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Moreno, o melhor jogador argentino da 1ª metade do século XX

A Argentina, com sua última geração de ouro (veja), venceu pela primeira vez a Copa do Mundo em 1978, voltando a se erguer após o fim da fantástica geração dos anos 30-40. Naquele mesmo ano, dois meses após o título, um dos referentes da geração ocultada pela Segunda Guerra faleceu: José Manuel Moreno. Teria sido “ainda melhor que os dois”, escreveu sobre ele a Placar em 1999, ao pôr Pelé como atleta do século. “Os dois” em questão eram Maradona e Di Stéfano. Félix Loustau, que jogou com Di Stéfano e Moreno, disse que “Maradona é bom, muito bom, mas está longe de Pelé e Moreno”.

A avalanche de sucesso mundial entre 1958-70 fez os brasileiros esnobarem a Copa América. Assim, grandes logros hermanos anteriores ficaram esquecidos aqui, embora o Brasil tenha sofrido com Moreno & cia. “Na edição de 1939 da Copa Roca (…), Moreno pegou a bola na lateral do gramado do estádio de São Januário e, com o intuito de se aquecer para a partida que ia começar, fez seu show. Depois de uma série de embaixadas, deu um chutão para o alto e, antes que a bola pingasse, a dominou com o peito do pé sem perder o controle. Foi aplaudido pelos brasileiros. No fim do jogo, 5-1 para os argentinos, com dois gols de Moreno”. Assim escreveu sobre ele outra revista brasileira, a Trivela, em 2008.

Era época de grandes goleadas da Albiceleste: em 1940, um 6-1 em Buenos Aires e um 5-1 em Avellaneda. Naquela década, foram sete vitórias argentinas em onze jogos, com 32 gols a favor e 21 contra. Os brasileiros se viam em tanta inferioridade que contratar argentinos em fim de carreira ou de segunda linha era visto como luxo (e eles brilhavam: Valido e Volante no Flamengo, Sastre, Renganeschi e Poy no São Paulo, Echevarrieta e Dacunto no Palmeiras, Santamaría, Spinelli e Rongo no Fluminense, Rafanelli no Vasco, Basso no Botafogo…), complexo que Mário Filho chamava de “platinismo”.

Moreno defendeu a seleção entre 1936-50. Além de hábil, fazia seus gols: só pela Argentina, foram 19 em 34 partidas (titular em 32 delas), atuando tanto pelo flanco esquerdo como pelo direito do ataque. Só pelo River Plate, foram quase duas centenas (179) em 321 jogos. Sabia armar jogo, chutar de longe e cabecear. Era considerado de físico superdotado, pois conseguia conciliar boas exibições com uma vida noturna altamente agitada. Foi justamente em função de um mal hepático que ele morreria.

Cabeceio e acrobacidas estavam entre suas especialidades

Também antecipou o uso de adereços nos cabelos. Já em 1939, corria o boato de que ele usava redes para não ficar despenteado, inspirando zombarias, encerradas após ele se pôr na frente de um grupo de torcedores do Estudiantes que queriam agredir um árbitro, dando-lhe tempo para fugir. “Ao lado de um monstro como Moreno, aprendi a importância do amor próprio. Uma vez, no campo do Tigre, lhe racharam a cabeça com uma pedrada. Quando lhe insinuei que se fizesse atender, me afastou (…) ‘Cale-se’, me gritou. Quando um jogador cai é porque está morto, me entendeu bem? E seguiu (…) como se nada.”, disse Di Stéfano sobre o companheiro, que na infância dividia-se entre o futebol e o boxe.

Uma terceira anedota de 1939: dirigentes do River, fartos da boemia de Moreno, lhe deram ultimato antes de jogo contra o campeão Independiente. “Toda essa semana prévia a esse jogo (…), me deitei cedo e tomei leite. (…) Cumpri o combinado com os diretores. O que houve? O pior: aos 15 minutos do primeiro tempo, estava morto. (…) Joguei tão mal que a Comissão Diretiva me puniu por falta de empenho. Meus companheiros se solidarizaram comigo, fizeram greve e se negaram a jogar a partida seguinte”. Nesse jogo, o River perdeu com um gol muito recordado de Vicente de la Mata. Curiosamente, por conta dessa greve é que Ángel Labruna, então novato, estreou no time principal.

