O natal ocidental de 1991 foi incomum, marcado pelo anúncio da dissolução da União Soviética. Não foram poucos os jogadores argentinos com origens em alguma área do imenso território da URSS, de armênios a russos e, em especial, ucranianos e judeus – sendo inclusive comum que jogadores israelitas fossem apelidados de El Ruso. O critério adotado é tão somente que a origem provenha de território que tenha sido soviético, ainda que a emigração tenha ocorrido antes da existência do país.
Russos
Um desses Rusos judeus e que emigraram antes da Revolução Russa era brasileiro: Aarón Wergifker. Nasceu em São Paulo na virtual escala que os pais fizeram da Rússia a Buenos Aires. Volante do River nos anos 30, foi o único brasileiro a jogar oficialmente pela Argentina. Foi entre 1933 e 1936, embora curiosamente não tivesse cidadania do país, o que o impediu de ir à Copa América de 1937. Ironicamente, ele também não tinha documentos brasileiros, apesar de nascido à beira do Ipiranga: era civilmente registrado como russo mesmo.
Outros judeus apelidados de Ruso foram mencionados neste especial sobre argentinos com essa origem: foram os casos do meia Daniel Brailovsky, ex-Independiente nos anos 80 que defendeu nada menos que as seleções uruguaia (juvenil), argentina (em jogos não-oficiais) e israelense; e Damián Manusovich, volante de quase uma década de serviços ao San Lorenzo nos anos 90. A presença deles é assumidamente especulativa, assim como a de outros Rusos como Jaime Chavín, ponta-esquerda dos primeiros títulos argentinos de Huracán e River, nos anos 20; Darío Siviski, meia de San Lorenzo e River com passagem breve pela seleção no fim dos anos 80; e Ricardo Zielinski, eternizado como o técnico que, pelo Belgrano, rebaixou o River em 2011.
Quem, como Wergifker, teria realmente origens na “Mãe Rússia” é o ex-botafoguense Rodolfo Fischer: além da evidente origem alemã e de feições que sugerem ancestralidade paralela indígena, El Lobo também seria neto de russos, de acordo com seu verbete no Diccionario Azulgrana, a informar que esse antigo artilheiro do San Lorenzo teria origem também polonesa. De modo especulativo, vale mencionar o inábil mas matador atacante Carlos Morete (seu outro sobrenome é Markov), artilheiro por River, Independiente e Talleres e reserva útil no Argentinos Jrs campeão da Libertadores 1985; e outro personagem destacado no San Lorenzo, Darío Siviski, dinâmico volante do clube no fim dos anos 80. El Ruso Siviski participou da Copa América de 1987 e das Olimpíadas de 1988, mas não decolou após deixar o time, apesar de rodar por Suíça, Japão e México e até pelo Independiente.
Armênios
Se o apelido Ruso era usado a quem não era russo “étnico”, mas cidadão do Império Russo, os que vinham do Império Otomano acabaram rotulados de Turcos mesmo que fossem árabes. Ou armênios, o que poderia dar briga. Esse foi o caso, pelo menos, do lateral Eduardo Abrahamian, reserva do River campeão de 1980 e do San Lorenzo vencedor da segundona de 1982 – e depois o técnico juvenil que Messi teve em seu breve e esquecido passo pela base do River.
A comunidade do tenista David Nalbandian possui seu próprio clube de futebol, o Deportivo Armenio. Dedicamos ao time da cidade de Ingeniero Maschwitz este outro Especial. Ele esteve por dois anos na elite, em fins dos anos 80. Embora nunca restrito à comunidade, não deixou de ter “caseiros”: o atacante Adolfo Keurikian foi membro ativo entre 1975-82 nas divisões de acesso após ter sido um reserva do reserva no recordado Huracán campeão em 1973, ainda o único título de primeira divisão desde 1928 desse clube; o ex-goleiro Alberto Parsechian treinou o elenco vencedor da segundona de 1987, no qual o capitão era o líbero Miguel Gardarian. Nos anos de elite, um dos atacantes era Walter Oudoukian. Mais recentemente, teve o atacante Fernando Zagharian e Martín Gardarian (filho de Miguel).
Daquela área do Cáucaso também vieram as raízes de Julio Marcarian, ex-ponta-esquerda de Huracán e Boca (chegou a marcar o único gol de um Superclásico com o River em 1953); Eduardo Balassanian, atacante destacado do Platense; Luis Kolandjian, zagueiro do Ferro Carril Oeste; Eduardo Bazarbachian, atacante do Atlanta – esses quatro atuaram nos anos 50, ainda antes da fundação do Armenio, criado em 1962.
