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Noite do Futebol em Catamarca, ou “Por que vale a pena torcer por um time pequeno”

René Houseman em casa, com a blusa do Huracán e o boné do Excursionistas

Uma noite daquelas para o futebol ocorreu ontem, pela Copa Argentina de futebol, em Catamarca. De um lado o Huracán de Parque Patrícios, recém-rebaixado à B Nacional, mas carregado de história; de outro o desconhecido Excursionistas de Bajo Belgrano, uma equipe da Primeira C, cujo o grande adversário é o Defensores de Belgrano, rival de bairro. No meio dos dois um nome: René Houseman. Na disputa, também uma taça que levava seu nome. Na arquibancada um coração que pulsava e que sofria. E que pendia para o pequeno Excursio, um clube com 102 anos de vida.

René Orlando Houseman, ou simplesmente “el Loco Houseman” foi um dos ídolos do Huracán, pelo qual foi campão do Metropolitano de 1973, e também do pequeno Excursio, clube pelo qual se retirou do futebol em 1985. Dividido entre as duas paixões, o ex-jogador não teve dúvidas em declarar sua torcida pelos Verdiblancos, no confronto em que, por um acordo entre as duas instituições se disputaram uma taça que levava o seu nome. El Loco viajou 1.180 km em um dos ônibus que levaram 600 apaixonados de Bajo Belgrano à província de Catamarca. Ficou na arquibancada e sofreu. Gritou, se desesperou e, por essas intervenções do Desconhecido, não sofreu um ataque cardíaco no estádio Bicentenário de Catamarca. Esse foi apenas mais um capítulo de uma história de vida cheia de fatos marcantes e inusitados.

A expressão “louco é pouco” define bem a trajetória de Houseman no futebol. Driblador de primeira categoria, veloz e inteligente dentro de campo, o jogador brilhou na década de 70, quando se tornou um dos maiores ídolos do Huracán. Mas, ao mesmo tempo em que encantava a hinchada com uma performance estrelar, o atleta mantinha uma intimidade tal com o alcoolismo que por algumas vezes atuou completamente bêbado com a camisa do clube. Além disso, fugia das concentrações, desentendia-se com os treinadores por causa dos esquemas táticos. Falava, questionava e explodia todas as vezes que achava que devia.

Porém, pessoa alguma jamais pode reclamar de seu caráter. Protagonizou um fato raro no futebol. Após a Copa do Mundo de 78, em meio às comemorações que tomavam o país, fez questão de pedir perdão ao povo argentino por considerar que sua participação no Mundial havia deixado a desejar. Em 1985, já no fim de carreira, fez questão de encerrar sua história no futebol atuando com a camisa do amado Excrusionistas de Bajo Belgrano. Era uma forma de compensar o fato de ter aceitado, décadas antes, a oportunidade do rival Defensores para se tornar um jogador profissional de futebol.

Houseman comemora único título do Globo em 1973

Antes de tudo isso, quando ainda era uma criança, atacou várias vezes os supermercados do bairro por causa da fome. Fato que não nega. Seu pai vivia entre uma cadeira e uma cama, vítima de inúmeras doenças, como a debilidade mental, derrames, a perda de mobilidade do corpo e, por fim, um câncer agressivo que o levou à morte. Sua mãe assegurou com muito custo que ele terminasse o primeiro grau. Mas também dona Letícia morreria de câncer tempos depois. Doença que faz Houseman ter enorme medo da morte. Entre a paranoia e a realidade, o fato é que o ex-jogador do Globo tem pesadelos quase diários com a morte e manifesta a convicção de que ela será pelo câncer.

Depois de enfrentar os Diabos para ser livrar do Alcoolismo, que o acometeu principalmente depois de encerrar a carreira, hoje Houseman é um homem simples. Uma pessoa cuja maior diversão é a de passear pelo bairro de tarde, assistir TV e ir à cancha do Excursio nos sábados, acompanhar a equipe na Primeira C.

A noite de quarta-feira será inesquecível na vida de el Loco. “Huracán foi o clube que de fato me apresentou para o futebol, porém o meu time do coração sempre foi o Excursionistas. Minha casa é o Excursionistas, ainda que devo admitir que essa partida contra o Globo foi a mais difícil de minha vida”, disse o ex-atleta que viveu toda sua vida no bairro, que além do Excursio tem ainda o Defensores e o River Plate. Durante o duelo, ele pode ver los Verdiblancos atuarem curiosamente como um time grande.

Talvez inspirados na imagem do que foi o jogador na década de 70, os atletas do Excrusio fizeram uma partida brilhante. Propuseram o jogo, atacaram e buscaram a vitória. Mesmo tendo eliminado os dois adversários anteriores por pênaltis, em nenhum momento o Excursio tentou levar a disputa para essa forma de decisão. Então Houseman sofria com os ataques do Excrusio e sofria com os ataques e contra-ataque do Globo. E a bola não entrava. Quando o árbitro Germán Bermúdez apitou o final de jogo, restava a lembrança do que fizera o arqueiro Fassanella, o grande herói da equipe nesta Copa Argentina (na eliminatória anterior, diante do Argentino de Merlo, o arqueiro defendeu quatro pênaltis, um deles no tempo normal). Mas será que o arqueiro salvaria novamente?

