Muito além de Narcos: América de Cali trivice da Libertadores há 30 anos foi alavancado por argentinos
“É difícil pensar com a mentalidade atual, mas queria ficar para triunfar no Boca e na seleção. Veja que veio o Atlético de Madrid, o Sevilla, o Torino, o América do México várias vezes. Estava muito apegado a meus amigos, a meus costumes, e queria ser mais importante no Boca, ser alguém importante na seleção, não concebia ser alguém importante no exterior e depois voltar ao país, queria fazer o inverso, passo a passo. (…) Tive ofertas de onde imaginares: Alemanha, Itália, Espanha, México. Mas era outra época, e posterguei muito (em sair do país), por isso, quando estava no River e via que o tempo passava, fui em seguida à Colômbia. Havia chegado uma oferta da Suíça que dava mais grana ao clube a mim, mas eu já havia dado minha palavra às pessoas do América. E aí sim fui”.
“Em 1977, com apenas 21 anos, um empresário me apresentou uma oferta para ir ao Barcelona. Tinha que me casar com uma espanhola para obter a nacionalidade porque não havia vaga de estrangeiros, e depois poderia romper o matrimônio. Era uma coisa meio incomum, então preferi dizer-lhe que não e tchau”.
A declarações acima são respectivamente de Ricardo Gareca (em 2009) e de Julio César Falcioni (em 2004), ambas à revista El Gráfico, contextualizando a visão em voga até o início dos anos 80 no futebol argentino e no continente como um todo: ir à Europa em tempos de equilíbrio esportivo, financeiro e glamouroso com o futebol sul-americano mais atrapalhava do que ajudava os jogadores daqui a se manter em suas seleções. E o futebol ainda não era puramente negócio aos jogadores de primeira linha. Atual técnico do Peru e ex-Palmeiras, Gareca era o artilheiro do América de Cali trivice na Libertadores há 30 anos. E o goleiro era Falcioni, técnico do Boca vice para o Corinthians na Libertadores de 2012. Vale lembrar como eles e outros argentinos alavancaram o clube, apesar da imagem de azar instalada como nunca naquele 31 de outubro de 1987, conforme explicamos aqui.
Na virada dos anos 40 para os 50, só o campeonato colombiano competia com o italiano como o mais lucrativo para os jogadores, quando a profissão estava longe do glamour e das cifras milionárias atuais, vigendo ainda fortes leis do passe que amarravam jogadores a seus clubes. Desrespeitando as diretrizes financeiras de uma FIFA romântica pré-Havelange, os clubes colombianos criaram uma liga pirata capaz de atrair jogadores da seleção inglesa para defenderem o Santa Fe, casos de Charlie Mitten (do Manchester United!) e Neil Franklin (do Stoke City).
O grande time do chamado Eldorado Colombiano foi o Millonarios, a atrair outro britânico (o escocês Bobby Flavell, do Hearts) e, de forma mais célebre, os astros argentinos Adolfo Pedernera, Néstor Rossi e, sobretudo, Alfredo Di Stéfano, capazes de golear por 4-2 o Real Madrid em Chamartín no aniversário madridista de 50 anos, partida que levou Di Stéfano aos merengues. E o América? Seu hermano mais famoso na época foi Elmo Bovio, o atacante ex-Internazionale cujo temperamento o tirou pelos fundos, a despeito do brilho, de Palmeiras e São Paulo (onde ainda é o jogador com melhor média de gols no clube). Mas o clube vermelho não conseguiu muito. O time de Cali mais proeminente era um chamado… Boca Juniors mesmo, bivice do Millonarios em 1951-52.
O América chegou pela primeira vez ao pódio em 1960, quando o Eldorado já havia acabado. Foi vice. Um primeiro argentino a se destacar um nível além no América foi Hugo Lóndero, artilheiro do campeonato de 1969, no segundo vice-campeonato do clube. Lóndero defenderia a seleção colombiana nos anos 70 e penduraria as chuteiras como o maior artilheiro do campeonato (hoje é o terceiro). O primeiro título viria somente em 1979. O Eldorado era passado, mas a liga de um país a unir Amazônia, Pacífico e Caribe, cada vez mais atrelada ao narcotráfico, continuava financeiramente interessante a argentinos (especialmente os quase aposentados ou os que nunca tiveram maior cartaz na terra natal). Até os anos 80, eles dominaram a lista ano a ano de artilheiros do torneio. E de técnicos campeões.
