EspeciaisEstudiantes

Miguel Ángel Lauri: 1º argentino a vencer o Francesão, 1º a defender Argentina e França

A história está repleta de argentinos que, além da Albiceleste, defenderam outra seleção. Mas normalmente a troca de camisas se dá pela da Itália, com a Azzurra recebendo treze dos vinte bi-nacionais hermanos. Quatro outros na realidade nasceram no estrangeiro, adotando depois a Argentina. Miguel Ángel Lauri, que nasceu há 110 anos em Berisso, na Grande La Plata, está entre os outros três, junto de Alfredo Di Stéfano (Espanha) e Héctor de Bourgoing (também França, na Copa de 1966). Grande ídolo do Estudiantes, El Flecha de Oro também foi o primeiro argentino a ganhar a Ligue 1, e pelo hoje modesto Sochaux. Virou Bleu. Hora de relembra-lo.

A origem de Lauri é na realidade incerta. As Wikipédias da vida informam que teria vindo ao mundo em Zárate, em outro canto da província de Buenos Aires. O livro Quién es Quién en la Selección Argentina, de 2010, é quem indica a cidade de Berisso, e informa que o sobrenome original da família seria Larroi, terminando mal registrado na imigração. O Football Data Base vai além e indica que a origem do jogador seria franco-basca; já fontes da época falam desde que os antepassados vieram dos Pirineus e até mesmo que de francês Lauri não teria nada, sendo filho de italianos… mais certo é que seu primeiro clube foi o Estrella, passando ainda como juvenil ao Estudiantes. Era inicialmente escalado na meia-direita, a posição onde mais gostava de atuar.

Porém, lhe seria exigido um deslocamento à ponta-esquerda, para aproveitar melhor outros bons meias que surgiam na base na mesma época, casos de Alejandro Scopelli e de Manuel Ferreira – ambos futuramente presentes na seleção vice-campeã em 1930. A exigência tinha outro fundamento: Lauri era muito, muito veloz, e além de bons cruzamentos sabia unir a vertigem de seus piques com disparos fortes. Isso e os cabelos loiros renderam a alcunha de Flecha de Oro. Lauri ocupava a ponta-esquerda até ser novamente deslocado, agora para a ponta-direita, depois que surgiu Enrique Guaita – por sua vez, outro argentino bi-nacional, presente na Itália campeã mundial de 1934. Lauri viraria o complemento perfeito de Scopelli (também bi-nacional com a Itália e um dos primeiros argentinos globalizados do futebol) em um dos melhores flancos direitos do futebol argentino.

A estreia no time adulto veio em vitória de 1-0 sobre o River, em 1926. Em tempos de futebol ainda oficialmente amador, dividia a bola com graduação em direito, sendo também apelidado de El Estudiante. A primeira grande campanha com o Estudiantes veio em 1928. Naquele ano, após dois campeonatos abaixo do 10º lugar, os pincharratas ficaram em 3º em um torneio só finalizado em meados de 1929, com direito a um 10-0 sobre o Defensores de Belgrano. Em agosto, o clube foi muito bem contra times italianos que excursionavam pela América do Sul: no dia 8, aplicou um 5-0 no Torino, na pior derrota grená nos nove jogos realizados pelo Rio da Prata, com a partida sendo finalizada aos 35 minutos do segundo tempo; no dia 30, empatou em 3-3 com o Bologna. Lauri foi titular nas duas partidas, marcando gol na segunda.

