Darío Conca, em perfeito português em seu twitter, assimilou-se tanto a ponto de brincar na rede social com a possibilidade de rejeição consigo em meio às polêmicas da “quase xará” Karol Conká no último Big Brother. Dos grandes cariocas, só não esteve no Botafogo, e houve quem fosse além: nos anos 40, Alfredo González deixou seus gols por Flamengo, Vasco e Botafogo para depois treinar o último Bangu campeão (também o último estadual a escapar dos quatro grandes) e o Fluminense. Ainda assim, se considera que o argentino mais carioca foi mesmo Narciso Horacio Doval. Ídolo e campeão de Flamengo e Fluminense, El Loco nos deixou há 30 anos – com sua morte em Buenos Aires tendo inclusive ares de acaso geográfico.
O verbete de Doval no Wikipédia foi reformulado por este redator à altura de julho de 2011. A comunidade do site reconheceu oficialmente a qualidade de texto e formatação do artigo, premiando-o com uma estrela de prata. Foi um chamariz para ser convidado ao Futebol Portenho dois meses depois. Em 2014, no texto dedicado aos 70 anos que Doval completaria se ainda vivesse, este mesmo redator preferiu limitar-se a compilar informações descobertas após o trabalho no Wikipédia, para não parecer repetitivo.
Doval voltou a ser um personagem no Futebol Portenho em 3 de outubro 2016, quando completou-se os 45 anos de uma de suas mais famosas exibições em campos argentinos: foi quando o antigo ídolo do San Lorenzo defendeu brevemente o arquirrival Huracán, pelo qual liderou um time instável no Metropolitano de 1971 a uma improvável virada fora de casa sobre o então líder Vélez, propiciando que a taça ficasse com o Independiente – que, a partir daquela conquista, iniciaria o famoso tetracampeonato seguido na Libertadores (1972 a 1975).
Dias depois, nos 25 anos da morte do atacante, o colega Emmanuel do Valle (idealizador do Flamengo Alternativo, voltado aos antigos ídolos e conquistas rubro-negras antes e depois da midiática Era Zico) publicou no Trivela suas próprias palavras sobre a trajetória do craque – que voltou ao Futebol Portenho em 2018, quando o gol de Joel Carli no título estadual botafoguense fez relembrar outros argentinos marcados por gols decisivos em minutos finais do torneio (Doval, pelo Fluminense, protagonizou o de 1976); e em 2020, na lista de argentinos que viraram e então reviraram a casaca no país: o gatilho, por sinal, foi Jorge Jesus, que voltava ao Benfica após ter treinado o Sporting.
Em 2019, estatísticos argentinos já haviam disponibilizado no site Historical Line-Ups as súmulas de todas as partidas da primeira divisão entre 1932 e 1989, abrangendo assim a carreira toda de Doval na Argentina. Seu único jogo em 1962 foi em meio a um curioso ataque com outros jogadores relacionados ao país vizinho: o brasileiro Parobé, ex-colega de Pelé na famigerada seleção militar de gols ultimamente questionados do Rei, e o superartilheiro José Sanfilippo, que viria a defender Bangu e Bahia. O River venceu de 4-1. O Libro de Oro de San Lorenzo, publicado em 2014, revela ainda outra partida, em 3-2 amistoso sobre o Tigre, em 19 de dezembro, com dois gols do próprio Parobé.
Em 1963, Doval ainda foi utilizado apenas três vezes no time azulgrana principal na temporada regular, já conseguindo marcar em seis minutos de reestreia um primeiro gol, em 2-2 na visita ao Vélez pela 10ª rodada – cabeceando em tiro livre cobrado por Juan Carotti. Figurou ainda em alguns amistosos: derrotas fora de casa para Atlético Tucumán (2-1) e os paraguaios do Olimpia (3-1). Veio a chamar atenção a partir da pré-temporada de 1964, com dois golzinhos em três partidas no interior: 3-1 no San Martín de Mendoza e 4-0 na seleção municipal de Necochea.
