Amanhã a Libertadores conhecerá um vencedor inédito, que pode ser o San Lorenzo, que seria o oitavo clube argentino campeão. O primeiro, simbolicamente, foi recordista de títulos na competição: o Independiente, que ergueu-a sete vezes, a primeira delas há exatos 50 anos. Com direito a brasileiro no elenco, ainda que reserva, e a vencer no Brasil o então bicampeão Santos por 3-2 após estar perdendo por 2-0, feito tamanho que a comemoração por essa façanha, na semifinal, é que estampou a capa da revista El Gráfico que celebrou o título, e não alguma foto da decisão. O clube vermelho de Avellaneda foi também o primeiro campeão invicto da competição. O Rey de Copas estava bem nascido.
Aquele Independiente campeão, basicamente, era o mesmo time que venceu o campeonato argentino no ano anterior, título retratado neste Especial. A única alteração foi a afirmação de um futuro mito entre as traves: o goleiro Miguel Pepé Santoro, no clube desde 1962 mas na época ainda visto como terceira opção para a posição. O titular era Osvaldo Toriani, e Hugo Trucchia o reserva imediato. Os demais destaques já estavam bem fixados entre os titulares: o uruguaio Tomás Rolán na zaga esquerda, Roberto Pipo Ferreiro, David Acevedo e Jorge Maldonado como meias de contenção. Destaque especial a Ferreiro, que treinou o clube na primeira vez que venceu-se a Intercontinental, em 1973; e a Maldonado, presente desde as vacas magras que foram os anos 50 (o Rojo passou pelo seu pior jejum ali, não ganhando nada entre 1948 e 1960) e que se retiraria do Independiente naquele ano.
Era Maldonado também quem liderava a característica apresentação dos diablos, posicionando-se à frente dos colegas enfileirados lado a lado para saudar as tribunas. Na frente, o quinteto com Raúl Bernao (um fã de Garrincha que adorava buscar imitá-lo) e Raúl Savoy (que desequilibrava pela ponta-direita mesmo sendo canhoto) nas pontas e Osvaldo Mura, Mario Rodríguez e às vezes Pedro Prospitti como meias-ofensivos. O centroavante era o Luis Suárez argentino, na época em que o principal jogador com esse nome era o espanhol da Internazionale. Dos destaques do campeão nacional de 1963, o único ausente foi o áspero beque Rubén Hacha Brava Navarro, com a perna quebrada.
A Libertadores era diferente: ela, que só ganhou esse nome naquele ano de 1964, chamando-se até então de Copa dos Campeões como seu equivalente europeu, de fato só admitia campeões dos dez países confederados na Conmebol (também só a partir de 1966 é que vices foram admitidos) mais o detentor do título anterior. O Bahia, vice brasileiro de 1963, só fora admitido porque a campeão Santos já tinha vaga como campeão da Libertadores 1963, sobre o Boca. Dessa forma, a Libertadores 1964 só teve três grupos, cada um com três clubes. Os líderes avançavam às semifinais, onde o Santos entraria na disputa. A chave do Independiente tinha Alianza Lima e Millonarios.
Os argentinos acabaram beneficiados, pois não jogaram fora de casa. O estádio Nacional de Lima estava fechado por conta da tragédia que matou mais de 300 pessoas que assistiam às seleções de Peru e Argentina no pré-olímpico para os Jogos de Tóquio. Assim, o Alianza topou mandar seu jogo em Avellaneda mesmo, no estádio do Racing. Na Doble Visera, estreando contra os peruanos, os rojos fizeram 4-0, com Savoy, Rodríguez (dupla desde os tempos de Chacarita e que haviam repetido a parceria também na seleção na Copa América 1963), Rolán e Suárez. Quatro dias depois, no quarteirão ao lado, onde fica o estádio racinguista, os visitantes endureceram como se de estivessem mesmo em casa, até demais.
O Alianza teve dois expulsos, mas conseguiu um 2-2, com Pedro León marcando os do Alianza e Savoy, também duas vezes, fazendo os dos argentinos. Foi essa a única partida do atacante Benny Guagliardi na campanha campeã: brasileiro, vinha em insólita transferência desde a Ferroviária de Araraquara, mas não se firmou. Três dias depois, em 7 de junho, era a vez de encarar o Millonarios. E a Doble Visera viu novo massacare: 5-1, com Rodríguez e Suárez marcando dois cada e Savoy fechando a conta. Os colombianos eram a principal ameaça à vaga, pois souberam aproveitar o fato de enfrentar duas vezes em casa os peruanos e venceram ambas.
