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Quando o Rei recuperou a coroa: a Sul-Americana do Independiente sobre o Goiás

Os capitães Tuzzio (na maior parte da campanha) e Matheu (que atuou na decisão após oito meses lesionado) erguem a Sul-Americana: fim do pior jejum internacional do Independiente. Nota originalmente publicada no aniversário de cinco anos da conquista, em 2015.

A data de 8 de dezembro é das mais icônicas da história do Independiente. Em 2006, foi nela que o clube realizou sua última partida no tempo da Doble Visera. Em 1953, bateu por 6-0 o Real Madrid de Di Stéfano dentro do Bernabéu, ainda hoje a pior derrota madridista em casa. Em 1948, encerrou dez anos de jejum nacional. E em 2010 foi a vez de encerrar a pior seca continental, sentida demais a quem tornara-se Rey de Copas. Esse é o grande valor daquela Sul-Americana de 2010, vencida muito mais pelo peso da camisa do que pelo jogo vistoso mostrado em 2017 pelos pupilos de Ariel Holan. E foi o primeiro título internacional argentino acompanhado do início ao fim pelo Futebol Portenho, que o resgatará com matérias da época.

A crise institucional, traduzida nos dois jejuns, reverberava. Em 24 de agosto, a tão somente três dias da estreia, noticiávamos que dirigentes e torcedores não falavam a mesma língua, mencionando que o Estádio Libertadores da América (construído no lugar da saudosa Doble Visera) havia sido inaugurado ainda incompleto; que a dívida de 200 milhões de dólares ia na contramão de recente declaração do presidente Julio Comparada de que sob seu comando o clube crescera institucionalmente; além da insatisfação do torcedor comum com o trabalho do manager César Luis Menotti e com a relação promíscua do presidente Comparada com os barrabravas.

O Independiente, que havia acabado de ser derrotado pelo River no Apertura 2010, ainda não havia vencido no torneio caseiro. No dia da estreia, mais protesto, com dezenas de cartazes contra Comparada fixados nos arredores do estádio e críticas ácidas do ídolo Daniel Bertoni (autor do último gol da Copa de 1978 e presente nos três últimos títulos do tetra seguido na Libertadores nos anos 70) contra suposta complacência da mídia em abafar vozes críticas ao dirigente. Em campo, com três alterações em relação ao time derrotado pelo River, o Rojo estreou na Sul-Americana batendo por 1-0 o Argentinos Jrs, merecidamente. Foi a primeira vitória de Daniel Garnero como técnico da equipe, que não por acaso era a lanterna do Apertura.

Garnero era justamente o único remanescente dos últimos títulos internacionais, sendo um dos meias-armadores da Supercopa 1994, da Recopa 1995 e da Supercopa 1995 (na qual não ficou até o fim por lesão), conquista que completou 15 anos na antevéspera da segunda final contra o Goiás. A idolatria era passado, a ponto de ele desabafar após a partida seguinte pelo Apertura (derrota em casa para o Arsenal) que “não é porque se paga ingresso que o torcedor pode nos insultar“. Na partida de volta contra o Argentinos Jrs, fora de casa, o Rojo aguentou bem a pressão e arrancou um 1-1. Adrián Gabbarini, então goleiro titular, dedicou a vitória à Garnero.

Mas o Rojo seguia patinando. Não venceu em casa o “co-lanterna” Quilmes em jogo fraquíssimo pelo Apertura e na sequência levou de 4-0 do Banfield, confirmando o pior início de temporada roja desde o Clausura 2003. Comparada já não escondia a possibilidade de readmitir Américo Gallego, antecessor de Garnero e não renovado no cargo pelo dirigente justamente por falta de confiança embora o clube, sob Tolo Gallego, houvesse lutado pelo título nos dois campeonatos anteriores (Apertura 2009 e Clausura 2010); e, sobretudo, sido campeão pela última vez, no Apertura 2002 (e com um time recordista de gols na história dos torneios curtos). Credenciais e sobretudo idolatria em Avellaneda não faltavam ao candidato.

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O técnico inicial, Garnero, era o único remanescente da taça internacional anterior, a Supercopa 1995. Mohamed, também ex-jogador do clube, estreou auspiciosamente: vencendo o Racing (pelo nacional), contra quem catimba na imagem

Garnero realmente saiu após o vexame e Menotti, em solidariedade, renunciou, disparando contra a diretoria e frisando que ex-técnicos do clube como Julio César Falcioni e Claudio Borghi haviam conseguido títulos tão logo o deixaram – eram precisamente os campeões do Apertura 2009 e do Clausura 2010, por sinal. Paralelamente, quem acabaria substituindo Garnero se desligava de dois bons anos no Colón: Antonio Mohamed (quem, treinando o Tijuana, quase eliminou o campeão Atlético da Libertadores 2013), que só viria a assumir o Rojo cerca de dez dias depois, a certo contragosto de Comparada, que no período sondara Enzo Trossero, Nery Pumpido e Jorge Fossati.