Depois, veio a Copa Jorge Newbery, envolvendo os sete principais times da Grande Buenos Aires – os cinco grandes somados a Vélez e Huracán, único que Doval não enfrentou. Não marcou gols na campanha vitoriosa, mas teve ligeiramente mais espaço no campeonato de 1964, ainda que sem se apoderar de alguma vaga: foram onze jogos. Tampouco marcou gols, mas registrou ao menos três assistências – duas no 4-0 sobre o Argentinos Jrs e outra no 1-1 com o River. Internacionalmente, foi usado como reserva em amistosos longe de casa contra Borussia Dortmund (derrota de 2-1) e seleção chilena (derrota de 1-0).
Doval deu seu salto de verdade em 1965. Na pré-temporada, foi discreto: onze amistosos, três gols, sobre a seleção de El Salvador (2-0), o clube costarriquenho Alajuelense (4-2) e o Chivas Guadalajara (1-0). Mas ao longo da temporada ele foi o artilheiro do elenco no campeonato argentino, com doze gols em 27 jogos. Detalhe: só começou a marca-los a partir da 10ª rodada, quando assinalou logo dois em 3-0 na visita ao Atlanta. Ele contribuiu ainda com uma assistência (em 3-1, com outro gol dele, sobre o Rosario Central do goleiro Andrada) e dois pênalti cavados e então convertidos por colegas (no 4-1 sobre o Newell’s e em derrota de 3-2 para o Vélez).
Dentre as vítimas de seus gols na temporada 1965, estiveram o campeão argentino Boca, o campeão continental Independiente, o rival Huracán e até por duas vezes o time do coração, o Platense, vencido por 2-0 com gols de Doval. Ainda esteve em três amistosos internacionais de intertemporada (2-1 no Guaraní paraguaio, derrota de 2-0 e um 0-0 com o Colo-Colo), anotando um gol no primeiro; e cinco amistosos pelo país, com quatro gols – três deles só no 4-0 sobre a seleção municipal de Puerto Belgrano e outro no 2-1 sobre o Sarmiento de Resistencia.
O Libro de Oro revela ainda um primeiro contato com um time brasileiro como se dando na pré-temporada de 1966, em derrota de 2-0 para o Botafogo em fevereiro, no Monumental de Núñez. Não foi ainda o suficiente para ele convencer Juan Carlos Lorenzo, seu próprio técnico no San Lorenzo até meados de 1966 e empregado pela seleção a pouco mais de um mês para a Copa do Mundo – muito embora Doval tenha aberto um 4-0 amistoso já em abril sobre o Racing, justamente a última partida em que Lorenzo comandou o clube antes de dedicar-se apenas à seleção. No campeonato de 1966, iniciado ainda em março, resumiu-se a apenas 17 jogos, cinco gols, uma assistência e um pênalti cavado.
Ele enfim chegou tardiamente à seleção por recuperar-se em 1967: seis gols em vinte jogos pelo Metropolitano (incluindo em 2-0 no clássico com o Huracán e o da vitória em 3-2 sobre o River da lenda Carrizo) e outros seis gols em seis partidas pelo Nacional. Também deixou quatro gols nos quatro amistosos internacionais do ano, no 3-3 com Olimpia, 2-1 em combinado chileno, derrota de 2-1 para o Nacional uruguaio e 4-2 no Colo-Colo; e, em amistosos pela Argentina, foram dois gols em quatro partidas, sobre as equipes cordobesas do Atenas e Talleres, ambos vencidos por 3-2. Em 15 de agosto, estreou então pela Argentina, derrotada por 1-0 em visita ao Chile. Na sequência, a Albiceleste embarcou à Europa para uma série de esquecidos amistosos não-oficiais contra clubes locais, também sem êxito; Doval participou do 2-2 com o Málaga em 27 de agosto, na derrota de 2-1 para o Espanyol no dia 29, do 1-1 com a Fiorentina (gol dele, seu único pela seleção) no dia 31 e do 0-0 com o Lecce em 3 de setembro.
Para 1968, a famosa suspensão lhe tirou de toda a campanha campeã do Metropolitano e até dos amistosos. Ele voltou com fome para o Nacional: reestreou já em 11 de novembro para atuar em cinco jogos e somar quatro gols, River incluso. Em 1969, ele primeiramente figurou nos amistosos contra o Dínamo de Moscou (derrota de 3-1 para o clube de Lev Yashin), Estrela Vermelha (3-2) e Universidad de Chile (derrota de 1-0) em torneio amistoso em Santiago antes de atuar em quatro jogos no Metropolitano e enfim rumar ao Flamengo. Deixou três gols, todos na rodada inaugural do Metro, em um hat trick no 5-2 sobre o Lanús.