Osvaldo Zubeldía, uma espécie de Muricy Ramalho que treinou do Estudiantes tri seguido na Libertadores de 1968-70, treinou o Atlético Nacional campeão de 1976. Seu principal discípulo naquele Estudiantes, Juan Ramón Verón (pai de Juan Sebastián) foi jogador-treinador do primeiro título do Junior de Barranquilla, em 1977. Em 1978, o Millonarios foi campeão treinado por Pedro Dellacha, campeão das Libertadores de 1972 e 1975 com o Independiente; já o Deportivo Cali foi vice da Libertadores, sendo treinado por Carlos Bilardo, que viraria técnico da Colômbia, e depois da Argentina na vitoriosa Copa de 1986. Em 1979, o América de Cali foi campeão nacional sob alguém nativo mesmo: Gabriel Ochoa Uribe, então um raro treinador colombiano mais respaldado, com sete títulos ganhos no Millonarios entre os anos 50 e 70 e outro no Santa Fe.
O que não era diferente era a forte presença argentina: o elenco americano continha os obscuros Jorge Cáceres (ex-San Martín de San Miguel) e Libardo Perdigón, mas também Aurelio Pascuttini, ídolo dos dois primeiros títulos argentinos do Rosario Central; e o goleiro Carlos Gay, titular do Independiente campeão da Libertadores de 1974, onde pegou um pênalti na final contra o São Paulo. O Junior foi campeão em 1980 (tendo de técnico José Varacka, ídolo como jogador no Independiente e no River) e 1981 foi ganho pelo Atlético Nacional (novamente sob Zubeldía, que faleceria pouco depois), mas de 1982 a 1986 os homens de Ochoa Uribe dominaram a liga com títulos seguidos.
A retomada, em 1982, veio com três argentinos: os atacantes Roque Alfaro (ex-Newell’s) e Oswaldo Damiano (ex-Atlanta) e com Falcioni, recém-contratado do Vélez. Ele era bastante cotado de ir à Copa do Mundo de 1982, mas aposentou-se sem chegar ao torneio: “tive a oportunidade de jogar no River e no Boca. Em 1981, quando contrataram Maradona, estive reunido com o pessoal do Boca, mas o Vélez já havia assinado com o América. Eu fui ao América pensando que ficava um ano, mas me encontrei com um clube de hierarquia, em um grande momento do futebol colombiano, com muitas figuras. Houve alguma possibilidade de (ir à) Europa, mas não me quiseram vender, porque era a imagem do clube. Em 1984, Luis Cubilla era técnico do River; como vinha da Colômbia, pediu por Alfaro e por mim. Mas no fim só transferiram o Alfaro”.
Em 1983, Alfaro e Falcioni foram campeões acompanhados dessa vez por Claudio Casares, campeão argentino de 1980 com o Rosario Central, e Daniel Teglia (ex-Boca e Racing) como argentinos. Em 1984, somente Falcioni era argentino no clube, mas em 1985 ele foi acompanhado por Gareca. Ídolo no Boca, o atacante vinha de um semestre no River após uma polêmica transferência que o vilanizou para sempre nos auriazuis. Gareca também havia acabado de ser herói da classificação da seleção à Copa do Mundo, marcando o gol salvador nos minutos finais de confronto direto contra (ironia!) o Peru. Mas ele terminaria solenemente ignorado na convocação ao mundial por Bilardo (que convocou o líbero José Luis Brown, que pertencia ao Atlético Nacional, além de Marcelo Trobbiani, jogador do Millonarios até abril, quando rumou ao Elche espanhol; e em 1990 chamaria Sergio Goycochea, ainda atrelado ao Millonarios). O ex-atacante declararia:
“Estava no Chile, concentrado com o América. Os meios colombianos já me colocavam dentro da lista, mas não me ligava ninguém da Argentina. Em um momento, entrei no refeitório e todos os muchachos fizeram um silêncio… vieram e me contaram. Depois fui ao quarto e chorei como um condenado. Creio que se tivesse estado na Argentina, teria me respaldado mais, ao sair fiquei meio desprotegido. Me dava bronca ter bancado a pior etapa, quando havia que dar a cara para sustentar um processo, porque o Bilardo era questionado por todos os lados, e depois ficar de fora. Na lista apareceram jogadores que nunca haviam estado antes, como Enrique, Borghi, Almirón, Tapia, outros que haviam renunciado…”
Já Falcioni poderia ter ido à Copa, mas pela Colômbia (que vinha sendo treinada por Ochoa Uribe em paralelo ao cargo dele no América), que propusera naturalização. No fim, ela acabou usando o sucessor de Falcioni no Vélez: o jovem Carlos Navarro Montoya, nascido no país embora filho de argentinos e criado na terra dos pais, e não passou da repescagem. Na Argentina, a vaga final foi do obscuro Héctor Zelada, cujo clube (o América mexicano) teve as instalações usadas pela seleção:
“Como havia pessoas que não estavam de acordo, sobretudo do jornalismo, que queria que jogasse gente do país, tomei a decisão de não me naturalizar. Já estava tudo pronto para que chegasse à concentração 48 horas antes do jogo, Ochoa inclusive já me havia dito que se não quisesse jogar contra a Argentina em Buenos Aires, não jogaria. Mas bem, era apostar tudo por uma carta que não ia me beneficiar. (Analisando hoje) teria sido bom, talvez não sofresse os desencantos que sofri com a seleção argentina e talvez chegasse a uma Copa. Eu havia estado na seleção várias vezes com Menotti, mas fui ao América de Cali em 1981 e perdi todas a chances (de ir à Copa 1982). Então não era tão requerido o jogador do exterior e muito menos o que estava na Colômbia. Em 1986, todos diziam que eu era o terceiro goleiro, mas apareceu Zelada com as instalações do América do México para a concentração e me marginalizaram. E em 1990 estive até o último dia no grupo”.