Enquanto Mohamed não chegava, o Independiente enfim venceu no Apertura, mas a crise não arredava: quatro dias depois, barrabravas interferiram em assembleia sobre as contas do clube e a equipe atuou muito mal na Sul-Americana, merecendo perder por mais de 1-0 do Defensor no Uruguai. Mohamed estrearia justo no clássico com o Racing, pelo Apertura. Foi decisão de El Turco barrar o aniversariante do dia, o então goleiro titular Gabbarini, que voltara do departamento médico havia poucas semanaspara apostar em Hilario Navarro.

Deu certo. O Independiente venceu por 1-0 o clássico, com Navarro, ex-jogador do arquirrival, sendo a grande figura (pois o Racing tivera mais chances de gol) e inspirando até trocadilho com música da Xuxa. Já até se falava em fim da crise. Mas logo houve derrota para o All Boys, com os reservas rojos apáticos contra um adversário que vinha de três derrotas. Com metade do campeonato caseiro já desenrolado e 16 pontos atrás do líder, Mohamed assumia em empregar reservas no Apertura.

A aposta foi premiada: a classificação contra o Defensor veio, de forma emocionante – os uruguaios abriram 1-0, obrigando os argentinos a fazerem três gols, todos realizado ainda antes dos 27 do primeiro tempo. O Defensor diminuiu no segundo tempo e o gol da classificação veio a quinze minutos do final. Mas nem tudo foram flores: o goleiro adversário, o futuro xodó vascaíno Martín Silva, foi apedrejado, acarretando na suspensão do Libertadores de América por uma partida. Isso obrigou o Independiente a alugar o estádio do rival Racing para a próxima parada na Sul-Americana.

O oponente internacional seguinte foi o Tolima, com quem os argentinos jogaram bem na Colômbia, em especial outra vez Navarro, arrancando no fim um vantajoso 2-2. No Apertura, os reservas evoluíam e empataram em 1-1 com o San Lorenzo, e a torcida roja, prestes a usar o estádio do Racing, provocava e sonhava: “ganhamos o clássico, agora queremos a Copa“. O Cilindro racinguista recebeu ótimo público rojo que se satisfez com um 0-0 pobre com o Tolima. Mantendo a boa fase, os reservas empataram pelo Apertura com o Olimpo enquanto os titulares arrancavam derrota heróica por 3-2 na altitude de Quito, onde a LDU de Hernán Barcos e do técnico Edgardo Bauza chegou a estar vencendo por 3-0.

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Os artilheiros da campanha campeã, cada um com três gols: Silvera (contra o Tolima), único remanescente do título anterior do clube, o Apertura 2002; e Parra (contra a LDU)

Pela liga nacional, os reservas seguiam empatando, dessa vez fora de casa com o Colón, e pelo continente os titulares conseguiram um duro 2-1 contra a LDU em Avellaneda, com novo destaque ao goleiro Navarro. Após a histórica classificação, Mohamed fez questão de parabenizar o antecessor Garnero. O ídolo-mor rojo, Ricardo Bochini, exaltava que lembrou-se “das velhas noites da Libertadores” e que a mística do Rey de Copas parecia parcialmente recuperada. Mas Bochini foi negativamente profético também:

“O Independiente jogará contra uma equipe rebaixada, e isso é o que determina a competição. Não acredito que este título seja muito relembrado e talvez essa Copa fique como algo passageiro”, temeu El Bocha. Referia-se ao Goiás, que também priorizava abertamente a Sul-Americana, sua primeira final internacional, enquanto já estava rebaixado no Brasileirão. A insólita final repercutiu para além dos finalistas: 2010 foi a primeira edição da Sul-Americana que premiaria o campeão com vaga na Libertadores seguinte, mas em contrapartida o país do campeão perderia a última vaga disponível pelo certame nacional.

O arquirrival rojo Racing disputava exatamente essa última vaga, assim como o Lanús. O lanusense Paolo Goltz declarou que o “Lanús é Goiás”, enquanto os racinguistas se dividiam: Patricio Toranzo se dizia “torcedor de carteirinha do Goiás” enquanto Gabriel Hauche bradava que deviam pensar primeiramente neles próprios e não no que ocorrer com o rival. Na última partida antes do embarque rojo à Goiânia, o Estudiantes, líder de um Apertura dali a poucos dias, derrotou  com direito a provocação do oponente Gastón Fernández, ex-Racing. E a primeira final acabou enchendo de esperança os secadores.

O Independiente foi muito mal e levou gols de Rafael Moura e Otacílio Neto com apenas vinte minutos de jogo no Serra Dourada. O 2-0 esmeraldino ficou barato, com Navarro, para variar, sendo o grande destaque argentino, enquanto inversamente o ídolo Andrés Silvera foi tolamente expulso. O veterano Silvera era inclusive o único remanescente do título anterior, o Apertura 2002, do qual fora artilheiro. Houve confusão entre as torcidas, enquanto Mohamed, ainda no pós-jogo, reforçava plena confiança.