Já sua passagem pelo Huracán em 1971 foi pouco prolífica no Metropolitano (22 jogos, dois gols) e razoável no Nacional (sete jogos, quatro gols). Por fim, o regresso ao San Lorenzo em 1979 foi pontuado por três gols em onze jogos no Metropolitano e por um golzinho em sete partidas no Nacional, onde também forçou um gol contra na vitória de 1-0 sobre o Estudiantes. O Libro de Oro ainda registra quatro amistosos entre maio e junho, pela Copa Kirin – 2-2 com o Dundee United, 1-0 na seleção B do Japão, 5-1 sobre a Birmânia e 3-3 com o Tottenham Hotspur; e outro contra o maradoniano Argentinos Jrs, em fevereiro, com o próprio Dieguito anotando o único gol, no estádio do Atlanta.
Nesses últimos dez anos, o interesse revivido por Doval gerou um documentário ainda não finalizado e uma página de Facebook alimentada por seu amigo pessoal Pepe García, repleta de preciosas fotos de acervo pessoal. Já a havíamos utilizado na nota de 2014. Desde então, Pepe publicou mais e mais – como a curiosa participação de um já aposentado Doval como emissário do San Lorenzo para negociar com o conterrâneo Ubaldo Fillol um empréstimo em 1984 junto ao Flamengo.
O negócio, como se sabe, não foi fechado, mas a interação dos dois evoluiu a ponto de Fillol ter sido um dos homens a levar o caixão do Loco à tumba. É o que se revelou de dois registros jornalísticos fúnebres da mídia argentina que Pepe retirou em 2019 do baú. O carisma de Doval fez seu velório reunir não apenas ex-colegas de San Lorenzo como até quem jamais havia jogado com ele: além de Fillol, esse era o caso de Hugo Gatti, o recordista de partidas do campeonato argentino ou de Mario Zanabria, o Riquelme das duas primeiras Libertadores do Boca.
Todos os ex-parceiros de San Lorenzo foram incluídos na edição especial que a revista El Gráfico publicou em 2011 sobre os maiores ídolos azulgranas, ainda que alguns também, como Doval, houvessem defendido o Huracán – casos de Carlos Buttice (ex-America, Bahia e Corinthians) e de Alberto Rendo. Carlos Veglio, por sua vez, defenderia o rival Boca a ponto de fazer o gol argentino nas finais contra o Cruzeiro na Libertadores de 1976. Roberto Espósito só convivera como juvenil com Doval no bairro de Boedo, só sendo profissionalizado em 1970, mas Agustín Irusta, Victorio Cocco e Roberto Telch foram colegas assíduos do atacante no elenco apelidado de Los Carasucias.
A ausência notável foi justamente a do maior parceiro de Carasucias: Héctor Veira (ex-Palmeiras e Corinthians) foi eleito em 2008, no centenário sanlorencista, como o maior ídolo do clube, mesmo sendo outro a ter passado pelo Huracán na carreira. Nem o patamar de ser o primeiro técnico campeão de Libertadores com o River, e ainda o único campeão mundial com o Millo (em 1986), livraram El Bambino Veira de uma prisão naquele 1991, considerado culpado pelo estupro de um menor de idade, por mais que sempre negasse a autoria.
Antes da prisão, a parceria que Veira e Doval tiveram por San Lorenzo e Huracán vinha desde 1989 sendo revivida no time de showbol do San Lorenzo, em torneio de veteranos promovido pelos 70 anos que a revista El Gráfico completava. A iniciativa teve uma segunda edição em 1990 – uma das últimas aparições públicas do ídolo disponíveis em vídeo (ele é anunciado logo no primeiro minuto). E foi para participar também da terceira que Doval, radicado no Rio de Janeiro, voltou à Argentina duas semanas antes da inesperada morte.