Argentina em 28-08-1929: Juan Evaristo, Felipe Cherro, Ángel Bosio, Luis Monti, Rodolfo Orlandini e Fernando Paternoster; o massagista Chichilo Sosa, Lauri, os colegas de Estudiantes Scopelli e Ferreira, Juan Maglio e Carlos Spadaro

Hoje modestos, ambos os adversários eram as grandes potências italianas na época, vencendo os três últimos campeonatos de lá (embora o Toro tivesse o título de 1927 revogado na justiça). Assim, Lauri estreou pela seleção argentina no mês seguinte, em 20 de setembro, em derrota de 2-1 para o Uruguai em Montevidéu pela Copa Newton. No dia 28, esteve no 0-0 em Avellaneda contra o mesmo adversário, agora pela Copa Lipton (ambos troféus bi-nacionais). O embalo do Estudiantes não se manteve para o campeonato argentino próprio de 1929, onde ficou em 10º em grupo de dezoito liderado pelo rival e futuro campeão Gimnasia LP; parte disso talvez se explique com o desfalque do trio Lauri, Ferreira e Scopelli, todos emprestados a uma excursão que o Sportivo Buenos Aires faria pelas Américas – a etapa chilena começou ainda em 1929, rendendo um 1-0 no Colo-Colo e um 5-1 no Everton de Viña del Mar como resultados mais destacados.

No Peru, empatou-se em 2-2 com a própria seleção peruana. Nessa etapa, Ferreira e Scopelli, lesionados, voltaram à Argentina. Lauri seguiu viagem, participando das primeiras partidas que um clube argentino fez na América do Norte. Os mexicanos se deleitaram ao verem os portenhos vencerem por 4-0 o Necaxa, por 6-0 o Asturia, por 1-0 e por 3-1 o América, por 3-0 e 3-1 o Real España. A turnê se encerrou com três derrotas no Brasil, mas o Sportivo retornou em abril de 1930 festejado a Puerto Madero – seu atacante Carlos Peucelle iria à Copa do Mundo, marcando gol na final. Lauri, porém, acabou esquecido na convocação. Em 13 de julho, enquanto a Copa começava no Uruguai, uma virtual seleção B com o ponta em campo venceu por 3-1 o Hakoah All Stars do centromédio Béla Guttmann.

No dia 3 de agosto, três dias após a final mundial, Lauri voltou a enfrentar e vencer por 3-1 o Hakoah, agora pelo Estudiantes. O time de La Plata, em paralelo, terminaria no vice-campeonato do torneio argentino de 1930. Uma prévia do que viria no ano seguinte. Os principais clube do país romperam com a associação reconhecida pela FIFA para organizar um campeonato economicamente interessante, que também permitia o profissionalismo. E a grande sensação do primeiro torneio da nova era foi o Pincha, em um ataque avassalador de 103 gols, nada menos que dezoito a mais que o campeão Boca e 21 a mais que o vice San Lorenzo. Contamos aqui a trajetória daquele quinteto ofensivo apelidado de Los Profesores. Os já citados Lauri, Scopelli, Guaita e Ferreira foram complementados pelo centroavante Alberto Zozaya, artilheiro da competição com 33 gols – com Scopelli sendo vice com 31.

Lauri não se destacou tanto pelos gols próprios, anotando só sete, e sim por municiar os outros quatro. A fórmula rendeu as seguintes marcas pioneiras no profissionalismo: o primeiro time a marcar 7 gols em um jogo, sobre o Chacarita, na 3ª rodada (Ferreira fez um); o primeiro a marcar 8, no Lanús, na 14ª, com dois do Nolo (a superioridade foi tamanha que o juiz finalizou o jogo aos 23 do segundo tempo: os grenás fizeram dos pinchas os primeiros a vencerem por W.O. também); o primeiro a marcar nove, sobre o Ferro, na 23ª. Todos vencidos sem marcar um único gol.

