no estilo tático do futebol argentino, conforme explicado pelo saudosíssimo colega Tiago de Melo Gomes em diversas notas. Clique abaixo para conferir:

Peronismo futebolístico

Peronismo de arquibancada

O país da política e do futebol

Menottismo x Bilardismo: duas escolas de futebol argentino (I)

Menottismo x Bilardismo: duas escolas de futebol argentino (II)

Argentina x Alemanha Oriental na Copa 1974. Acima da braçadeira de capitão de Enrique Wolff vê-se uma fina faixa negra: luto pelo presidente Perón
Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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