Veira, Doval e Telch eram acompanhados no quinteto ofensivo dos tais Carasucias (“Cara-Sujas”, gíria argentina para moleques) por Fernando Areán e por Victorio Casa. Irreverentes ao excesso, deles apenas Telch iria a uma Copa do Mundo, embora justamente nela (a de 1974) enfrentasse uma acusação de estupro também. É em referência a essa torrente de acontecimentos que a edição da El Gráfico seguinte àquele 12 de outubro de 1991 publicou a matéria “História e Mito dos Carasucias“, assinada por Eduardo Rafael e transcrita parcialmente abaixo:
“El Nano Areán diz que com Los Carasucias se criou um mito. É certo. também aquela história hoje lhe dói, a sofre. Se equivoca. Sofre e lhe doem algumas das contas que passou o Destino a seus companheiros de gangue, mas aquela história é uma incitação permanente ao sorriso. Um sorriso que já não ilumina o rosto de Doval, que há pouco se apagou da cara do Bambino, mas que voltará a renascer cada vez que alguns dos que fomos testemunhas de suas travessuras nos atrevamos a recorda-las”.
“Haverá que rebobinar para nos situarmos no tempo: 1963. Ainda nos doía o suicídio de uma boneca loira que se fez chamar Marilyn Monroe. Nesse ano também morreu o Papa da bondade, João XXIII, e assassinaram em Dallas a John Fitzgerald Kennedy. (…) Mas como está demonstrado que o mundo segue andando, nesse mesmo ano revolucionaram a juventude quadro cabeludos de Liverpool (…). Era a vida em 1963 (…). Com o homem dando voltas no espaço enquanto ainda sonhava em chegar algum dia na lua. E em meio desse cambalacho (…), estava o futebol argentino, acusando as consequências do nocaute da Suécia em 1958 e dos cachetazos recebidos no Chile em 1962. Nessa desorientação copavam o Independiente e o Boca, duas equipes duras, compactas, defensivas”.
“O futebol-espetáculo já havia saqueado as tesourarias. Os grandes se apequenavam. San Lorenzo foi um dos primeiros a tocar fundo. Obrigado pelas circunstâncias, seus dirigentes olhavam para dentro. ¡Arriba!, disseram. Assim apareceram na primeira divisão Roberto Telch, depois Victorio Casa, em seguida Héctor Rodolfo Veira, Fernando José Areán e, ao final, Narciso Horacio Doval. Todos adolescentes, com 17, 18, 19, 20, anos e um denominador comum: eram atrevidos, com desfaçatez, desrespeitosos, alegres, divertidos. Dentro e fora do campo. Inocentes, ingênuos, também dentro e fora do campo. Assim nasceram Los Carasucias. Assim começou essa história”.
“(…) Doval sempre foi El Loco, o mais imprevisível. Assim eram na vida. A casualidade os juntou e uma mesma maneira de sentir e viver os uniu. Assim chegaram a Carasucias, no campo e na rua. As circunstâncias os ajudaram. Vinte e cinco anos atrás, a ordem e a disciplina eram palavras alheias ao futebol. (…). Eles entravam para jogar a bola. Afrontavam a partida mais severa com o atrevimento maior, como se tratasse-se de um simples desafio de bairro. (…)”
“Areán e Veira, Doval e Casa, Veira e Doval, Telch e Casa, se entendiam com o olhar. Quase não precisavam falarem-se. (…) Audazes, atrevidos, não conheceram inibições. Uma vez Ángel Luis Colacino, que era o presidente do clube, foi ao vestiário antes da partida e lhe pediu ‘garotos, temos que ganhar, temos que pôr garra e coração’. Veira se aproximou, lhe tomou pela lapela e começou a lhe recriminar: ‘então agora invades as funções do treinador. Agora dás as ordens técnicas…’. E Doval, que viu a oportunidade, se somou ao ‘protesto’ e começou a dar tapas a Colacino enquanto lhe dizia: ‘tem razão El Bambino, por que te metes no terreno do técnico? Isso não é coisa tua, estás movendo o piso…’. E os tapas recebia o presidente do clube”.
“(…). O Destino lhes deu o primeiro alerta em 11 de abril de 1965. Foi domingo. Choveu e se suspendeu a rodada de futebol. Casita armou um programa. Convidou Telch, mas El Oveja tinha outros compromissos. Então saiu com seu carro – um Valiant – com duas moças e um amigo. (…) ‘Apenas parei o motor, senti um ruído como de balas. Olhei e não tinha mais o braço direito (…). Havia sido uma explosão disparada desde a Escola de Mecânica da Armada. Dizem que me haviam dado o alerta, eu não escutei nada. No [Hospital] Pirovano me salvaram a vida, mas o braço direito eu perdi para sempre’. (…) Ainda hoje, quando alguém lhe pergunta o que foi o pior de tudo, Casa responde: ‘perder minha posição e meus amigos'”.
