*Por Caio Brandão e Rafael Duarte Oliveira Venancio, com colaboração de Esteban Bekerman
Poucos clubes brasileiros podem escalar um timaço só de argentinos de sua história. Eis uma faceta pouco conhecida do São Paulo, cujos estrangeiros de mais prestígio, desde os anos 70, vêm sendo os uruguaios. Mas se os charruas marcaram época na Era Brasileirão, a outra margem do Rio da Prata exportou alguns dos principais jogadores responsáveis pelas primeiras conquistas do Tricolor, fomentando a base da grandeza escancarada naquela final em vermelho, preto e branco contra o Newell’s. A final que hoje faz 25 anos é um bom gatilho para relembrar os numerosos hermanos são-paulinos – e até para desfazer alguns erros presentes mesmo em fontes das mais fiáveis.
O primeiro sofre erros até no nome. José Carlos Ponzinibio costuma ser grafado como “Carlos José Ponzoníbio” e supostamente oriundo do Estudiantes de La Plata. Na realidade, jogou no Estudiantes de Buenos Aires mesmo, de onde chegou a ser incorporado pelo Milan na temporada de 1930-31. Em 1933, já estava no modesto Colegiales. Foi importado em 1934 inicialmente pelo America carioca, que naquele ano tornou-se o primeiro clube brasileiro a apostar largamente em argentinos. Ponzinibio, porém, durou pouco tempo nos rubros, cedido ainda naquele ano ao então Tricolor da Floresta, que teve uma breve extinção no ano seguinte; dissidentes criaram o Estudantes-SP (que, vale mencionar, teve em 1937 o lateral-esquerdo Hortensio Pellizari, ex-Vélez e Huracán e cedido ao America no mesmo ano). Ponzinibio rumou à nova equipe, reabsorvida pelo clube-mãe (refundado ainda em 1935) em 1938. Defendeu de novo a sigla SPFC, até o início de 1940.
O ano de 1940 teve também, de uma vez, os dois argentinos seguintes. Ambos só pelo Torneio Rio-São Paulo. Um era o veterano zagueiro Teófilo Juárez, que despontou nacionalmente em 1928 pela seleção de sua Santiago del Estero no campeonato de províncias, badalado na época. Foi o primeiro título do interior e rendeu sua transferência ao Rosario Central. El Indio Juárez ainda rodaria por Chacarita, curiosamente, uma instituição amiga do São Paulo; Tigre; e pelos gigantes River e Racing, destacando-se sobretudo por River (de onde chegou a assinar contrato com o Atlético de Madrid, mas forçou a saída em virtude da Guerra Civil Espanhola) e Tigre. Veio acompanhado do meia Antonio Castagna (veja sua ficha de imigração), cujo sobrenome é grafado como Castagno ou Castanho – e seu nome, como Juan ou João. Meia-direita produto das inferiores do Boca, Castagna destacou-se por Quilmes e Nacional de Mendoza. Também estava no Colegiales antes de vir ao Brasil.
A dupla chegou a deixar um gol cada no Rio-São Paulo, mas ambos logo rumaram a outros clubes paulistas: Castagna foi à Baixada, requisitado em novembro de 1940 pelo Hespanha (atual Jabaquara), defendendo em 1941 a Portuguesa Santista; Juárez, ao Palestra (Palmeiras). Já o hermano seguinte foi simplesmente um dos maiores jogadores que o futebol já teve. Antonio Sastre chegou em 1943 do Independiente consagrado como um jogador completo: hábil no ataque, no meio e na defesa e com sucesso até como goleiro, além de duas vezes campeão da Copa América. Após algumas críticas iniciais, muitas relacionadas à idade elevada, El Cuila respondeu com participação ativa no primeiro título estadual são-paulino, já naquele ano, desde a refundação de 1935. Destaque especial aos seis gols anotados no 9-0 sobre a Portuguesa Santista (de poderio equilibrado com o Santos na época, vale lembrar), até hoje um recorde individual de gols em um só jogo no Tricolor.