Em 1996, o centroavante Manuel Avedikian foi profissionalizado pelo San Lorenzo após ser grande artilheiro juvenil, mas só durou duas partidas. Seu verbete no Diccionario Azulgrana informa ainda que “se disse em algum momento que integraria a seleção da Armênia, terra de seus antepassados, mas não deu em nada”. Já Luciano Krikorian foi um zagueiro que ganhou títulos nas divisões inferiores por Tigre e San Martín de Tucumán nos anos 2000. Mais recentemente, o Belgrano formou Lucas Zelarayán (de fenótipo que denota miscigenação indígena), hoje no México com o Tigres.
Vale ainda lembrar de Noray Nakis, que além de presidente do Armenio, foi cartola também do Independiente; Eduardo Seferian, fundador do Deportivo Mandiyú, cascudo time de Corrientes que figurou na elite na virada dos anos 80 para os 90, e primeiro time treinado por Maradona; e Eduardo Eurnekian, empresário que bancou a própria ida de Maradona ao Boca em 1995. O intercâmbio até emplacou dois argentinos sem raízes armênias na seleção daquele país: se Avedikian não chegou a ser aproveitado, Marcelo Devani atuou em dois jogos a partir de 1999 e José Andrés Bilibio em dez, estreando em 2002, quando o técnico da Armênia era Oscar López. Ele e Bilibio chegaram lá a partir do trabalho no Deportivo.
Atualização em 08-10-2021: o argentino Zelarayán estreou nessa data pela seleção armênia, em 1-1 contra a Islândia pelas eliminatórias à Copa do Mundo.
Ucranianos
Além dos armênios, a outra comunidade soviética mais representada no futebol argentino é a dos ucranianos, alguns com sobrenomes em ortografia polonesa – áreas que hoje são da Ucrânia foram da Polônia e vice-versa (por exemplo, o sobrenome do polaco-alemão Lukas Podolski deriva da Podólia, região hoje ucraniana). O volante Vladislao Cap, por exemplo, ora é referido como tendo pai ucraniano, como no livro Quién es Quién en la Selección Argentina, ora como filho de um polonês, como na seção de ídolos do site do Racing; curiosamente, os mesmos exemplos qualificam sua mãe como romena e como húngara, respectivamente. Grande ídolo racinguista, El Polaco jogou a Copa de 1962 e soube se destacar também no rival Independiente, como técnico do time campeão de 1971. Também virou a casaca no Superclásico, sendo o único a treinar Boca e River sem escalas, em um mesmo ano (1982), embora falecesse em pleno exercício do cargo no River.
E houve mesmo quem foi sondado pelas seleções de Ucrânia e Polônia: o meia-atacante Diego Klimowicz vinha bem entre 2001 e 2002 por Lanús e Wolfsburg, mas acabou não efetivamente convocado por ninguém, nem pela Argentina; quem jogou por seleção foi seu irmão Javier Klimowicz, goleiro, mas naturalizado pela do Equador. Na época em que sondou o atacante Klimowicz, em 2002, a Ucrânia demonstrou interesse também no meia Julián Kmet, então no Nueva Chicago; no volante José Chatruc, que ao fim de 2001 foi titular da quebra do imenso jejum nacional do Racing (35 anos) e em 2002 ganhou pelo San Lorenzo a primeira edição da Copa Sul-Americana; e o atacante Patricio Camps (o sobrenome catalão esconde que tem origem paralela ucraniana por parte materna), que já havia jogado pela Argentina no embalo de seu brilho pelo Vélez em meados dos anos 90. Mas não houve avanços na naturalização de ninguém.
Outros dos mais notáveis hermanos de origem ucraniana foram o meia-esquerda Juan Nawacki (de um jogo pela seleção, em 1956, vindo do Argentinos Jrs, sua origem ucraniana é apontada pelo mesmo livro Quién es Quién en la Selección Argentina); o atacante Juan Carlos Oleniak (segundo o mesmo livro), participante da Copa de 1962 como jogador do Argentinos Jrs também, embora fosse sua passegem pelo Racing que lhe fizesse ser mencionado no oscarizado filme O Segredo dos Seus Olhos; o técnico José Pekerman (judeu) e o atacante Adrián Czornomaz, relatado no Diccionario Azulgrana como neto de ucranianos que fugiam da Primeira Guerra Mundial. Está no livro devido ao passo pelo San Lorenzo, onde foi goleador do elenco em 1991. El Pirata havia passado pelo Independiente também, mas foi nas divisões inferiores que fez fama de artilheiro, especialmente por Los Andes, Banfield (dois rivais), Atlético Tucumán, All Boys e Quilmes.