“(…) Areán e Veira se entendiam com qualquer gesto, até com a mínima insinuação. (…) Dois, três anos, e a dupla se desintegrou. Dizem que Areán perdeu uma ‘interna’ e teve que resignar-se a ir jogar na Colômbia. Quando ele saiu, os Carasucias desapareceram”.
“A Narciso Horacio Doval nunca lhe irritou que o chamassem de Loco. ‘Sempre pensei que alguém dever ser tal como é e eu gosto de andar na moto a cem por hora, me atirar no rio sem saber nadar’. Quando jogava no Rio, até praticou asa-delta (…). De todos os Carasucias, era o mais inquieto, o mais piadista. [O treinador José] Barreiro o via como ‘o mais conversador, o de maior futuro’. Anos depois, quando chegou Manuel Giúdice, o definiu como ‘um rapaz bom que, de puro piadista, passa dos limites’. Mas era El Loco e carregou sempre com as culpas próprias e alheias, como aconteceu naquele famoso caso da aeromoça”.
“O San Lorenzo voltava em um avião da Austral, depois de jogar em Mendoza uma partida do Nacional de 1967. Alguém da delegação passou a mão no traseiro de uma das aeromoças. Guillermo Nimo, que havia sido o árbitro da partida e voltava no mesmo avião, foi citado como testemunha. Também os dois bandeirinhas. Eles negaram ter responsabilizado Doval, mas El Loco foi punido com uma suspensão de um ano para jogar. Nunca se provou sua culpa. Doval a negou sempre, a aeromoça não aceitou a acareação que exigia o jogador. E Doval ficou um ano sem jogar. Os que viajavam no dito avião sustentaram sempre que isso lhe passou por ser um bom companheiro. Por querer salvar um amigo (…)”.
“Sua fama nunca o mudou. Segue sendo tão louco e tão ingênuo como sempre. Ali por 1976 viajou com o Fluminense ao Chile, para jogar uns amistosos. Como acontecia em Buenos Aires, vários de seus amigos tinham a chave do seu apartamento. Um deles, apelidado de Pinguim, levou seis caixas com tubos de aerossol, aromatizador de ambiente, que no Brasil estava proibido porque continha drogas do tipo alucinógeno. Quando a delegação voltou, o inspetor de polícia José Gomes Sobrinho o submeteu a um intenso interrogatório (…)”.
“É possível que algum despistado se pergunte hoje: ganharam de quem? A resposta seria lapidária: de ninguém. Nunca foram campeões. Por quê? Também é possível que sejam muitas as respostas. Arrisquemos uma: porque nunca lavaram a cara. Porque o futebol sempre foi para eles – exceto Areán – várzea, malandragem, desenfado, drible, toque, pique curto, freio, mudança de direção… Barreiro costumava afirmar: ‘estes garotos fazem o que querem com a bola. Sem a bola, ainda lhes falta aprender muito'(…).”
“Los Carasucias foram sempre puros e isso, no futebol, nunca se sabe se é uma virtude ou um defeito. (…) Desses tempos falou Doval, quando o Flamengo lhe mudou o futuro. Então disse dessa etapa no San Lorenzo: ‘eu não sabia nem me alimentar. Por isso era magro, sem caixa, sem forças. No Brasil, ganhei em potência, em resistência. Corro os 90 minutos, arranco desde atrás, chego para a tabela e para o gol e volto a tomar posição de volante defensivo. Me fiz mais jogador sem a bola (…). Me fiz um jogador mais sério, com muito mais continuidade e capacidade para resolver”.
“Se esportivamente Los Carasucias foram uma frustração, é preciso repartir as culpas entre aquele punhado de adolescentes joviais, a cegueira de seus condutores e a miopia dos dirigentes que não souberam fixar-lhe metas nem objetivos. Sobre o cadáver dos Carasucias nasceram e triunfaram Los Matadores. Ao [treinador] Elba de Pádua Lima, o Tim, lhe resultou fácil a tarefa: ‘insiste com o posicionamento, os movimentos dos jogadores, lhes falei de esquemas e funcionamento e lhe disse que depois eles resolviam. Isso sim, deixei muito claro que nunca tolerei pebolim. Me irrita, me entendia, porque esse é o pior defeito do futebol. E lhes esclareci que se gostavam do circo, primeiro tínhamos que matar e depois nos divertir. O resto não tinha importância: o clima alegra não está renhido com a responsabilidade e eles a tiveram”.