Nas disputas, as câmeras focavam Houseman desesperado a cada cobrança. O arqueiro Marcos Fassanella dava todos os sinais de que pegaria algum dos penais. Pegou o terceiro, para a festa do ilustre convidado nas arquibancadas. O próprio Fassanella foi para a quarta cobrança. Bateu bem, mas o porteiro do Globo, voando para o canto direito, interceptou a cobrança com a perna esquerda. Estava eliminada a vantagem dos Verdiblancos, para o desespero de Houseman. O Huracán foi lá e fez: 3×3. Novamente o Excursio passou à frente. Na quinta cobrança dos quemeros, novamente o porteiro defendeu e deu números finais ao placar: 4×3.

A comemoração era geral nas arquibancadas. Crianças e velhos choravam. No choro deles é possível compreender a difícil missão de ser um hincha de um time pequeno, centenário e com poucas glórias. Esse sentimento, estava na criança René Houseman, quando ele corria descalço na lama que vizinhava o clube do coração, quando chovia. A mesma alegria que estava nas crianças nas arquibancadas, nos velhos e nele próprio, René Houseman, na grande noite do Futebol em San Fernando del Valle de Catamarca. Para aqueles que ainda torcem o nariz para a Copa Argentina, ela já valeu a pena somente por proporcionar esse tipo de alegria. A mais genuína: a satisfação de um “simples” triunfo que para alguns não vale menos que um título.

Joza Novalis

Mestre em Teoria Literária e Lit. Comparada na USP. Formado em Educação e Letras pela USP, é jornalista por opção e divide o tempo vendo futebol em geral e estudando o esporte bretão, especialmente o da Argentina. Entende futebol como um fenômeno popular e das torcidas. Já colaborou com diversos veículos esportivos.

15 thoughts on “Noite do Futebol em Catamarca, ou “Por que vale a pena torcer por um time pequeno”

  • Wilson

    Grande matéria. Realmente emocionante. Mas eu tenho uma dúvida sobre a foto da comemoração. è mesmo o Houseman que está nela? Não é nem um pouco pareciso. Me parece que não é o mesmo.

  • Joza Novalis

    Meu caro Wilson, tudo bom? O Houseman é o segundo da foto, repare. Obrigado pelo prestígio ao site. Um abraço.

  • Tiago de Melo Gomes

    Mais uma ótima materia. O curioso nisso tudo é que ele foi revelado pelo Defensores de Belgrano, de onde foi para o Huracan. E o “Defe” é rival do Excursionistas.

  • Tiago de Melo Gomes

    E se nao me engano o primeiro da foto, antes do Loco, é o Francisco “Fatiga” Russo

  • Alexandro Ventura

    Concordo com o Wilson, fiquei emocionado.

  • Dedóia

    E quanto louco no futebol argentino. Esse era mais um que eu não conhecia. Se a gente olhar bem até hoje parece que o velhinho Houseman tem a cara de pessoa que não leva desaforo. O final do texto diz tudo: só uma alegria dessas já vale a organização da copa argentina.

  • Wilson

    Fui atrás das fotos do houseman e encontrei algumas em que ele tava com esse Francisco fatiga Russo. É ele mesmo o primeiro da foto da comemoração.

  • Prado

    Fiquei pensando na dupla dificuldade desse jogador ao abandonar o futebol. Ter de lidar com a ausência dos campos e com a guerra contra o alcoolismo. é difícil até de imaginar. Valeu pelo texto galera,muito bacana.

  • Márcio Pereira

    Que baita texto! Fico cada vez mais fã desse site.

  • Caio Brandão

    Houseman ainda teria declarado que não jogaria a Copa de 78 se soubesse na época o que ela estava abafando… li isso em uma FourFourTwo.

    Textaço, Joza. Como sempre!

  • Mauri

    Interessante, mas é muito triste ver um cracaço ter no fim da vida essa vida simples, sem nenhuma regalia. Imagina então os jogadores sem muito sucesso? Eu achei legal pegar os fatos da vida do ex jogador e também o momento dele na arquibancada, parecia uma continuidade.

  • Eduardo Marini

    É amigos, gostar de futebol é muito bom.
    Mas ter paixão por um time pequeno é maravilhoso. Poucos entendem quando um torcedor destes times vibram por uma unica vitoria no campeonato, choram quando o clube consegue “simplesmente” escapar do rebaixamento. É, não é para qualquer um ter este sentimento. Só os puros, sensiveis e idealistas conseguem. Aqui no Brasil, em São Paulo especificamente, tento fazer um pouco disto torcendo pelos pequenos Nacional A.C. (4a divisão), C.A. Juventus (3a. divisão), C.A. Ypiranga (só social), A.A. Portuguesa santista (4a. divisão), Comercial F.C. da capital (já extinto) e por ultimo o meu querido Jabaquara A.C. (4a. divisão) da cidade de Santos. O Jabuca está próximo de fazer cem anos (2014), não teve tantas glorias nestes anos todos, (talvez a vitoria de 6×3 contra o poderoso Santos F.C. de Pelé seja uma delas) mas nunca deixou de lutar. Como disse Miguel Arcanjo Terra em sua cronica inolvidavel do Jabaquara….”passou pelos campos com uma fragilidade inalcançavel pelo sarcasmo dos que criam infernos astrais. Era perm

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