Se os argentinos perdessem em Bogotá, estariam fora, mas diferenças surgidas entre a Conmebol e a federação colombiana cancelaram o jogo e deram os pontos ao Rojo. A “vida fácil” acabaria nas semifinais: os hermanos teriam que pegar o Santos, ainda que sem Pelé do outro lado. O Rei estava machucado e não pôde atuar nas duas partidas. Dorval, Coutinho e Mengálvio também não estariam lá. Mas, com todos eles em campo, o Santos já havia enfrentado o Independiente naquele ano, na inauguração da iluminação noturna da Doble Visera, em 1 de fevereiro. Levou de 5-1.
Vale lembrar ainda que os alvinegros souberam vencer o Milan na Intercontinental de 1963 também sem um machucado Pelé. Gilmar, Dalmo, Zito, Lima, Toninho Guerreiro, Almir Pernambuquinho e Pepe estavam aptos para pegar o Independiente. Os praianos resolveram usar o Maracanã em vez da Vila Belmiro ou algum estádio paulistano, medida comum na época e que costumava dar certo. Pelé foi visto como opção até o último momento, mas sua coxa não passou na avaliação física. Preparo físico, aliás, era a chave daquele Independiente: o técnico Manuel Giúdice não tinha tática pré-estabelecida e variava a ordem dos jogadores em campo conforme o que via já em jogo nos adversários. Giúdice exigia dos comandados exatamente um bom preparo, coordenado pelo assistente Horacio González García, El Gallego. E isso, naqueles tempos, fez a diferença.
“O quadro argentino é muito rápido. Seus jogadores correram o tempo todo, não dando chance ao nosso. Não faço nenhuma restrição ao triunfo do Independiente”, afirmou na época o técnico santista, Lula, ao Jornal do Brasil, que após matérias como “Conspiração subversiva” e “Lealdade à revolução”, mostrou que já naquela época se usava a música “Sí sí señores, yo soy del Rojo, sí sí señores, de corazón, porque este año, de Avellaneda, de Avellaneda, salió el nuevo campeón“, usada nos vestiários pelos argentinos. Ali também notou-se que “ninguém se preocupava com prêmios, pois achavam que a vitória sobre o Santos era o melhor que podiam receber. O assunto será discutido em Buenos Aires. (…) Paflik, que havia jurado que rasparia a cabeça caso ganhasse do Santos, disse que vai cumprir a promessa”.
“O Santos foi um time medíocre, sem nenhum poder ofensivo e com uma defesa falha do começo ao fim do jogo”, escreveu-se também, com o jornal reconhecendo que os gols brasileiros se deveram mais à desatenção argentina, registrando que “o goleiro Toriani foi quase perfeito, pois falhou apenas no primeiro gol do Santos, quando, apesar da violência do chute e da bola ter passado pela barreira, poderia ter defendido porque a falta foi de longe” e que “Maldonado dominou completamente o seu setor e numa das poucas vezes em que falhou, Peixinho marcou para o Santos”.
Por um momento, após Pepe abrir o placar na falta, o Independiente se desesperou, buscando afoito o ataque. O gol de Peixinho, aos 34 minutos, veio no contragolpe e parecia definir as coisas, mas em três minutos veio mais tranquilidade aos argentinos. O reserva Miguel Mori (que venceria o torneio também pelo rival Racing, em 1967) entrou três minutos depois, substituindo Acevedo, e imediatamente armou a jogada para o primeiro gol rojo, cruzando para Rodríguez diminuir. E antes do fim do primeiro tempo veio o empate: Savoy, Suárez e Bernao trocaram passes diante da defesa santista e e este fez o gol, aos 45 minutos. O segundo tempo teve chances para os dois lados, mas só um gol.
