“Frente ao Lanús, em casa, deve ganhar para entrar na Libertadores. Empata, e Barco erra um pênalti faltando 15 minutos. ‘Se segurarmos isso, em um período não muito distante vamos levantar uma taça, estou convencido’, declara o técnico após a segunda grande frustração’. Quem vai acreditar nele?”.
A frase acima consta em uma retrospectiva que a principal revista esportiva que a Argentina já teve fez em sua última edição física, em janeiro de 2018, finalizando nada menos que 99 anos de circulação. A edição n. 4489 foi dedicada a Ariel Holan, um Midas que de uma vez só conseguiu diversos feitos com a volta olímpica que seu Independiente dera naquele 13 de dezembro de 2017: finalizava sete anos de jejum, desde a edição 2010 da Sul-Americana, sobre o Goiás; fazia do Rojo o maior vencedor da própria Sul-Americana, junto aos dois títulos do Boca; reforçava o posto de único time argentino a ser campeão no Maracanã (após já ter vitimado o mesmo Flamengo na Supercopa 1995, em pleno centenário rubro-negro); dava ao clube um primeiro troféu desde o rebaixamento – pois nem mesmo campeão da segundona o outrora Rey de Copas conseguira ser – e tudo isso com um futebol vistoso, atendendo o exigente paladar da torcida. Com redenção em pênaltis ao mesmo garoto Esequiel Barco, corajoso em pedir a bola para igualar em dez minutos o placar aberto por Lucas Paquetá, em 1-1 suficiente para o capitão a receber o troféu não ser Réver e sim Nicolás Tagliafico.
O pênalti convertido por Barco também colocou o Independiente, como campeão da Sul-Americana 2017, na Libertadores 2018 – após a classificação via campeonato argentino de 2016-17 virar fumaça justamente após o adolescente ter desperdiçado aquela cobrança em casa contra o Lanús, em 27 de junho. Mas, mesmo naquela crise, o técnico, contratado sob desconfianças de ser alguém do hóquei no futebol enquanto o presidente rojo desconversava ser na verdade alguém do futebol que estava no hóquei, já tinha cativado a maré vermelha de Avellaneda. Após os seguintes passos recapitulados por aquela El Gráfico:
“Em 30 de dezembro, o apresentam como técnico do Independiente. Em 6 de janeiro, realiza seu primeiro treino e imprensa faz foco nos drones e seus 12 colaboradores. ‘Peço às pessoas que tenham paciência com a equipe. Ninguém tem uma receita mágica, mas contamos sim com um plano’, declara em uma de suas primeiras conferências. Tinha. Se desprende de [Germán] Denis, [Cristian] Pellerano, [Víctor] Cuesta e El Marciano [Jorge] Ortiz. Aposta em recuperar três jogadores muito criticados: [Emiliano] Rigoni, [Juan] Sánchez Miño e Martín Benítez. Dá continuidade aos juvenis: Barco, [Fabricio] Bustos e [Alan] Franco. Em 20 de janeiro, empata em 0-0 na estreia, contra o Atlético Tucumán. Logo cai de 3-0 para o Racing em Salta e um grupo de torcedores recebe o plantel na porta do hotel ao grito ‘vão todos embora, puta que os pariu’. No clássico seguinte, em Mar del Plata, empatam em 0-0 e o Rojo cai nos pênaltis”.
Finalizada a tumultuada pré-temporada, vem a estreia para valer, já em 18 de março: “empata em 0-0 com San Martín de San Juan, em casa. Apesar da bronca, o Rojo se retira aplaudido. ‘A equipe precisa de calor e mimos’, declara Holan. O técnico se ampara no regulamento e pede para postergar a partida com o Defensa y Justicia. A desculpa é a ausência de Campaña [Martín Campaña, goleiro uruguaio atuante em todos os minutos daquela Sul-Americana]; a realidade é que quer ganhar tempo para azeitar o funcionamento. Segundo Holan, requer-se entre 35 e 40 treinos para que a equipe expresse em campo as ideias do técnico. O Independiente empata muito em casa e ganha de visitante, chega a 14 partidas invicto. Morre Pipo Ferreiro e, a equipe, como homenagem, começa a saudar como nos anos 60″.