O (hoje extinto) Sportivo Buenos Aires na turnê de 1929-30, recheado de astros emprestados. Botasso, Orlandini, Ferreira e Scopelli jogariam a Copa de 1930. Arrillaga jogaria no Fluminense

O time teve ainda outras goleadas além das mencionadas: 5-2 fora de casa no Ferro, 5-2 no Independiente (ambos com gols de Ferreira), 4-0 fora de casa no Platense, 5-1 no Argentinos Jrs, 6-1 no Atlanta, 4-2 fora de casa no Quilmes, 6-3 no Racing (com novo gol do capitão), 4-1 no Huracán e no próprio Boca na antepenúltima rodada… essa partida adiou o título do Boca para a penúltima rodada, com a taça só sendo consumada não pelo triunfo do concorrente e sim por surpreendente derrota em paralelo dos pincharratas. Eles ainda mantiveram o ímpeto na rodada inicial do torneio de 1932: 6-1 no clássico com o Gimnasia, a maior goleada no dérbi platense até 2006.

O Estudiantes decaiu para sexto em 1932, com Lauri marcando oito gols. No início de 1933, ele então realizou dois amistosos pelo combinado da liga: derrota de 2-1 em Montevidéu em janeiro e 4-1 em Avellaneda em fevereiro. Ao fim daquele ano, veio um triunfo de 1-0 em Montevidéu em dezembro. Essas partidas depois foram convalidadas como jogos das seleções argentina e uruguaia; na época, as seleções oficiais ainda estavam atreladas às associações reconhecidas pela FIFA. No caso argentino, isso privou Lauri e outros astros de jogar a Copa de 1934, na qual a Albiceleste foi representada por amadores. O Estudiantes, em paralelo, começou a ter seguidos desfalques nos Profesores. Em 1933, Ferreira foi ao River, enquanto Guaita e Scopelli foram adquiridos pela Roma.

O clube ficou em 10º em 1933 e em 5º em 1934, longe de disputar a taça. Lauri seguia fundamental, mantendo até a média dos seus golzinhos (sete em 1933, nove em 1934). Assim, em janeiro de 1935 ele participou da Copa América, o primeiro torneio em que a seleção voltou a contar com os melhores jogadores, após a reunificação das ligas argentinas. O ponta esteve nos dois 4-1, sobre o Chile (marcando seu único gol pela Albiceleste) e o anfitrião Peru, bem como na derrota final de 3-0 para o campeão Uruguai. O Estudiantes não terminaria 1935 além do 7º lugar, mas Lauri crescia. Marcou dez vezes no campeonato e assim ainda foi empregado mais algumas vezes pela seleção: em julho, esteve em dois jogos contra o combinado Atlético de Madrid/Espanyol (1-1 e 1-0).

As atuações contra os espanhóis foram registradas como das mais belas que teria proporcionado na opinião de García Cueto, em matéria que enviou como correspondente argentino para o Paris Soir já para 9 de abril de 1937; ainda em julho, reencontrou o Uruguai pela Copa Héctor Gómez (1-1), em Montevidéu. Por fim, esteve na vitória de 3-0 em agosto pela Copa Juan Mignaburu, em Avellaneda. Lauri ainda defendeu o Estudiantes no início do torneio de 1936. O clube recusou uma oferta do Boca, um mal negócio. Logo o ponta forçou transferência à Europa, requisitado pelo clube de Jules Rimet, o Red Star de Paris. Porém, terminou acertando com o Sochaux. O que não era um mal negócio: já patrocinado pela Peugeot, o clube havia vencido na temporada 1934-35 pela primeira vez a Ligue 1, por sinal fomentada exatamente por este clube, idealizador de uma liga federal, implantado em 1933, em um país de torneios ainda regionalizados até então.

