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No centenário de Evita Perón, relembre sua influência no futebol

Madonna em cena do filme Evita: a primeira-dama realmente promovia torneios infantis de futebol

Em 26 de julho de 1952, a Argentina “foi às ruas” e os hermanos “foram capa de todos os jornais do mundo” em função “da morte de uma atriz chamada Eva Perón”, “que decepcionou seu povo”: afinal, “esperava-se dela que fosse imortal”, pois “era o que queriam e não era pedir muito” – para usarmos os versos traduzidos de “Oh What a Circus”, uma das canções do musical Evita. Sua figura não deixou de se atrelar no futebol, desde o fomento de torneios infantis à inclusão política de clubes interioranos nos principais campeonatos e até na mudança de nome nos rivais Estudiantes e Gimnasia LP. No dia em que a mais famosa primeira-dama do país faria cem anos, vale revisar este outro Especial, publicado em 2017.

As histórias futebolísticas envolvendo a “mãe dos descamisados” de fato são no sentido de alguém que agia em prol dos times humildes. Um exemplo está no futebol de Santa Fe. O campeonato argentino, apesar do nome, era restrito à Grande Buenos Aires e La Plata até 1939, quando admitiu a dupla rosarina Newell’s e Rosario Central, até então restritos ao campeonato municipal de Rosario. Em 1940, foi a vez do Unión, similarmente limitado ao campeonato municipal santafesino, ser contemplado com um lugar na segunda divisão “argentina”. Historicamente associado à classe alta de Santa Fe, o Tatengue só veio a receber a companhia do rival Colón (estereotipado como clube operário) em 1948, com Evita envolvendo-se na causa do Sabalero a ponto de dar seu nome ao estádio colonista até 1955, quando um golpe de Estado derrubou o governo de Perón. A cancha foi então renomeada em homenagem a um caudilho do século XIX, o Brigadeiro-General Estanislao López, embora desde os anos 60 seja mais conhecida pelo apelido “Cemitério de Elefantes”.

O campeonato “argentino” era tão exclusivo que mesmo cidades da província de Buenos Aires que se situassem distantes da região metropolitana da capital federal não eram admitidas. Era o caso do município de Junín, onde Evita crescera. Uma última homenagem futebolística em vida à primeira dama veio em 1951, com a inclusão do Sarmiento, também na segunda divisão; naquele mesmo ano de 1951, a primeira-dama também não teria escondido preferir o pequeno Banfield como campeão na final travada contra o gigante Racing. Já a homenagem póstuma que mais repercutiu no futebol foi renomear La Plata como Ciudad Eva Perón. Isso ocorreu nos dias seguintes ao falecimento, no circo de culto à personalidade, como ironizado pelo personagem de Antonio Banderas na citada “Oh What a Circus” (veja no vídeo ao fim).

O Estudiantes e o Gimnasia passaram a ser da Cidade Eva Perón, nome de La Plata entre 1952-55. Viraram o “Estudiantes de Eva Perón” e o “Gimnasia y Esgrima Eva Perón”

A mudança afetou a dupla futebolística platense. O Estudiantes de La Plata virou “Estudiantes de Eva Perón”, assim como o Gimnasia y Esgrima La Plata virou “Gimnasia y Esgrima Eva Perón”. O Estudiantes se deu mal. Alinhava-se com a oposição: um mês antes da morte de Evita, o Pincha havia sido alvo de protestos por não distribuir os dois mil exemplares que recebera do livro autobiográfico dela, Razón de mi Vida. Sofreu intervenção governamental e seus melhores jogadores foram embora, como os artilheiros Pellegrina e Ricardo Infante. Com a sigla “E. de E.P.” no distintivo ao invés da clássica “E. de L.P.”, os alvirrubros sofreram no ano seguinte seu primeiro rebaixamento. Já o Gimnasia, com a nova denominação, fez o caminho inverso, vencendo a segunda divisão daquele 1952.