E houve ainda um ucraniano nativo que jogou pela Albiceleste: Vladimiro Tarnawsky. Natural de Kiev em 1934 (época do Holodomor, o genocídio ucraniano), Tarnawsky chegou ainda com onze meses a Buenos Aires. Recebeu nacionalidade argentina em 1958. Um ano depois, após ser o goleiro menos vazado do campeonato de 1959, jogou sua única partida pela seleção. Em circunstâncias curiosas: substituiu Osvaldo Negri no intervalo contra o Chile, mas lesionou-se aos 35 minutos do segundo tempo e foi substituído pelo próprio Negri. Tarnawsky era do Newell’s, que sem ele foi rebaixado (pela única vez) em 1960: fora vendido ao San Lorenzo, o campeão de 1959. Foi o primeiro goleiro a disputar a Libertadores por um time argentino.
Faixas-bônus
Assim como Tarnawsky, o futebol argentino já teve goleiro nativo daquelas redondezas, o lituano Vytautas Kriščiūnas, campeão da segunda divisão de 1949 com o Quilmes e que logo seria incorporado pelo Eldorado Colombiano. Mas o esportista argentino mais proeminente com origens da Lituânia se desempenhou em outro esporte bretão, o rúgbi, que viu Rimas Álvarez Kairelis integrar a celebrada seleção medalhista de bronze na Copa do Mundo de 2007; a vila Krupaviesai, nos arredores da capital Vilnius, originou o sobrenome do lateral Juan Krupoviesa, aguerrida figura carimbada dos títulos comemorados pelo Boca entre 2005-06. Vale menção ainda ao uruguaio Vladas Douksas, de grande destaque no Independiente campeão de 1960; e ao lendário preparador físico Adolfo Mogilevsky, um inovador na área nos anos 50 e 60 e eventualmente técnico interino – seu sobrenome deriva da cidade bielorrussa de Mogilev.
E houve casos inversos ao de Tarnawsky: argentinos que, de origem soviética, passaram por outras seleções além do já mencionado “equatoriano” Javier Klimowicz. Por sinal, dois “ucranianos”, Iván Borodiak e Juan Carlos Zubczuk, e um “armênio”, Efraín Chacurian. Chacurian, nos anos 50, e Borodiak (ex-Almagro e Talleres de Escalada), nos 60, foram os primeiros hermanos que defenderam os Estados Unidos. Promessa do Racing, o goleiro Zubczuk nunca se firmou em Avellaneda e passou no fim dos anos 80 ao futebol peruano. Pelo Peru, foi convocado para a Copa América de 1993 e para as eliminatórias à Copa de 1994, ainda que jamais tenha entrado em campo pela Blanquirroja.
Nos anos 90 o Boca testou o ucraniano Viktor Dvirnik e o georgiano Giorgi Kinkladze, depois ídolo cult no Manchester City, mas não fechou os alternativos negócios. Assim, o sucessor de Tarnawsky como nativo da URSS a aparecer no futebol argentino foi mesmo um massagista. Foi o curiosíssimo caso de Vasily Bogdanov, oriundo do Turcomenistão (!) e integrante do primeiro Lanús campeão de primeira divisão, no Apertura 2007.
Duelos de seleções
No futebol adulto, Argentina e URSS se enfrentaram onze vezes, com equilíbrio: três vitórias hermanas, duas derrotas e seis empates. Foi contra ela que a Albiceleste sofreu sua primeira derrota em casa para uma seleção não-americana, em 1961, em jogo no qual o lendário Yashin foi descrito pela mídia argentina como determinante como poucos goleiros já vistos; de fato, o gol argentino no 2-1, de Belén (os outros foram do russo Ponedelnik, aos 24 e 26), só veio após o astro russo sair lesionado, a dez minutos do fim. Foi a revanche de um 0-0 no Estádio Lênin (atual Lujniki) naquele ano.
