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Menottismo x Bilardismo: duas escolas de futebol argentino (I)

Durante a década de 1980, nasceu um debate que polarizou intensamente o mundo do futebol argentino. Era uma disputa entre duas concepções diferentes de futebol. Cada uma recebeu o nome do seu mais famoso defensor entre os treinadores. De um lado, os que tinham por ídolo César Luis Menotti, campeão mundial pela seleção argentina em 1978. De outro, os que seguiam a visão futebolística de Carlos Salvador Bilardo, que também conquistou um título com a Albiceleste, em 1986.

Uma boa maneira de expor as duas visões é comparar os trabalhos mais lembrados dos dois treinadores, as seleções campeãs mundiais.

A seleção argentina de 1978 tinha um estilo de jogo muito tradicional, dentro dos padrões clássicos do futebol argentino. Uma sólida linha de quatro defensores, com um lateral que era basicamente um zagueiro pelo lado (Olguín) e outro com maior liberdade ofensiva (Tarantini). À frente da zaga, um volante com funções mais defensivas (Gallego) e um armador que era a mola-mestra da equipe (o incansável Ardiles). O terceiro homem de meio de campo era Mario Kempes, atuando quase um atacante.

Como o time usava dois ponteiros à moda antiga (Bertoni e Houseman ou Ortiz) e um centroavante fixo (Luque), o desenho tático era quase um 4-2-4, sistema muito usado na América do Sul nos anos 1960. Para efeito de comparação, naquela mesma copa a seleção brasileira utilizou um sistema bem mais cauteloso, com dois volantes (Batista e Cerezo) e um ponta bastante recuado (Dirceu).

Em 1986, a Argentina surpreendeu o mundo com seu 3-5-2 (ou, com mais precisão, o 3-4-1-2), sistema que seria copiado por muitas seleções nos anos seguintes (inclusive a nossa, campeã assim em 2002). Bilardo usava três zagueiros (Cuciuffo, Ruggeri e Brown), tendo à frente uma segunda linha, com quatro volantes (Batista, Giusti, Enrique e Olarticochea). Burruchaga atuava à frente dessa linha de volantes, mas não como enganche típico; tinha também considerável papel na marcação.

No ataque, jogavam o artilheiro Valdano e Diego Maradona. Que, na verdade, não era nesse sistema um atacante clássico. Postava-se à frente mas com frequência recuava para armar o jogo como um típico enganche (talvez hoje esse sistema fosse definido como um 3-4-2-1, como o de alguns clubes argentinos da atualidade).

Mais importante que a distribuição dos jogadores pelo campo, era a filosofia de jogo. A seleção de 1978 gostava de ter a bola nos pés. O futebol clássico argentino tinha essa característica como base, resultando em jogadores com toque de bola muito refinado (Conca, D’Alessandro e Montillo ainda são representantes dessa longa tradição). O time de Menotti tocava a bola e, no bom sentido, agredia o adversário. Os gols da Albiceleste naquele mundial nascem esmagadoramente de jogadas trabalhadas, com a bola passando de pé para pé.

O time de Bilardo tinha outra característica. Se sentia melhor postado mais atrás, esperando o adversário e matando o jogo em contra-ataques fulminantes. Salvo os gols nascidos de jogadas individuais de Maradona, os gols daquele selecionado eram geralmente marcados em contra-ataques (como os de Valdano e Burruchaga na decisão).

A discussão entre esses dois estilos de jogo era apaixonada, até por aparecer misturada com outros debates sobre visões de mundo (romantismo/utilitarismo), política partidária (peronismo/anti-peronismo) e projetos para o país (nacionalismo/globalização). A década de 1980 viu esse debate pegar fogo, até porque se deu em um contexto de redemocratização. Após anos de silêncio finalmente se podia falar de tudo, e era a hora de reconstruir o país.

Mas qual país? No campo do futebol, a discussão se radicalizava. Torcedores, jogadores, treinadores, jornalistas, todos se dividiam de forma irreconciliável. Na imprensa, por exemplo, havia até veículos inteiros que eram afiliadas a uma ou outra corrente. Na rádio Mitre, Víctor Hugo Morales, Fernando Niembro, Alejandro Apo, Titi Fernández e Marcelo Araujo eram bandeiras do bilardismo (depois Morales foi para a Continental, ainda hoje grande defensora da corrente). Já a seção esportiva do jornal Clarín sempre foi reduto histórico do menottismo.

Em toda essa discussão, o nível nem sempre foi elevado. Frequentemente, a virulência dos debates acabava simplificando tremendamente os conceitos das duas escolas. Para muita gente, menottismo acabou sendo sinônimo de não se importar com a vitória, e entrar em campo pensando em dar show. Já o bilardismo acabou sendo reduzido muitas vezes a uma tendência para a qual a única coisa que importa é a vitória. Duas grosseiras simplificações de complexos conceitos.

E esse debate ainda existe. Só que se dá em um contexto muito diverso. O clima radical perdeu a força, uma mudança que tem várias explicações. Essas duas grandes matrizes do futebol argentino ainda são as grandes referencias por lá. Mas há outros jogadores em campo. Para saber mais sobre isso, leia amanhã a continuação deste especial.

Tiago de Melo Gomes

Tiago de Melo Gomes é bacharel, mestre e doutor em história pela Unicamp. Professor de História Contemporânea na UFRPE. Autor de diversos trabalhos na área de história da cultura, escreve no blog 171nalata e colunista do site Futebol Coletivo.

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