Sastre ainda ganharia os títulos de 1945 e 1946 e seria eleito para o time dos sonhos do clube em eleição promovida em 1982 pela Placar (sendo substituído por Pedro Rocha nas de 1994 e 2006). Segundo o técnico Osvaldo Brandão, Sastre ensinou os brasileiros a jogar futebol e o ídolo comum de São Paulo e Independiente se fez presente na final de Libertadores que ambos protagonizaram em 1974, para homenagem mútua. Os títulos paulistas de 1945 e 1946 contaram ainda com outro ex-Independiente, o defensor Armando Renganeschi, já renomado no futebol brasileiro por Bonsucesso e Fluminense. Campeão também em 1948, Renga destacou-se sobretudo por seu único gol pelo São Paulo: além de estar machucado, o lance, no clássico com o Palmeiras (no auge dessa rivalidade) assegurou o título de 1946. Também foi campeão em 1948 e teve larga trajetória de técnico no futebol paulista, incluindo pelo São Paulo em 1958.
Enquanto Renganeschi saía, chegava o goleiro José Poy, simplesmente o maior da posição na história são-paulina até Rogério Ceni. Não é exagero: foi outro eleito em votações promovidas a cada doze anos pela Placar nesse sentido, em 1982 (ao lado de Sastre) e em 1994 (ou seja, já após as façanhas internacionais de Zetti; teve os votos de Alberto Helena Júnior, Carlos Miguel Aidar, Éder Jofre, Gino Orlando, Bellini, Laudo Natel e Lima Duarte, dentre outros), sendo enfim relegado por Ceni na de 2006. Descoberto no Rosario Central, Poy defendeu os arcos tricolores por treze anos. A titularidade veio em 1950, quando o concorrente Mário ocupou-se na seleção paulista e foi mal. Poy chegou a ser sondado até mesmo pela seleção brasileira para a Copa de 1954. Ganhou quatro vezes o Estadual como jogador e outra em uma de suas diversas passagens como treinador, em 1975. Radicou-se no Brasil e não escondeu a alegria pelo título de 25 anos atrás vir sobre seu velho rival Newell’s.
Enquanto ainda jogava, Poy recebeu uma dezena de hermanos tricolores – não foi o caso de Norival Ponce de León, tido como argentino mas brasileiro na realidade. Em 1950, chegou o matador Elmo Bovio, até hoje forasteiro dono da melhor média de gols pelo clube. Ex-Peñarol, Internazionale e Palmeiras, estava para fechar com o Santos (até jogou um amistoso pelos alvinegros contra o Vasco em janeiro de 1950, marcando), mas acertou com o São Paulo. Foram só 26 partidas pelo Tricolor, mas com 22 gols do atacante, que, porém, terminou crucificado por indisciplina, mesma razão para seu desligamento prévio no Palmeiras. O São Paulo pretendia puni-lo segurando seu passe e a solução do argentino foi rumar, com o Estadual ainda em andamento, para onde o passe não importava: a “liga pirata” do Eldorado Colombiano, desvinculada à FIFA. Outro que aportou em 1950 no Canindé (o estádio são-paulino na época) foi o lateral César González, por sua vez discretíssimo: ex-Peñarol e vindo do Internacional, não saiu da reserva de Savério.
Na época de forte lei do passe e de pouca disparidade com o futebol europeu, não era incomum que os reservas fossem exportados ao Velho Continente e os titulares, mantidos. Foi o caso de Pancho González. Embora não jogasse na vitoriosa turnê pela Europa em 1951 em conjunto com o Bangu, foi vendido ao Nice, virando símbolo dos anos dourados da equipe francesa. Naquela turnê, a camisa são-paulina foi usada pelo volante banguense Ramón Rafanelli (não Rafagnelli), de passagem destacada no Vasco. No mesmo ano de 1951, o modesto Banfield forçou dois jogo-extras contra o poderoso Racing (que vinha de dois títulos nacionais seguidos) para decidir o campeonato após ambos terminarem empatados na liderança. Entre 1930 e 1966, foram campeões somente os cinco grandes, oligopólio que o Racing forma com Boca, River, Independiente e San Lorenzo. Aquela foi a ocasião mais próxima que um pequeno teve no de furar esse bloqueio naquele período.
