Gustavo Costas costuma ser referido como o recordista de jogos pelo Racing, tendo somando 337. Foi descrito nesse sentido pela edição especial que a El Gráfico lançou em 2011 ao escolher os cem maiores ídolos do Racing. Naquela época, ainda era incomum a grande mídia desvalorizar o amadorismo, que permeou a maior parte da carreira do real dono da marca: Natalio Perinetti, mesmo que esse ponta já fosse remunerado bem antes do profissionalismo escancarado aparecer em 1931 – a ponto de dar-se ao luxo até de recusar o Real Madrid. Único jogador do recordista hepta argentino seguido logrado pela Academia nos anos 10 a defender a Argentina em uma Copa do Mundo, La Maquinita deixava o mundo há 35 anos.
Ele chegou ao Racing apenas como o “irmão de Juan Nelusco Perinetti”, mas deixaria o clube já sendo a maior referência familiar. É que Juan defendia o clube desde a infância de Natalio, nascido em 28 de dezembro de 1900 na capital federal: Juan integrou o elenco que subiu à elite em 1910 e permaneceria ao longo de todo o hepta assegurado entre 1913 e 1919 antes de dedicar-se somente ao Talleres da cidade de Remedios de Escalada, do qual era um dos fundadores. Natalio, por sua vez, foi admitido nos juvenis em 1915. Foi promovido ao time adulto quando ainda tinha 16 anos, em 1917, para suprir a lacuna do ponta-direita Zoilo Canavery, que deixou o clube após duas temporadas para defender o Boca.
Além de Natalio, também foi promovido dos juvenis o meia Pedro Ochoa, com quem formaria uma sólida dupla no flanco direito do ataque, mesmo que ambos não fossem pessoalmente os melhores amigos. O Racing foi campeão com certa folga; o vice River ficou 5 pontos atrás do agora pentacampeão, que só sofreu 4 gols (todos como visitante) em 20 jogos. Ainda assim, o garoto teve o que aprender – Alberto Ohaco, ainda o maior artilheiro racinguista e também remanescente do acesso em 1910, tratou de dar-lhe um puxão de orelha quando viu o novato protestar contra a arbitragem. Ohaco o ensinou que jamais deveria esquecer que vestia as cores do Racing e, com isso, a ordem era perseverar.
A lição ficou: Perinetti foi reconhecido como um dos mais cavalheiros jogadores de seu tempo, inclusive clamando em 1921 que “deve lutar-se para que a tranquilidade não se altere no estádio, já que se Racing e Independiente são adversários no field, mantém foram do mesmo uma cordial amizade que não deve quebrar-se”. Em outro episódio, em plena estreia oficial do time no profissionalismo, no 5-1 sobre o Platense em 1931, puniu sua própria equipe ao, como capitão, ordenar a expulsão do colega Pedro Pompey após este desentender-se com Fernando Paternoster. O título de 1917, por sua vez, seria ratificado duas vezes: em janeiro de 1918, os dois irmãos Perinetti marcaram em um 3-2 sobre o Rosario Central pela Copa Ibarguren, um tira-teima para apontar moralmente o melhor time do país, opondo o campeão da liga rosarina contra o campeão do torneio “argentino” (que, apesar do nome, só admitia equipes da Grande Buenos Aires e La Plata).
Já em julho de 1918, a dupla ergueu a Copa Aldao, por sua vez o tira-teima entre os campeões argentino e uruguaio para apontar o melhor quadro do Rio da Prata. Na ocasião, o batido foi o Nacional, por 2-1, antes do Racing emendar o hexacampeonato com rodadas e rodadas de antecedência, ainda em outubro – evitando maiores discussões quanto à possibilidade de cancelamento do torneio, como ocorreu com a Copa América, diante de outra pandemia, a da gripe espanhola. Pudera: o título foi invicto (17 vitórias e 2 empates), com o bivice River ficando simplesmente onze pontos atrás – ressaltando novamente, na época a vitória só valia 2 pontos. Ainda em novembro, foi possível vencer novamente a Copa Ibarguren sobre o campeão rosarino. O Newell’s foi massacrado por 4-0.
A Copa Aldao, por sua vez, ficou para janeiro de 1919, sem variar o campeão: Racing 2-1 Peñarol. Naquele ano, um cisma separou os principais clubes argentinos se separaram. A associação reconhecida pela FIFA esvaziou-se, tendo em Boca e Huracán como clubes mais proeminentes a permanecerem. Os jogos de até então foram todos anulados e cada liga reiniciou do zero o seu campeonato: no “oficial”, o Boca foi inclusive campeão argentino pela primeira vez, já adentrando no ano de 1920. Já o Racing pôde recuperar o terreno no seu campeonato, vencendo nada menos que todas as suas treze partidas, desenroladas a partir de setembro. As duas ligas se reunificariam em 1926, convalidando o caráter oficial do torneio que rendeu o hepta à Academia.