Juan Domingo Perón precisou exilar-se na Espanha em 1955, ano em que foi tirado da Casa Rosada sob bombardeios, até poder regressar à terra natal em 1972. Afinal, o casal Perón tinha boas relações com esse país (o filme Evita também retrata o grande sucesso da visita da primeira-dama na Espanha), a ponto de haver uma “Copa Eva Duarte” a ser decidida o campeão espanhol e da Copa do Rei, tal como a Supercopa faz hoje. Duarte era o sobrenome de solteira de Eva Perón. Um dos militares em serviço na queda de Perón era o jovem Humberto Maschio, depois jogador das seleções argentina e italiana e campeão da Libertadores como jogador do Racing e técnico do Independiente: lembrou em 2011 que “estava fazendo o serviço militar com o General [Juan José] Valle, um cara extraordinário, torcedor do Racing, a quem um ano depois fuzilaram. Me propôs trabalhar no Ministério da Guerra, ao lado da Casa Rosada. Ao meio-dia, saía. No dia do bombardeio, estava lavando as mãos para ir embora e vibrou todo o edifício. Saí correndo para ver o que acontecia. E estavam bombardeando: nessa manhã, Perón estava no edifício. Ainda se veem as marcas em frente ao Ministério. Às 4 da tarde se acalmou e pude sair por trás. Renunciei. Não voltei mais”.

Na Argentina, resquícios do peronismo foram imediatamente suprimidos inclusive no esporte. A seleção de basquete campeã da primeira Copa do Mundo, em 1950, foi desmanchada e seus jogadores, boicotados; a delegação olímpica foi reduzida de 134 pessoas em 1952 para 37 em 1956, suprimindo o corredor Osvaldo Suárez, três vezes campeão da São Silvestre (“me tiraram a possibilidade de ser campeão olímpico. Estava fazendo em 2h23 e me proibiram de ir faltando cinco dias. Teria triunfado porque estava terminando dois minutos a menos que o que ganhou. Sofri e no dia de hoje sigo sentindo. Foi uma ferida muito profunda”).

Um pontapé inicial da Evita real, ao lado do marido Juan Domingo (à direita, de terno claro). Esta foto está em painel do museu dedicado à ex-primeira-dama, no bairro de Palermo

No futebol, por sua vez, La Plata voltou a ser La Plata. O que não acabou foram os chamados Torneos Evita. Quem já assistiu o filme estrelado por Madonna talvez não tenha notado a sequência que mostra a imagem que abre a matéria, em cena de fato bastante rápida. Mas que reproduz atos verídicos: a mais famosa primeira-dama argentina (talvez, do mundo) chegou a emprestar sua alcunha a torneios infantis de futebol. Que chegaram ser jogados por um Maradona pré-adolescente.

José Sanfilippo, o maior artilheiro da história do San Lorenzo e que passou no Brasil por Bangu e Bahia, também participou. Ali, chegou a ser colega do jornalista Enrique Macaya Márquez, mais ou menos a versão argentina de Léo Baptista. Ele cobriu todas as Copas do Mundo desde a de 1958 e, indagado sobre o que o Torneo Evita representava, declarou que “para mim, foi entrar em um campo de verdade, com traves e gramado, porque na várzea não existia o gramado, era vestir-se com uniforme, ser um mini jogador. Também te dava a chance de detectar doenças, porque se fazia uma revisão médica”. 

Dentre outros argentinos presentes em Copas do Mundo, jogadores de épocas díspares como o lateral Silvio Marzolini (eleito o melhor de sua posição no mundial de 1966) e o zagueiro Pedro Monzón (mais lembrado pela primeira expulsão em uma final, em 1990) também jogaram a competição. Assim como Jorge Griffa, ex-beque do Newell’s e do Atlético de Madrid nos anos 50 e 60 posteriormente celebrizado como olheiro de sucesso a captar diversas revelações do Newell’s na virada dos anos 80 para os 90, e depois do Boca desde meados dos anos 90.

Súmula de um Torneo Evita com os “Cebollitas” do Argentinos Jrs, incluindo Maradona. À direita, Jorge Griffa orgulhoso com a camisa usada na competição

A influência do casal Perón, para estudiosos, se impregnou até mesmo no estilo tático do futebol argentino, conforme explicado pelo saudosíssimo colega Tiago de Melo Gomes em diversas notas. Clique abaixo para conferir:

Peronismo futebolístico

Peronismo de arquibancada

O país da política e do futebol

Menottismo x Bilardismo: duas escolas de futebol argentino (I)

Menottismo x Bilardismo: duas escolas de futebol argentino (II)

Boca em 1952, com tarjas pretas em luto por Evita. À direita, ela ainda subcelebridade como atriz e com cabelos naturais pretos, ao lado do ex-vascaíno Bernardo Gandulla
Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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