Falecido em abril daquele 2017, o ex-lateral Roberto Ferreiro era uma semi-divindade no Independiente: titularíssimo nas duas primeiras Libertadores vencidas pelo clube, no bi de 1964 e 1965, e também técnico no primeiro Mundial Interclubes faturado pelo Rey de Copas, em 1973 – além de ter sido técnico também na conquista da Libertadores de 1974, sobre o São Paulo. É do tempo dele como jogador que a equipe começou a exibir uma saudação característica, com os jogadores lado a lado erguendo os braços – com o capitão dois passos à frente. O outro lateral daquele período, o xerife uruguaio Ricardo Pavoni, explicaria ao La Nación, já em 2018, que o gesto era uma resposta a quem insinuava que o clube só saberia vencer no apito e na cartolagem: o espírito era “vamos demonstrar que temos as mãos limpas”.
O mesmo Chivo Pavoni prestou “consultoria” para a ideia de repetir o ato em 2017 e comentou na mesma nota: “lhe expliquei que se entram em trote, é uma desordem, um passa do outro, alguém atira garrafa, não serve. Que é preciso ir sempre caminhando. Lhes remarquei que era importante pararem bem na metade do campo, e que o capitão devia dar dois passos adiante e saudar as quatro cantos. Que muitos insultariam, outros aplaudiriam, mas assim lhes demonstras que aguentas os xingamentos, que tens personalidade, e que vais ao estádio vizinho para ganhar. A mensagem é que esta camisa pesa. Em um mês, um dos rapazes veio e me disse: ‘sabe, Chivo, que sentimos essa força especial de ‘veja como nos xingam mas ainda assim vamos ganhar?’. E terminamos fazendo isso no Maracanã, nada menos”.
A redescoberta caiu bem em especial na Sul-Americana, pois apenas a estreia, em 4 de abril (um 0-0 em casa com o Alianza Lima), antecedeu a perda do homenageado Ferreiro. A volta tardaria até 31 de maio. Tempo suficiente para aprimoramentos. Como o que rendeu enfim uma primeira vitória no ano sobre o Racing, um 2-0 em 14 de maio; não era tempo ainda para Holan ser unanimidade, é verdade: suas lágrimas pós-derbi foram vistas como a de um falastrão, segundo da El Gráfico. Em 31 de maio, então, Emiliano Rigoni anotou o único gol do triunfo fora de casa no Alianza. A expectativa por um título ainda era maior no próprio campeonato argentino, havendo para dali a quatro dias a prova de fogo da Bombonera. E o Boca derramou a água fria: 3-0.
Mas àquela altura o treinador já tinha suas credenciais, de acordo com o que se seguiu naquela recapitulação – a recordar que o líder dos barrabravas do clube, Bebote Álvarez, foi subiu até o carro de Holan para tentar extorqui-lo. E então “o técnico o denuncia. Os torcedores o recebem com uma ovação para respalda-lo”. Após cerca de dois meses e meio, o clube voltou a disputar a Sul-Americana, já em 12 de julho. E impôs em casa um promissor 4-2 nos chilenos do Iquique – gols rojos de Franco, Barco, Leandro Fernández e Nery Domínguez. E vence também em Calama, já em 2 de agosto, com registros de Maximiliano Meza (que acabaria cavando lugar junto a Tagliafico no Mundial da Rússia) e Lucas Albertengo. Ainda em agosto, no dia 22, o ícone tucumano Luis Rodríguez então fez seu emergente Atlético prevalecer pelo placar mínimo no jogo de ida das oitavas-de-final.
Setembro rendeu mais dois duelos com o Atlético. No dia 12, a volta pela Sul-Americana: Leandro Fernández e Martín Benítez arrancam o 2-0 necessário, para dali a uma semana os tucumanos irem à forra eliminando o Rojo da Copa Argentina. A resposta vem com um 4-1 em plena Assunção (Meza, dois de Fernández e outro de Albertengo) sobre o Nacional paraguaio, já em 25 de outubro, seguido de um protocolar 2-0 (Juan Manuel Martínez, ex-corintiano cujo irmão Nicolás já havia faturado a Sul-Americana 2010 com o Rojo, e Emmanuel Gigliotti) em 2 de novembro – o mês que realmente empolgou a massa. A Argentina poderia ter visto nada menos que três Clásicos de Avellaneda no espaço de uma semana, em hipotéticas semifinais continentais nos dias 21 e 28 preenchidas com um jogo pela liga argentina de 2017-18 no dia 25. Mas o rival fora eliminado na fase anterior pelo Libertad. Que deu trabalho.