O tento foi novamente aos 45 minutos: Savoy, Rodríguez e Suárez trocaram passes e este marcou o gol da virada, com a bola desviando em Modesto e enganando Gilmar. Festejo histórico que a revista argentina El Gráfico retratou na capa a celebrar o título, e de forma também histórica: foi a primeira vez em que ela resolveu estender a foto para a contracapa também. Ressacados, os rojos perderam para o River pelo campeonato argentino e, enervado, o Santos fez 5-1 no São Paulo na semana que se passou até o jogo da volta. Em Avellaneda, estariam presentes o técnico do Nacional uruguaio (já classificado à final), o brasileiro Zezé Moreira, e o da Internazionale (campeã europeia), o argentino Helenio Herrera.
Em Avellaneda, embora o árbitro tenha deixado passar uma cotovelada de Almir em Savoy, “os brasileiros foram quase sempre dominados e não tiveram meios de continuar lutando pelo seu terceiro título consecutivo. Mori, que depois foi substituído por Acevedo, e Toninho marcaram os gols do primeiro tempo, cabendo a Mario Rodríguez – o melhor jogador da partida – dar a vitória ao Independiente. Quase no final, Guzmán e Toninho foram expulsos de campo pelo juiz, por terem trocado pontapés”, resumiu o Jornal do Brasil. Mori se contundira aos 30 minutos, inverteu de posição com Suárez e acabou presentado com o gol aos 36 (“numa jogada toda ela trabalhada por Mario Rodríguez. O meia bateu dois zagueiros do Santos, driblou Gilmar, foi até a linha de fundo e entregou para Mori com o gol vazio”), mas saiu logo depois. Só que o Santos empatou em dois minutos.
O Peixe voltou a viver na disputa após Toninho girar para chutar cruzamento de Peixinho. Mas no segundo tempo, “aos 19 minutos, Bernao driblou Dalmo, voltou, esperou que o zagueiro brasileiro se recuperasse, driblou-novamente e correu até a linha de fundo, dali cruzando para a pequena área. Gilmar saltou atrasado e Mario Rodríguez, que vinha na corrida, emendou para o fundo do gol”. Mario já havia até marcado na partida, mas em lance anulado por impedimento. “O resultado que o Independiente conseguiu jamais esteve ameaçado. Pelo contrário, foram os argentinos que estiveram mais e sempre perto do gol. E o restante da partida não teve modificação, o Independiente dominando sempre, mais tranquilo, rápido, seguro em suas jogadas de armação, e o Santos recuado, dominado, lento e sem imaginação”, concluiu o Jornal do Brasil.
A final teria um campeão inédito. O Nacional ansiava responder ao Peñarol, campeão já duas vezes que emendara cinco títulos uruguaios seguidos no início da década, igualando um orgulho que era exclusivo dos tricolores, cujo principal jogador era argentino: José Sanfilippo, maior artilheiro da história do San Lorenzo e que já brilhara na Libertadores: marcou os três gols do Boca sobre o Santos na final perdida de 1963. Só que a sorte de campeão soprou novamente ao Independiente: Sanfilippo fraturou-se em amistoso contra o Vasco antes das finais. E o terceiro goleiro rojo, Miguel Santoro, estreou no torneio pegando tudo – o titular Toriani sentira dores na costela e foi barrado, e Giúdice resolvera escolher o garoto ao invés do reserva imediato Trucchia. Santoro só deixaria a titularidade e o clube dez anos depois, a tempo de vencer também as Libertadores de 1965, 1972 e 1973. Enquanto a Europa assistia no mesmo dia Di Stéfano assinar com o Espanyol após onze anos de Real Madrid, a plateia do Centenário viu um 0-0.
Na volta, em 12 de agosto de 1964, o artilheiro Rodríguez fez o solitário gol do título após inteligente jogada de Pedro Prospitti, passando-lhe a bola em área desguarnecida pelo Nacional, entre Edgard Baeza e Emilio Álvarez. Os uruguaios, que tinham consigo o defensor Vladas Douksas, ex-Independiente, vinham se defendendo bem: embora os rojos estivessem mais ofensivos em casa, não vinham conseguindo penetrar a grande área. Rodríguez também foi engenhoso ao receber o passe, tocando a bola com o calcanhar para a bola cobrir-lhe e emendou para fora do alcance do goleiro Roberto Sosa, aos 35 do primeiro tempo. O bastante para criar mística copera do futebol argentino: “o do Independiente é exemplar. Tem a virtude de reposicionarmos no mundo. Nos cotiza novamente no mercado internacional. Assinala (…) um caminho a seguir”, determinou na época a El Gráfico.
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