O Taladro perdeu honrosamente de 1-0 e dois membros do seu ataque foram trazidos pelo São Paulo no ano seguinte: o centroavante Gustavo Albella, ainda o maior artilheiro da história banfileña, e o meia-esquerda Nicolás Moreno. Moreno não vingou, com apenas seis gols. Sairia em janeiro de 1953 para brilhar no futebol chileno (artilheiro do campeonato nacional de 1955 pelo Green Cross e campeão em 1958 pelo Santiago Wanderers). Já El Atómico Albella, deslocado para a meia-direita, funcionou muito bem com outro reforço, o centroavante Gino Orlando. Eles formariam o miolo do ataque com outros argentinos em 1953. O primeiro sucessor de Moreno na meia-esquerda também não teve êxito, embora fosse um astro: Rinaldo Martino, um dos maiores craques dos anos 40 (e parente distante, por sinal, de um dos derrotados há 25 anos: Gerardo Tata Martino). Havia sido bi na Copa América em 1945 e 1946, em meio à talentosa geração ocultada pela Segunda Guerra.
El Mamucho Martino era o segundo maior artilheiro do San Lorenzo, defendera também a Juventus e a seleção italiana e tivera boa passagem ainda pelo Nacional uruguaio. Esperado como um novo Sastre, o veterano não agradou no Torneio Rio-São Paulo e não teve o contrato-teste prolongado. Já sem Martino, o São Paulo foi campeão estadual de 1953 com outro argentino veterano na meia-esquerda: Juan José Negri, que vinha do Juventus da Mooca após passos prévios por Estudiantes (pelo qual esteve uma vez na seleção, em 1943), Boca e River. Albella e Negri marcaram no 3-1 do jogo do título, contra o Santos, já em janeiro de 1954. O técnico também era argentino: Alejandro Galán, ex-boxeador mais conhecido pelo codinome Jim Lopes, que já havia treinado Ponzinibio e os demais dissidentes do Estudantes-SP nos anos 30. O ano de 1953 foi justamente o recordista de estrangeiros (e de argentinos) no São Paulo até 2016. E isso porque outro hermano presente no elenco sequer jogou, o atacante Eduardo Di Loreto, campeão da segundona argentina de 1951 com o Rosario Central.
Por outro lado, os nomes seguintes não agradaram e duraram pouco. O cordobês Alfredo Runzer (não Runtzer), artilheiro no Newell’s e no Atlanta, passou só três semanas em 1954, após deixar o Ferro Carril Oeste em 1952 rumo inicialmente ao Ipiranga. O ano de 1956 teve o atacante Gregorio Beraza, que vinha do Platense, rebaixado pela primeira vez na sua história; e o goleiro Luis Bonelli, uma resposta a uma má fase de Poy. Bonelli vinha do Comercial. Considerado um dos cem maiores ídolos lá (vide livro do centenário comercialino, de Igor Ramos) e do Gimnasia y Esgrima de Mendoza, seu ex-clube argentino, El Loco Bonelli começou bem no Tricolor. Mas foi acusado de entregar o título de 1956, logo voltando a Ribeirão Preto. Seriam necessários dez anos para um novo argentino, que não ajudou muito. Pedro Prospitti, campeão com a seleção da Copa das Nações em 1964, era uma meia considerado talentoso, o que o fez passar por vários clubes fortes – Estudiantes, San Lorenzo, Nacional, Independiente (onde venceu a Libertadores de 1964, a primeira argentina) e River.
Mas Prospitti também tinha fama de pouco responsável. Vindo do River, não durou dois meses no Morumbi em 1966. E sua vida não durou além de 45 anos. Desde então, os hermanos, outrora obrigatórios nos clubes brasileiros em tempos de Platinismo, previamente às conquistas canarinhas na Copa do Mundo, rarearam. Apenas nos anos 90 outro nativo da Argentina viria ao São Paulo: o volante Gustavo Matosas, que defendia a seleção do Uruguai, terra de seu pai (Roberto Matosas, ídolo do River nos anos 60). Formado no Peñarol, Gustavo vinha de passagens na terra natal por San Lorenzo e Racing. Chegou após a Libertadores de 1993. Semanas depois, quase o clube foi campeão continental de novo, na Copa Ouro. Matosas marcou na final com o Boca e foi titular na pré-temporada, mas não se firmou. Saiu para a Espanha no meio do Brasileirão, ainda antes do Mundial contra o Milan. Desconsiderando-se Matosas, o argentino seguinte foi o zagueiro Horacio Ameli.