Os “Profesores”: Lauri, Scopelli, Zozaya, Ferreira e Lauri. À direita, Lauri pela Argentina

Talvez mais preponderante do que esses fatores seja o fato de que a equipe borgonhesa abrigava uma colônia platina. O treinador uruguaio Conrad Ross mandou importar os compatriotas Héctor Cazenave, Ramón Ithurbide, Ramón José Irigaray e Pedro Duhart – só Irigaray não defenderia a seleção francessa. A outra fonte era o Estudiantes, que perdeu Lauri e também Oscar Tellechea e Raúl Sbarra. A temporada 1936-37 da Ligue 1 terminou decidida no saldo de gols, favorecendo o Olympique de Marselha em seu primeiro título francês. O Sochaux ficou com a mesma pontuação, mas como vice. Mas a Copa da França não escapou a quem quase conseguiu a dobradinha. O clube venceu de virada, por 2-1, a final contra o Racing de Estrasburgo. E foi de Lauri o gol do empate, em chute forte no ângulo, na decisão travada em 9 de maio no estádio parisiense de Colombes.

Duas semanas depois da taça, o argentino voltava a pisar no gramado olímpico de Colombes. Agora, para defender a seleção francesa contra a Irlanda. “Michel” Lauri não foi o primeiro argentino nos Bleus, que já usavam hermanos havia mais de 20 anos, mas foi o primeiro aproveitado pela França após ter defendido a Albiceleste. Não tinha, ainda, passaporte. E não foi a derrota de 2-0 para os irlandeses que atrapalhou: ao requerer a cidadania, assustou-se com a exigência de servir o exército local. Preferiu regressar ao Rio da Prata e foi incorporado pelo Peñarol para o restante de 1937. Não era uma má escolha; foi campeão uruguaio em uma campanha com direito a ultrapassar o arquirrival Nacional em pleno clássico na penúltima rodada. Com gol do argentino, os aurinegros venceram por 4-0 os tricolores. Despediu-se do Peñarol em fevereiro de 1938, após a Copa Rio da Prata com o campeão argentino, o River.

Lauri voltou ao Sochaux a tempo de figurar no elenco campeão francês de 1937-38, com o troco nos marselheses, vices dois pontos abaixo. Foi o segundo e último título do Sochaux na Ligue 1, o suficiente para fazer dele o maior campeão isolado da competição. Somente em 1955 a equipe da Peugeot seria superada, primeiramente pelo terceiro título do Stade de Reims, a grande potência gaulesa da época. Não foi o bastante para Michel ser incluso na seleção na Copa do Mundo de 1938, realizada na França – cuja seleção tinha toda a sua defesa titular proveniente do Sochaux, com o goleiro Laurent Di Lorto e a dupla de zaga formada por Étienne Mattler e o uruguaio Cazenave. Em 1939, foi a vez de ele se assustar com o estouro da Segunda Guerra Mundial.

Ele tentou voltar ao futebol uruguaio, agora acompanhado por Cazenave. Porém, dessa vez o Sochaux foi mais enérgico e segurou o passe do jogador, impossibilitado de seguir regularmente a carreira fora amistosos aqui e acolá. Também já tinha mais de 30 anos, idade ainda mais elevada para a época. Seguiu sustentando-se trabalhando em um frigorífico. Ele faleceu em 26 de setembro de 1994 em La Plata, um mês após o seu Estudiantes, longe dos melhores tempos embora já tivesse os jovens Palermo e Verón, sofrer rebaixamento. El Flecha de Oro era o último remanescente dos Profesores, perdendo de vez o convívio com Guaita em 1959, com Zozaya em 1981, com Ferreira em 1983 e com Scopelli em 1987.

Dois títulos nacionais em seis meses: no Peñarol em dezembro de 1937 e na imagem do Sochaux em 1º de maio de 1938, dia do título francês de 1937-38: Pedro Duhart (de casaco), János Szabó, Maxime Lehmann, Étienne Gredy (diretor), Lauri, Étienne Mattler, Laurent Di Lorto, Roger Hug, Héctor Cazenave e Conrad Ross (treinador); Pierre Korb, Curt Keller, Ferdinand Faczinek e Árpád Belko

https://twitter.com/EdelpOficial/status/857300756390694913

 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

One thought on “Miguel Ángel Lauri: 1º argentino a vencer o Francesão, 1º a defender Argentina e França

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

1 × 2 =

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.