No segundo semestre de 1985, o América chegou à sua primeira final de Libertadores: Falcioni era um especialista em pegar pênaltis a ponto de ser talvez o único a defender duas cobranças de Maradona em um mesmo jogo, mas não pôde pegar nenhum do timaço do Argentinos Jrs. Em 1986, o time foi campeão colombiano reforçado pelo refinado armador argentino Carlos Ischia, mas voltou a cair na decisão continental. Os algozes foram os ex-colegas de Gareca no River, onde também jogava o ex-americano Alfaro. O oponente ainda não tinha vencido a competição e sofria com as gozações dos rivais Boca, Racing e Independiente (todos já campeões) exatamente em função do pequeno Argentinos Jrs ter também conseguido.
As visões de Gareca e Falcioni sobre essas derrotas foram similares: “a final do Argentinos foi muito parelha e o River nos ganhou bem”, sintetizou Falcioni; “o River nos superou nos dois jogos, foi a única final das três que nos ganharam bem”, afirmou El Tigre. Ambos concordaram que nenhuma foi tão dolorosa como a de trinta anos atrás, na última jogada da prorrogação: “me custou muito me recuperar, não tinha gana de nada, era minha terceira final. Eu dava de tudo para conseguir um título assim, como dava de tudo para ir a uma Copa. Fomos três vezes vices da Libertadores de forma seguida, não se deu. Dez anos mais tarde, com outros jogadores, voltou a perde-la. E vários desses jogadores, depois, se cansaram de ganhar com o Boca. São doses de sorte”, relatou o goleiro, em alusão ao Oscar Córdoba e Sergio Bermúdez, colegas do argentino Alfredo Berti em 1996.
Já o atacante assinalou que “eu estava no banco, porque havia me distendido na primeira final, e não podia acreditar. Faltou essa dose de sorte que todo time precisa. É difícil de explicar. Enfrentamos a história do Peñarol, a urgência do River e com um Argentinos espetacular”. Mas aquele elenco americano, segundo ele, terminou não sendo ridicularizado na Colômbia: “Nãããão, nada a ver, pelo contrário. Aquele América fez história no futebol colombiano. Voltei à Colômbia em 2005 para treinar o América, após 16 anos sem pisar em Cali. Quando cheguei ao aeroporto, vi bandeiras vermelhas, uma multidão, e pensei que havia um protesto. Não. Eram 1.500 pessoas dando-me boas vindas”.
E sobre a influência dos irmãos Gilberto e Miguel Rodríguez Orejuela, os antagonistas da vez na recente terceira temporada da série Narcos (que menciona o clube ocasionalmente)? A dupla Gareca e Falcioni não se escondeu ao ser indagada sobre o relacionamento com os chefões do Cartel de Cali. As declarações abaixo seguem a mesma ordem de autoria da introdução:
“Os Rodríguez Orejuela comigo se portaram de modo sensacional, mas eu não vi nunca nada incomum. Nunca nos faltou nada, cumpriam sempre a palavra. Só havia relação dirigente-jogador”.
“Tínhamos uma relação permanente. Quando me contrataram, veio Miguel, não sei se era o chefe do cartel ou não, mas estava sempre. (Mas) sempre estivemos à margem. O máximo que víamos era uma escolta de proteção quando ele vinha. Só tive um pouquinho de medo em 1989: ao fim de um jogo, mataram um bandeirinha. Era um América x Independiente Medellín. Foi minha última partida”.
O Independiente Medellín, vale ressaltar, era o time do coração de Pablo Escobar, chefão do cartel concorrente e protagonista-mor de Narcos, ainda que a série erroneamente o retrate em rápida passagem da segunda temporada como torcedor do rival Atlético Nacional (pixotada aproveitada pelo seu filho para criticar outras supostas inverdades do programa, por mais que Escobar não deixasse de buscar lucros também com os alviverdes). O assassinato suspendeu o campeonato de 1989, nunca concluído e declarado sem campeão, e marcou a despedida também de Goycochea junto ao Millonarios. Outros especiais relacionados:
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