Ele era justamente o último sobrevivente da final de 1950. Alcides Edgardo Ghiggia se eternizou com o gol do título a ponto de poucos lembrarem que marcou em todas as outras partidas do Uruguai na Copa – ou seja, o feito de Jairzinho em 1970 não é único. Jogador imortal, mas ao mesmo tempo comum, pois no Peñarol era só um veloz coadjuvante para a classe de Juan Alberto Schiaffino, o vigor de Juan Hohberg e os gols de Oscar Míguez e Ernesto Vidal. Mais do que isso, ele havia antes sido dispensado por um pequeno clube argentino, o Atlanta, ausente da elite nacional desde 1984.
Essa história ocorreu em 1947. Na época, o Atlanta era um dos mais prestigiados entre os pequenos clubes argentinos (conheça mais de sua história clicando aqui) e jamais havia sido rebaixado, ao contrário de equipes como Vélez e Argentinos Jrs. O clube do bairro de Villa Crespo, naquele ano, resolveu então ousar e reuniu diversas estrelas da época em seu elenco. A mais notória foi o centroavante Adolfo Pedernera, o homem que deixava Alfredo Di Stéfano na reserva no River – e considerado pelo próprio Di Stéfano como o maior jogador que vira: saiba mais.
Também do River aportaram o ponta ambidestro Aristóbulo Deambrosi, atacante da primeira versão de La Máquina (Félix Loustau, que roubara sua vaga, foi justamente a última peça a se juntar) e o arrojado goleiro peruano José Soriano, que inspirou o reserva Amadeo Carrizo a jogar adiantado e popularizar este estilo. Contratou-se ainda o zagueiro León Strembel, defensor do Racing e da seleção argentina campeã da Copa América no ano anterior. O Atlanta tinha também o atacante Bernardo Gandulla, o mesmo que originou a palavra “gandula” após passagem pelo Vasco.
Ghiggia, que era filho de um argentino (Felipe Alfonso Ghiggia, nascido em Tucumán, conforme a página 104 deste livro uruguaio sobre a história das Copas), não estava entre essas estrelas. Ainda como jogador do Sud América e longe da fama, veio junto com outros obscuros uruguaios para testes, Gervasio Artigas e Juan Burgueño. Atuou pelo Bohemio em um amistoso contra o Independiente, que venceu por 5-2. Ghiggia realmente não agradou.
Ele foi substituído no intervalo e logo convidado a regressar a Montevidéu. Se Ghiggia tivesse triunfado na Argentina, ele simplesmente não jogaria a Copa de 1950, a não ser que retornasse antes ao Uruguai. Isto porque na época as seleções não convocavam jogadores do exterior. A Argentina só alterou essa política em 1972. Similarmente, foi com muita polêmica que a Celeste utilizou os “estrangeiros” pela primeira vez em Copas, na de 1974. Ao menos na fria estatística, um sucesso prolongado do ponta em Buenos Aires impediria o Maracanazo!
O irônico é que aquele super Atlanta não engrenou e o clube acabou rebaixado pela primeira vez exatamente naquele ano de 1947, conforme detalhamos neste outro Especial, no qual já havíamos mencionado a curiosa passagem do mito uruguaio. A dispensa fez-lhe bem em curtíssimo prazo: ganhou oportunidade no Peñarol já em 1948 e integrou em 1949 aquele quinteto ofensivo apelidado de “Esquadrilha da Morte” com Míguez, Schiaffino, Hohberg e Vidal, autores de 113 gols em 32 jogos, dos quais só um foi perdido – um amistoso com o Huracán em Buenos Aires.
1949 foi o ano do clásico de la fuga, um 2-0 em que o Nacional abandonou no intervalo para não levar uma goleada. O resto é história: quatro dos cinco homens daquele quinteto seriam titulares da Celeste na Copa de 1950 (faltou Hohberg, que era argentino e só seria naturalizado a tempo de ir à Copa de 1954. Vidal, aliás, também vinha da Argentina: saiba mais), com Ghiggia estreando pela seleção a apenas quarenta dias daquele 16 de julho de 1950 – ele jamais a defendeu oficialmente dentro do próprio país, a não ser em jogos-treino, um dos quais uma derrota para o Brasil de Pelotas (!) a meses do mundial. Já o Atlanta hoje padece na terceira divisão…
Descanse em paz, Ghiggia!
Agradecimentos a Leandro Paulo Bernardo pela informação sobre a nacionalidade argentina do pai do mito.
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