O que não foi convalidado foram os jogos que Perinetti fez pela seleção da liga “pirata”. Começou com um 2-0 sobre a seleção rosarina em 12 de outubro de 1920. O octa não veio, com o River enfim revertendo os seguidos vices para ser campeão pela primeira vez, mas o ponta pôde vencer o nascente campeonato argentino de seleções regionais (bastante prestigiado ao longo da nova década), defendendo a da capital na final contra Rosario. Em 1921, veio o oitavo título argentino do Racing, assegurado em 3-0 sobre o River. Perinetti deixou o dele, em campanha notável: 30 vitórias e só duas derrotas em 38 jogos, com 76 gols a favor e 16 contra. Em paralelo, foi bicampeão do torneio de seleções, marcando no 5-0 na semifinal sobre Tucumán. Porém, diante do caráter ainda não-oficial da sua liga, não foi chamado para a primeira conquista da seleção na Copa América.
O ano de 1922 já viu o Racing sair pela primeira vez em dez anos do páreo pelo título; ficou em 4º, a oito pontos do vizinho Independiente, campeão pela primeira vez. O 4º repetiu-se em 1923, a seis pontos do San Lorenzo campeão pela primeira vez. Mas foi o ano em que Perinetti pôde reaparecer pela seleção argentina não-oficial; deixou o dele em um 6-0 no Chile e participou de derrota de 3-2 para o Uruguai, ambos em dezembro. Em 1924, La Acadé já caiu para 6º, a nove pontos do bi San Lorenzo. Perinetti, por sua vez, defendeu três vezes a seleção não-oficial: 0-0, 3-2 e 0-1 em clássicos com o Uruguai. No ano de 1925, o Racing voltou a ser campeão, mas sem maior participação do ídolo, que recuperou-se de lesão em boa parte do torneio. Ainda antes de machucar-se, deixou dois gols em um 10-0 sobre Mar del Plata pela seleção do conurbano da capital no torneio de seleções.
O Racing foi 4º em 1926, a doze pontos do Independiente, e caiu para 7º no torneio de 1927, sua pior colocação histórica até então – no torneio que marcou a reunificação das ligas. Por outro lado, a Academia bateu naquele ano o Real Madrid por 2-0. Os espanhóis, em excursão pelas Américas, já haviam derrotado por 2-1 o Boca e saído do Uruguai com um 0-0 contra o Peñarol. Perinetti não marcou gols, mas foi a figura do jogo e interessou os forasteiros, que já haviam abraçado abertamente o profissionalismo. A ajuda de custo que o Racing proporcionava à estrela lhe bastava para negar a oferta de Santiago Bernabéu. O ponta foi ainda campeão do torneio de seleções, pela seleção da região metropolitana, a eliminar de cara a da capital logo no primeiro mata-mata.
Com a unificação das ligas, Perinetti, mesmo ausente da Copa América de 1927, foi chamado para as Olimpíadas de Amsterdã. Esteve na estreia argentina em solo europeu, em 0-0 contra Portugal em Lisboa, onde perdeu pênalti em 1º de abril. Três dias depois, até marcou gol em 2-0 não-oficial contra um combinado madrilenho, mas não seria usado nos Jogos; ele nunca escondeu essa insatisfação, atribuindo ter perdido a concorrência com Alfredo Carricaberry na ponta-direita mais pelo fato de que o delegado enviado era do mesmo San Lorenzo onde Carricaberry jogava. Por outro lado, Perinetti, embora convocado, também não esteve em nenhuma partida da vitoriosa Copa América de 1929, agora na reserva de Carlos Peucelle. Seu Racing fora 5º em 1928 e depois terminaria em 4º no grupo em que participou do torneio de 1929, a quatro pontos do líder e logo campeão Gimnasia LP.
Em 1930, Perinetti reapareceu em campo pela Argentina após dois anos, primeiramente em 1-1 contra o Uruguai pelo troféu binacional Copa Newton, no feriado de 25 de maio. O outro jogo foi na estreia mundialista da Albiceleste, no 1-0 sobre a França. O técnico era Francisco Olázar, outrora seu colega naquele Racing heptacampeão, mas que não teve clubismos em promover Peucelle de volta para os jogos seguintes. O triunfo sobre os Bleus acabou por ser a aparição final de Perinetti pela seleção. Em parte, porque após o torneio de 1930 (onde o Racing foi 6º, a doze pontos do Boca), houve um novo cisma onde, mais uma vez, os principais clubes debandaram da associação oficial para a FIFA.
Os times rebeldes criaram em 1931 um torneio abertamente profissional. O Racing foi 5º, a sete pontos do Boca. Na edição de 1932, a Academia enfim voltou a estar verdadeiramente no páreo pela primeira vez desde 1925; terminou somente um ponto atrás dos líderes River e Independiente – mesmo que já não houvesse mais a parceria de Perinetti com Ochoa, que despedira-se no ano anterior. O veterano lamentaria: “quando estava Pedro Ochoa, eu entrava em jogo seguidamente porque Ochoíta era um insider que jogava para o seu wing“, explicava, para então mencionar um causo em La Plata: “a bola não me chegava nunca e tomei a decisão: ‘se não me passam-na, saio do campo…’. Comecei a caminhar pela linha, até o túnel. Ia terminando o primeiro tempo. Nesse momento, me atiraram uma bola. Com toda a bronca que tinha adentro, lhe dei um voleio. Queria atira-la a qualquer lado e a meti no arco pelo ângulo”.