“O Destino se enfureceu com eles várias vezes mais. Telch deveu suportar uma denúncia de abuso sexual por parte de uma camareira de hotel onde se hospedava a Argentina durante o Mundial 74. Nunca se comprovou a falta. Veira se cansou de clamar sua inocência pela suposta violação de um menor, mas está detido em Devoto. O mesmo Telch sobreviveu a um terrível acidente automobilístico em 1982. O compadre de todos, Rafael Albrecht, foi atropelado por um carro em 1981 e por um trem em 1989.”
“Todas essas circunstâncias contribuíram para alimentar, ainda mais, o mito dos Carasucias de que hoje se lamenta El Nano Areán. Alguma de suas consequências as sofre e lhe doem. A verdadeira história fala de um grupo de adolescentes que desenharam um sorriso no futebol sério, que nunca entenderam. Ali havia calcanhares, letras, canetas e chapéus. Também piadas, leves e pesadas. Audácias e irresponsabilidades. (…) Foram ingênuos e até inocentes, como reconhece Rafael Albrecht”.
“Nenhum deles superava os 21 anos. É muito provável que se levante alguma voz tratando de crucifica-los. Sempre aparece um fiscal com ganas de converter-se em juiz e os juízes, já se sabe, nasceram para falhar. Aqui, simplesmente, demos um testemunho de suas andanças e travessuras. Eu, que fui cronista nos tempos em que eles escreveram essa história, tenho autoridade para afirma-lo: nenhum deles conheceu a maldade”.
Em complemento, abaixo, trechos das notas fúnebres na página mantida por Pepe García:
“Pesar entre os que acompanharam Narciso Doval até sua última morada – no cemitério privado Jardín de la Paz, de Pilar, foram enterrados ontem ao meio-dia os restos de Narciso Horacio Doval, que faleceu na madrugada do sábado após sofrer uma parada cardiorrespiratória. O enterro do destacado ex-futebolista, de 47 anos, que ganhou popularidade junto aos Carasucias do San Lorenzo e no Flamengo (ademais atuou no Huracán e Fluminense) se levou a cabo em meio de um clima caracterizado pela dor.
Vários ex-jogadores, (…) dirigentes do futebol, figuras do ambiente artístico, além de suas familiares e amigos pessoais, acompanharam ontem os restos do Loco Doval para brindar-lhe o último adeus no cemitério Jardín de la Paz, onde previamente ao enterro se rezou um responso. A seu término, se fez uma breve referência a sua trajetória e qualidade humana”.
“Doval faleceu após desmaiar na porta da discoteca New York City, afetado por uma parada cardíaca do qual logrou sobreviver apenas por uns instantes. O popular ex-futebolista, radicado no Rio de Janeiro, havia chegado à Argentina há umas semanas para participar do torneio de Fútbol Cinco, realizado recentemente no Parque Sarmiento (que ganhou sua equipe, Flamengo), viagem que aproveitou, ademais, para visitar na penitenciária de Devoto seu amigo Héctor Bambino Veira”.
“Loiro e de olhos celestes, El Loco Doval fica na história do futebol argentino como um de seus homens mais notáveis. (…) Marina Feld, sobrinha de Doval, recordou que ‘antes de sair para dançar, fomos comer um churrasco na casa de Martín Rico, um dos melhores amigos que ele tinha aqui. Era o aniversário de um primo de Martín. Por volta das 3 da manhã, saímos os três para dançar. Dançamos toda a noite, e Horacio não tomou nada nem fumou. Ele estava de muito bom humor, como sempre, e por volta das seis Martín e eu saímos. Horacio quis seguir dançando, mas ao final o convencemos e veio à rua. Horacio caminhava à nossa frente, e a uns 10 metros da entrada colapsou. Chamamos o CIPEC, que chegou 15 minutos depois. Horacio respirava com dificuldade, não puderam fazer nada, não puderem revivê-lo. Em seu último dia, meu tio esteve contente como em toda sua vida, ele era um homem bom, um exemplo de pessoa”.
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