O veterano Óscar Cardozo fez o único gol em Assunção no dia 21. Holan não teve dúvidas: usou um time praticamente reserva para visitar o arquirrival no dia 25… e conseguiu sair do Cilindro vitorioso mesmo com um homem a menos por metade da partida. E com direito até a uma homenagem ao veteraníssimo Damián Albil, que substituiu Gonzalo Rehak (premiado com a titularidade na ausência calculada de Campaña) para os nove minutos finais: Albil era o único remanescente do último título argentino do clube, ainda em 2002, e atualmente integra o corpo técnico de Scaloni na Copa do Mundo, como treinador dos goleiros da mesma seleção de Lautaro Martínez – derrotado por 1-0 naquele dérbi. Dali a 72 horas veio uma noite copeira em que Barco e duas vezes Gigliotti fizeram o 3-1 necessário sobre os paraguaios… ainda que vencessem “sofrendo até a última bola”, registrou aquela El Gráfico, a pontuar que ali a torcida já se permitia a cantar “pelas mãos de Holan, a volta (olímpica) vamos dar”. Altura em que diversos outros personagens do Independiente dominante dos anos 60 e 70 já eram figurinhas carimbadas “nos treinos e almoços”.
Aquela revista citou a respeito das visitas frequentes do ídolo-mor Ricardo Bochini, sua antiga dupla dinâmica Daniel Bertoni (autor do último gol da Copa 1978), Miguel Santoro (maior goleiro do clube), o próprio Pavoni e também Francisco Sá, ainda o jogador mais vezes campeão da Libertadores. Todos eles, à exceção do Pancho Sá, inclusive se juntaram a Holan em fotografia que ficou icônica, em pleno saguão do aeroporto de Ezeiza, junto das bagagens que levariam ao Maracanã. Aquele relatório da El Gráfico conteve ainda as seguintes aspas: “‘Adoraria que tivesse me treinado, isto era algo que estávamos esperando e com outros treinadores que haviam sido companheiros nossos não tivemos esta oportunidade’, lhe elogia El Bocha, sempre tão crítico com todos. ‘Agi em um momento de calor por um áudio, mas faz uns meses que lhe perdi perdão e hoje temos uma excelente relação’, declara Bertoni. ‘Me emociona quando os jogadores se aproximam para nos pedir conselhos, Ariel é distinto dos demais, parece um companheiro nosso de toda a vida’, se surpreende Pepé Santoro”.
Era um Flamengo com apenas três ícones do período 2019-22 (Diego, Willian Arão e Everton Ribeiro) como peças recorrentes, além das revelações Lucas Paquetá e Felipe Vizeu prevalecerem na titularidade em detrimento de um Vinícius Júnior ainda verde demais para a opinião de Reinaldo Rueda – que, diante da sequência de falhas de Alex Muralha, dava chances no gol a César, guarnecido pelo veteraníssimo ídolo Juan e pelo experiente Réver na zaga e por Pará e Miguel Trauco nas laterais. Gustavo Cuéllar completava a escalação-base usada nas duas finais. Mas em 6 de dezembro Holan se deu ao luxo de deixar no banco gente rodada em matéria de Independiente (o referido goleiro reserva Albil); de finais continentais com o Flamengo (Walter Erviti, do San Lorenzo campeão da Mercosul 2001 sobre os cariocas); e de futebol brasileiro (o ex-corintiano Juan Manuel Martínez) e europeu (Fernando Amorebieta, formado no Athletic Bilbao até aceitar-se como venezuelano).
O único jogador na casa dos 30 anos era mesmo El Puma Gigliotti, que fechou a escalação 4-2-3-1 em Martín Campaña, Fabricio Bustos, Alan Franco, Gastón Silva e Nicolás Tagliafico; Diego Rodríguez e Juan Sánchez Miño; Martín Benítez, Maxi Meza e Esequiel Barco. Réver até abriu o placar logo aos 8 minutos, mas gols aos 28 ainda do primeiro tempo (Gigliotti) e aos 7 do segundo (Maxi Meza) permitiram a virada e a confiança argentina para o Rio – para uma revanche condimentada pela polêmica de atribuírem a todo o clube as injúrias raciais filmadas na plateia caseira. Alguns cariocas buscaram “retribuir” tocando na ferida do presumido afogamento dos marinheiros argentinos do submarino ARA San Juan, recém-desparecido naquelas semanas.