Ameli, curiosamente torcedor do Newell’s, chegou em 2002 após título gaúcho com o Internacional, que não ganhava havia cinco anos. Era capitão do ótimo 2001 do San Lorenzo do técnico Manuel Pellegrini, com títulos na Copa Mercosul, sobre o Flamengo (primeira taça continental cuerva); e no Clausura, com recorde de pontuação nos torneios curtos (47) no embalo de outro recorde, o de vitórias seguidas (13). No Morumbi, porém, foi no máximo um folclore. Expulso em dois de seus primeiros três jogos, a maior alegria que deu à torcida foi participar da eliminação corintiana na Libertadores de 2003, já pelo River (onde reencontrou Pellegrini), ainda que em 2002 tenha integrado a melhor campanha da primeira fase do último Brasileirão pré-pontos corridos. Sua carreira estagnou em 2005: como uma espécie de Icardi da época, descobriu-se que mantinha caso com a esposa de Eduardo Tuzzio, sua dupla de zaga no River e no San Lorenzo.
Ex-colega de Ameli no San Lorenzo, Hernán González foi reconhecido pelo próprio dicionário sanlorencista como dono de mais vontade do que talento, mas foi contratado pelo Tricolor em 2009. Só jogou sete vezes. Os seguintes padeceram de fragilidade física, casos do promissor meia Marcelo Cañete (da boa Universidad Católica da Libertadores de 2011, foi sucessivamente emprestado entre 2011-15) e do já decadente Clemente Rodríguez, de apenas três partidas entre 2013-15, sem lembrar ter sido um dos maiores laterais da história do Boca. Já Ricardo Centurión foi outro vaiado, recuperando em 2016 no Boca um pouco da bola que fizera os são-paulinos, no início de 2015, o adquirirem do Racing recém-campeão argentino após treze anos.
Ainda no Morumbi na Libertadores de 2016, Centurión esteve no ano mais gringo do São Paulo, superando 1953. O técnico era Edgardo Bauza, contratado no fim de 2015 credenciado por tirar o San Lorenzo da virgindade na Libertadores. Em janeiro, veio do Boca campeão da copa e campeonato argentinos o atacante Jonathan Calleri. Juntaram-se ao uruguaio Diego Lugano, ao chileno Eugenio Mena e ao colombiano Wilder Guisao. Calleri foi o que melhor vingou: artilheiro e semifinalista da Libertadores, desempenho coroado com a convocação à seleção olímpica e transferência à Premier League. A falta de títulos não impediu que El Patón Bauza minorasse uma das piores crises técnicas vividas no Morumbi, reconhecimento que valeu o convite à mal sucedida passagem pela seleção.
O ano de 2016 terminou com novos hermanos, o esforçado lateral-direito Julio Buffarini (outro do San Lorenzo campeão da Libertadores de 2014) e o mal aproveitado atacante Andrés Chávez, ex-reserva de Calleri no Boca após ser goleador do Banfield campeão da segundona de 2014. Buffarini tornou-se o primeiro são-paulino convocado à seleção argentina principal, já treinada por Bauza, embora não tenha entrado em campo. Já o primeiro a efetivamente defender a Albiceleste principal importado do Morumbi foi o reforço para 2017, o atacante Lucas Pratto, já renomado no Brasil no Atlético Mineiro após ser lapidado na última boa fase do Vélez. E que já conquistou, ao menos, a braçadeira de capitão que vestia Raí há 25 anos…
Gols argentinos nos clássicos: Sastre (3-3 e derrota de 2-1 com o Palmeiras em 1944; 9-1 e 1-0 no Santos em 1944 e 4-0 em 1945; 4-4 e 3-2 com o Corinthians em 1945), Renganeschi (1-0 no Palmeiras na final de 1946), Bovio (2-2 com o Palmeiras em 1950; dois no 2-1 no Corinthians em 1950), Albella (derrota de 2-1 em 1952 e dois no 3-1 no Santos em 1953; 1-1 e 2-1 no Palmeiras em 1952 e 3-1 em 1953; na derrota de 3-2 para o Corinthians em 1953), Negri (3-1 no Corinthians em 1954; 1-1 com o Palmeiras em 1955), Matosas (1-1 com o Corinthians em 1993), Chávez (4-0 no Corinthians em 2016; derrota de 2-1 para o Palmeiras em 2016) e Pratto (dois no 2-0 no Palmeiras em 2017).
Antes do fechamento da matéria, notícias relacionavam o São Paulo a mais duas contratações de argentinos: o volante Lucio Compagnucci, do Huracán, e o meia flamenguista Federico Mancuello, ex-Independiente e seleção. Abaixo, outras notas relacionadas ao Tricolor:
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