“Eu, que nunca chutava a gol, porque minha missão era chegar ao fundo e colocar o cruzamento, havia marcado um golaço. Segui caminhando sem festeja-lo, baixei os degraus, cheguei ao vestiário e comecei a me trocar. Quando chegaram meus companheiros, lhes custou muitíssimo me convencer para que fosse jogar o segundo tempo…”. Perinetti, de fato, nunca foi considerado um goleador, ainda que tenha somado 103 gols pelo Racing – números que faziam dele o terceiro maior artilheiro da história do time quando parou de jogar, atrás dos ex-colegas Ohaco (202) e Alberto Marcovecchio (187). Como mesmo dizia, sua missão era fornecer os cruzamentos para outros marcarem, não se inibindo de malabarismos pela ponta. A tarefa era facilitada pela falta de costume dos goleiros saírem da pequena área, a ponto de nos anos 40 já houver quem dissesse que o estilo de Perinetti para cruzar já estaria antiquado.
Ele depois foi ultrapassado em gols no clube por Llamil Simes (106), Juan José Pizzuti (118) e Evaristo Barrera (136), que reforçou o Racing na pós-temporada de 1932, na qual a Academia pôde faturar a Copa Beccar Varela, torneio oficial que a grosso modo equivalia na época ao papel que a Copa da Superliga tem atualmente. Perinetti tornou-se assim o único jogador campeão pelo clube em três décadas diferentes. No torneio de 1933, dois pontos separaram o Racing do campeão San Lorenzo. O ídolo entrou em choque com a diretoria e, mesmo veterano, foi cobiçado por diversos outros clubes. Após meses de inatividade, reforçou o River, sinal de prestígio: o clube, ainda pouco popular, vinha se dedicando a chamar atenção contratando grande estrelas.
Foi com a vinda daquele Peucelle em 1931 que o River foi apelidado de Millonarios, apelido que se reforçou ao quebrar-se em 1932 o recorde mundial de transferências com a incorporação do superartilheiro Bernabé Ferreyra – só a transferência de Neymar para o PSG voltaria a representar um recorde pelo dobro da marca anterior. Em 1933, foi a vez do capitão da seleção de 1930, Manuel Ferreira. Perinetti, porém, não passou de dez jogos pelo seu outro único clube, ainda que registrasse três gols. O River ficou só em 4º, a cinco pontos do campeão Boca. O astro optou por enfim pendurar as chuteiras. Chegou a seguir no futebol como comentarista de rádio no programa Ases del Deporte.
O ponta-direita com o tempo foi se tornando o último ídolo remanescente do período mais dourado do Racing. O artilheiro Albérico Zabaleta morrera ainda em atividade, em 1923. O volante Ángel Betúlar também partiu cedo, em 1938. O parceio Ochoa despediu-se ainda em 1947. Ohaco seguiu-o em 1950. O zagueiro Armando Reyes faleceu em 1954 e o ponta-esquerda Juan Hospital, em 1956, seguidos em 1957 por Juan Perinetti e em 1958 por Olázar. Em 1966, foi a vez do antecessor Zoilo Canavery. Os goleiros Carlos Muttoni e Marcos Croce duraram até 1971 e 1978, respectivamente. Natalio Perinetti viveu para ver seu Racing demorar 24 anos até ser novamente campeão argentino, em 1949 – para, na sequência, engatar até 1951 o primeiro tricampeonato seguido do profissionalismo. Viveu para vê-lo ser o primeiro time do país a ganhar o mundo, em 1967.
Mas o ídolo também viveu para ver a Academia decair profundamente desde então. Nos anos 70, o Independiente passou a somar mais vitórias no clássico exatamente no dérbi seguinte ao do seu próprio título mundial, em 1973. Dez anos depois, o Racing se tornava o segundo gigante argentino a ser rebaixado enquanto o rival era campeão em pleno clássico. Perinetti faleceu na cidade de Remedios de Escalada sendo incapaz de ver a Academia voltar à elite – ela não pôde subir em 1984, derrotada pelo Gimnasia LP no mata-mata pela última vaga enquanto o rival vencia o Mundial. O clube tratou de presentear o ídolo de outra forma, garantindo o reacesso em 27 de dezembro de 1985, exatamente na véspera do que seria o 85º aniversário do recordista ponta.
Naquela El Gráfico que elegeu em 2011 os maiores ídolos racinguistas, Perinetti foi de fato a única figura do amadorismo a figurar na capa, junto a Omar Corbatta, Alfio Basile, Roberto Perfumo, Diego Milito e Rubén Paz. Ele ainda foi relembrado em meio à conquista de 2014, a encerrar jejum de treze anos. O clube concorria contra o River, vencendo o duelo direto graças a um gol contra, em jogo marcado por uma misteriosa sombra que correu pela lateral tal como Perinetti fazia. Trataram de atribuir ao fantasma do mito a autoria moral do gol atribuído na súmula a Ramiro Funes Mori.
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