O mesmo esquema e os mesmos nomes planejados por Holan foram reutilizados naquele 13 de dezembro, exceto pela entrada de Amorebieta no lugar de Silva e de Nicolás Domingo no do ex-cruzeirense Sánchez Miño. Rueda também manteve disposição similar: César, Pará, Réver, Juan e Trauco; Arão e Cuéllar; Paquetá, Diego e Everton (única alteração em relação à equipe titular usada na Argentina, onde o xará Ribeiro começara jogando); Vizeu. O resto é a história conhecida do segundo Maracanazo protagonizado pelo Independiente, a partir do pênalti de Cuéllar em Meza enfim convertido por Barco. Redenções dele, do clube e da torcida melhor contadas na crônica “Quando para de chover”, publicada naquela mesma El Gráfico, da pena de Eduardo Sacheri – mais célebre internacionalmente como autor de conto que virou filme oscarizado, O Segredo dos Seus Olhos.
Acima disso, Sacheri é um assumido torcedor do Rey de Copas. Já traduzimos no Futebol Portenho este outro conto dele, sobre o maior artilheiro do clube e do campeonato argentino, Arsenio Erico. É com toda propriedade que Sacheri descreve o desencanto com um clube estagnado combinado com o fogo interno de quem se agarra a toda sorte de superstição – como a de comprar ingressos na arquibancada paralela à antiga rua Cordero, atual rua Bochini, por recordar-se que lá, quando o estádio ainda era a demolida Doble Visera, um time em crise se reencontrara sobre o mesmo Libertad (na pré-temporada, é verdade) com as vitórias e decolou rumo àquele título de 2002. Tudo pela paixão umbilical de quem já havia agradecido o treinador José Omar Pastoriza, o comandante rojo que inspirara a epopeia do título argentino de 1977, escrevendo que aquilo permitira dar “uma última volta olímpica com o pai enquanto ele dava os últimos dribles na morte”.
Quando pare de chover
Termina a última partida do torneio e acabamos de empatar em 1-1 com o Lanús. Se houvéssemos ganho, entrávamos na Libertadores. Mas empatamos. Me tapo com o capuz do colete e choro. Coisas que acontecem. Não pude chorar nos dias mais difíceis, há um par de anos, e me derramo nesta noite quando, em comparação, não é para tanto.
Passa um momento. Seco minhas lágrimas e busco meu filho. Está aí, um pouco no canto, ruminando seus próprios pensamentos. Melhor irmos indo.
Enquanto caminhamos até o carro, vou reprovando minha inocência. As oito, as dez, as doze quadras. Ingênuo de mim. Torpe de mim. Outra vez sucumbi a me esperançar. Basta. Esta é a última vez. Acabou. Seguirei vivendo, por meu filho e por mim. Mas basta com essa estupidez de me esperançar. Meu filho me conhece tanto que ensaia algum argumento. Uma luz que penetre por algum lado do meu ânimo sombrio, enquanto caminhamos junto ao aterro do Roca as oito, as dez, as doze quadras. Não, pequeno. Não contes comigo. Acabou. Dessa vez acabou. Basta de esperanças.
De agora em diante me dedicarei com afinco ao que melhor sai de mim, que é a tristeza, ou melhor ainda, a culpa. Porque é isso. Porque me sinto triste, mas, sobretudo, me sinto culpado. Porque a culpa é minha. Quando eu era garoto, veio meu pai e me presenteou o melhor clube do mundo. Um clube forte, heroico, cheio de glórias. Um clube acostumado a construir em si façanhas impossíveis. E eu não fui capaz de conservá-lo. Torpes essas mãos minhas, não foram capazes de sustentar semelhante maravilha e se fez pó.
Nos dias bons, digo a mim que tampouco foi minha responsabilidade: eu não sou dirigente, não sou jogador de futebol, não sou nada. Perfeito, me respondo nos dias ruins: com isso de não ser nada não ajudaste muito, magrelo. E vendo caminhar meu filho pela rua que bordeia o aterro da ferrovia, contemplo a outra metade da culpa. Fiz torcedores meus filhos, e ao varão também fiz sócio. E o único que posso lhes dar são esperanças que murcham, pergaminhos velhos, a teimosia modesta de seguir indo ao estádio rodada após rodada e ano após ano.