O último treino dos argentinos foi assistido por 5 mil torcedores, recompensados com o título. Os donos da casa se tranquilizaram logo aos 19 minutos: o capitão Carlos Matheu, que ficara lesionado por oito meses após romper os ligamentos em sua estreia pela seleção e reestreava justo naquela partida, obrigou Harlei a espalmar para Julián Velázquez, sozinho, abrir o marcador no Libertadores de América. Só que três minutos depois Rafael Moura emendou cruzamento de Wellington Saci, encobrindo com cabeceio o paredão Navarro para empatar. Mas ainda no primeiro tempo os argentinos construíram o placar necessário para garantir ao menos os pênaltis.

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Festa pela primeira classificação complicada, contra o Defensor; Tuzzio após assinalar o pênalti do título

Foi com sorte de campeão. Aos 27, a zaga brasileira tentou desviar uma bola que, resvalando em Facundo Parra, pegou Harlei desprevenido. Aos 34, Parra fez o terceiro na raça, mesmo caído após dividir bola aérea com Marcão. A redonda caiu nos pés do atacante, que a empurrou às redes. “Não quis fazer os gols daquela maneira, mas valeram do mesmo jeito. As finais se ganham como se pode”, declararia o talismã. No segundo tempo, porém, o ímpeto deu lugar ao cansaço entre os rojos – que naquela noite foram azuis,. Era um pouco de superstição de a camisa reserva “escocesa” ter dado certo no título internacional anterior, a Supercopa 1995 (o Flamengo voltaria a sofrer com ela, por sinal, na revanche em 2017).

Navarro foi se sobressaindo cada vez mais, só vencido em impedimentos bem marcados. O panorama não se alterou na prorrogação. Navarro só não conseguiu pegar pênaltis, mas não foi necessário. Felipe acertou a trave na terceira cobrança brasileira. Coube à Eduardo Tuzzio acertar o penal do título, simbolizando como ninguém a volta por cima do campeão: deixara duas vezes de forma amarga o River, na primeira após traição da esposa com o Horacio Ameli (sua dupla de zaga desde os tempos de San Lorenzo), em 2005, e na segunda como bode expiatório pela lanterna no Apertura 2008.

Título e retorno à Libertadores assegurado, Mohamed explodiu: mostrando uma flâmula do Goiás, vociferou aos secadores que “isto é para os torcedores do Goiás na Argentina. Dou isso a vocês e vou buscar uma tabela da segunda divisão para que possam acompanhá-lo. Acho que jogam contra o Bragantino”. A torcida, na mesma linha, não perdoou o rival: “Racing, quer ir para a Libertadores? Visite o Estádio Libertadores da América”. Além do goleiro Navarro, outros campeões que haviam levado isso a sério foram os meias Cristian Pellerano e Nicolás Cabrera, ambos também ex-racinguistas. O torcedor alviceleste que não pôde sofrer em doses extras foi o ex-presidente Néstor Kirchner, falecido havia pouco mais de um mês. Os do Goiás migravam a frustração do orkut para o facebook.

Artilheiro da noite, Parra também tinha o que dizer: “o futebol sempre faz com que você possa dar a volta por cima. Há seis meses caí com o Chacarita e agora sou campeão continental com o Independiente”. Empolgada, a revista El Gráfico colocou Matheu, Tuzzio e Navarro entre os cem maiores ídolos do Independiente em edição especial de 2011. Mas a impressão e a volta por cima, como se sabe, não foram duradouros. Mas em menos de um ano, a conquista já tinha ares de hipoteca. A inclusão de Matheu na revista foi das mais polêmicas nos fóruns de torcedores rojos e até Navarro sofria vaias.

Afinal, 2011 foi um anticlímax. O retorno à Libertadores foi vexaminoso, com queda ainda na primeira fase, assim como na Sul-Americana. Torcedores se enfureceram também com vices na Recopa e até na Suruga Bank, títulos aguardados para o clube se igualar aos então recordistas Boca e Milan em copas internacionais. O ano novo, sobretudo, começou com jogos atrasados do desastroso Apertura 2010, com o campeão continental terminando realmente em último. Seria o primeiro dos seis torneios que pesaram para o rebaixamento em 2013. Assim, a Sul-Americana de 2010 ainda provoca sentimentos ambíguos. Maior glória possível para ampla maioria dos clube sul-americanos, mas relativizada pelo gigantismo do Independiente. Fator que escancara esse patamar do Rey de Copas.

Por que o uniforme reserva do Independiente faz referência à Escócia? Explicamos neste outro Especial.

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O jogador que talvez mais personificou a taça: o goleiro Navarro, na paródia de Xuxa e bloqueando Rafael Moura em Goiânia

https://twitter.com/Independiente/status/1336443857513435136

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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