Em 1965, Yashin evitou nova derrota no Monumental de Núñez, em um 1-1, gols de Onega e do russo-azerbaijano Banishevskiy. Com o goleirão já aposentado, veio a primeira vitória argentina, um 1-0 no Mineirão pela Taça Independência do Brasil, em 1972, gol de Pastoriza. Em 20 de março de 1976, a quatro dias do golpe de estado que depôs o governo Perón, os argentinos faziam excursão pelo Leste Europeu. Na neve do estádio Central de Kiev, Kempes fez o único gol. Em novembro de 1976, a URSS retribuiu a visita e saiu de novo invicta do Monumental (0-0).
De fato, os vermelhos endureciam na Argentina: dois 1-1 vieram em 1980 (em Mar del Plata, com Maradona abrindo aos 19 mas com o armênio Oganesyan empatando logo aos 22) e 1982 (no Monumental, gols de Roberto Díaz e novamente Oganesyan). Em 1988, em torneio em Berlim, um jogo emocionante: aos 14 e aos 15, os ucranianos Zavarov e Lytovchenko abriram 2-0, com Troglio diminuindo aos 18. Outro ucraniano, Protasov, ampliou aos 7 do segundo tempo e Maradona diminuiu aos 12. Mas Protasov assinalou o 4-2 no fim. Experiência que serviu para a segunda rodada da Copa de 1990. Em um cenário tenso: quem perdesse estava praticamente eliminado.
O goleiro Pumpido se fraturou no início, levando à entrada da revelação Goycochea na Copa. Maradona impediu com o braço um gol e Troglio voltou a marcar. Perto do fim do país, em 1991, o último encontro, em Wembley. 1-1 com gols de Ruggeri e do russo Kolyvanov com Goycochea, para variar, pegando pênalti (do ucraniano-russo-moldávio Dobrovolskiy). Curiosamente, um primeiro encontro do futebol argentino com gente oriunda do antigo país foi um amistoso não-oficial da pré-temporada do histórico Vélez de 1994: em 17 de fevereiro, Chilavert, Almandoz (Galeano), Trotta, Pellegrino e Federico Domínguez, Basualdo, Marcelo Gómez, Rentera e Bassedas, Asad e Flores receberam o que era anunciada como a seleção russa.
Analisando-se a escalação daquele 0-0, vê-se que os pupilos de Carlos Bianchi enfrentaram na verdade um misto de seleção sub-21 com equipe B: Kramarenko, Gryazin, Nekrasov, Chudin (Khabrostin) e Korkaukov, Novochenko, Verketov, Konovalov (Ayurov) e Vavikin, Niederhaus e Pachenko, treinados pelo ucraniano Yevhen Kucherevskyi. Desses sobrenomes obscuros, apenas Nerkasov e Niederhaus conseguiriam chegar à seleção principal da Rússia (Niederhaus, que já tinha mais de 21 anos, também defenderia a do Cazaquistão natal), embora não a tempo de irem à Copa do Mundo. Mas o duelo não-oficial mais ressonante deu-se quando a velha URSS visitou o Loma Negra, no efêmero auge do clube de Olavarría, em 17 de abril de 1982; uma invencibilidade soviética de 18 jogos ruiu com um 1-0 para a equipe treinada pelo ex-goleiro flamenguista Rogelio Domínguez.
De jogos oficiais, desde o fim do antigo país vieram um 0-0 contra a Lituânia (por sinal, no estádio do Vélez) em 1999; um 0-0 contra a Bielorrússia no campo do Dínamo Minsk, em 2008; e um 3-2 na Rússia na casa do Lokomotiv Moscou em 2009 – Semshov abriu o placar, Agüero e Lisandro López viraram aos 45 e 46, Dátolo ampliou e Pavlyuchenko diminuiu.
O encontro mais histórico, contudo, certamente segue sendo entre as seleções sub-20 que decidiram em 1979 o Mundial da categoria. O 3-1 rendeu o primeiro título argentino no torneio e, sobretudo, o primeiro título de Maradona. É, com justiça, a imagem que abre essa matéria. Contamos nesse outro Especial.
Atualização em 11-11-2017: nessa data, Argentina e Rússia duelaram em amistoso em Moscou, no Luzhniki, onde Agüero marcou o único gol, aos 41 do segundo tempo.
Atualização em 05-06-2022: nessa data, a Argentina enfrentou pela primeira vez a Estônia, derrotada por 5-0 em amistoso na cidade espanhola de Pamplona (estádio El Sadar) com cinco gols de Messi, o que igualou um recorde de mais de 80 anos.
Agradecimentos ao amigo Esteban Bekerman, historiador do futebol argentino e dono da Entre Tiempos, única livraria de Buenos Aires voltada ao futebol.
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