Outra curiosidade: um dos maiores símbolos do River, Moreno torcia justamente pelo Boca e tentou a carreira antes lá, mas não foi aprovado. Resolveu ir ao rival e estreou no time principal em 1935. O River só tinha dois títulos argentinos, buscando se afirmar no cenário nacional. A grande estrela era Bernabé Ferreyra, de 195 gols em 193 jogos pelo time. Lembrado pelas bombas, ele foi o grande entusiasta de Moreno: a estreia fora em excursão pelo Rio de Janeiro e Bernabé pressionou o técnico Emérico Hirschl a colocar o garoto contra o Vasco (ou o Botafogo, segundo outras fontes). O treinador negou. “Então, jogue você no meu lugar”, afirmou Ferreyra ao presidente Liberti, que apoiara o técnico.

Moreno atuou, marcou nos 5-1 e o primeiro a abraça-lo foi o amigo. Depois, na primeira rodada do campeonato de 1935, lá estavam juntos contra o Platense, marcando um gol cada nos 2-1. O de Moreno foi de cabeça, grande especialidade. O Boca foi o campeão ali, mas o River foi bi seguido em 1936-37, com a revelação estreando pela seleção e até superando Bernabé em gols: este fez 27 em 1937. Moreno, 32. Aquele River, porém, ainda passou por altos e baixos até se afirmar, já nos anos 40; ausente da Copa América 1939, Moreno chegou a ser novamente afastado por fracas atuações em 1941. A taça seguinte veio no próprio 1941, quando Moreno venceu também a Copa América pela seleção.

Boca Juniors, Ferro Carril Oeste, seleção e boêmio: as outras faces dele na Argentina

Título também bisado: o Millo venceria em 1942, com direito a volta olímpica na Bombonera. Por sinal, em meio ao bi, o River aplicou suas maiores goleadas no Boca, 5-1 em 1941 e 4-0 em 1942, com Moreno deixando o seu em ambas. Foi naqueles anos que o elenco riverplatense passou a ser apelidado de La Máquina. Mas, após o Boca ser bi em 1943-44, Moreno foi ao México, onde atuou pelo extinto Real España. No futebol asteca, recebeu o apelido pelo qual mais ficou conhecido: El Charro.

Sua volta à Argentina, em 1946, foi estrondosa. O estádio do Ferro Carril Oeste não suportou o mar de gente e alguns alambrados desabaram, interrompendo por meia hora o jogo, encerrado em River 5-1 Atlanta com três gols do atacante. Em 1947, ele acompanhou a revelação Di Stéfano em novo título argentino e na Copa América em que a seleção terminou tri seguida, algo não repetido antes ou depois no torneio (veja); por estar no México, Moreno não estivera nas taças de 1945 e 1946 do torneio de seleções. Mas em 1948, veio a greve de jogadores cujas exigências acabariam não atendidas. Àquela altura, Moreno era o mais vitorioso jogador do River, pentacampeão argentino pelo Millo.

Muitos grevistas, como o próprio Di Stéfano, foram à Colômbia, então um Eldorado do futebol. Moreno, que fora o primeiro a sair, preferira a Universidad Católica, onde foi campeão em 1949. Neste mesmo ano, o Boca simplesmente lutou contra o rebaixamento. A reação foi contratar Moreno, crescido no próprio bairro de La Boca. Nos cinco primeiros jogos, amistosos, 4 gols. Mas uma contusão na primeira rodada do campeonato de 1950, contra o Racing, o afastou por dois meses. Quando ele voltou, o clube ficou invicto da 14ª à 25ª jornada e acabaria vice-campeão. Moreno, então com 34 anos, acabou voltando rapidamente à seleção, tornando-se só o segundo a jogar por ela tanto por Boca como por River. O primeiro, Francisco Taggino, o fizera três décadas antes.

Mas não seguiu no Boca: voltou à Católica e passou por Defensor Sporting (Uruguai), Ferro Carril Oeste e parou no Independiente Medellín, como campeão colombiano. Até então, ninguém havia sido campeão nacional em quatro países diferentes. Apesar de torcedor do Boca e de ter jogado nele, Moreno foi velado há 35 anos em um salão do River, como pedira. Uma outra última homenagem veio do clube onde vinha trabalhando como técnico: o pequeno Deportivo Merlo, da Grande Buenos Aires, batizou seu campo de Estádio José Manuel Moreno. A equipe também passou a ser apelidada de Los Charros.

Na frente, Ricardo Vaghi, Luis Antonio Ferreyra, Moreno, José Ramos e Héctor Grisetti; atrás, Norberto Yácono, Alfredo Di Stéfano, Ángel Labruna, Hugo Reyes e Félix Loustau: o River comemorando o título de 1947 no cabaré El Marabú
Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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