Não vou voltar a me esperançar. É uma decisão. É um fato. Enquanto deixamos atrás os monoblocos, e seguimos junto ao aterro, meu filho me fala da Sul-Americana. “A Sul-Americana o quê?”, lhe pergunto. “Que se a ganharmos, entramos na Libertadores”, em diz. “Claro, claro”, lhe respondo, tratando de carregar sobre meu comentário todo o ceticismo do mundo. Passamos a primeira fase dando pena, contra o Alianza Lima. E você quer ser campeão, iludido.
É claro que ao estádio voltaremos. Pelo torneio e pela Libertadores. É o único que posso fazer pelo meu filho. Acompanha-lo. Estar a seu lado na intempérie. Desde faz tempo, essa é a imagem que me vem à cabeça quando penso em meu clube. A da intempérie. É como estar com o povo do meu clube no meio do campo, sob um aguaceiro, quietos, empapados de água e de frio, com o ruído da água caindo e escorrendo. O que fizemos? O que nos fizemos? Como conseguimos dilapidar assim toda a glória? Gostaria de ser capaz de algo mais útil, algo mais profundo. Mas não. Em algum momento, pensei que podia ajudar escrevendo. Mas depois me dei conta de que não, de que tampouco tinha sentido. Melhor o silêncio. Então isso é tudo. Silêncio, intempérie e aguaceiro.
Na Copa, agora vem o Iquique. Claro que iremos ao estádio. É o mínimo que posso fazer por meu filho. Não lhe posso assegurar que triunfemos, pelo menos lhe garanto que estaremos. E vamos. E para além de algum susto sobre o final da partida de ida, a série termina bem fechada.
Mas falta muito, falta demais, e estou decidido a não me esperançar. Porque vem os tucumanos, e não costumamos ir bem com os tucumanos. La Pulga Rodríguez nos vexa sempre. Em Tucumán, jogamos mal e perdemos. É preciso virar a série. E pensar que fazíamos essas coisas. E de repente parece como se voltássemos a ser o que fomos, fazendo as coisas que alguma vez fazíamos. Penal a favor errado, penal contra defendido, gol decisivo faltando um pouquinho e estamos nas quartas-de-final.
Quieto aí, me digo. Não sejas imbecil. Estás te esperançando. Não sei – não quero saber – nem quantas fases faltam. Não sei quem podem ser nossos rivais. Mas numa noite qualquer me desperto com um número me perfurando a cabeça: são seis. São seis partidas. Seis partidas e não quero nem pensá-lo e não me atrevo e dizê-lo e não quero nem senti-lo. Porque aí está, agachada, pronta para me lançar sua garra; aí está a puta esperança me espreitando.
A série com o Nacional do Paraguai arranca na medida dos melhores sonhos. Volumoso triunfo de visitante e alguém que quase começa a prestar mais atenção ao que vem depois do que na revanche. Será o Racing ou será o Libertad? A partida da volta é não mais que um trâmite. E de repente já não faltam seis. Faltam quatro. E os torcedores a meu redor especulam. Uns preferem que seja o clássico com o Racing. Outros querem o Libertad do Paraguai. E não pertenço nem aos uns e nem aos outros. Eu pertenço aos que não querem fantasiar, embora cada vez seja mais mentira que não esteja fantasiando.
Por fim, o rival é o Libertad, e em Assunção perdemos a primeira. Pela segunda vez é preciso virar a série. Quase a meu pesar, minha cabeça estabelece uma lembrança e organiza uma superstição. A primeira partida que levei meu filho ao estádio foi em 2002, para um amistoso com o Libertad, e fomos à arquibancada inferior da Cordero, e ganhamos de 2-0. Suficiente. Corresponde então que compre duas arquibancadas na Bochini, por isso dos ritos e das continuidades. Há outro motivo, além. Amo essa tribuna, na realidade, porque é o único pedacinho que fica de pé de minha velha, antiquada e esquecida Doble Visera.
Quando entram as equipes, estalam fogos de artifício, rojões, holofotes. E, acima de tudo, estala minha memória, porque os jogadores caminham até o meio-campo. Formam. Alçam os braços. Mostram as palmas limpas. Giram. Voltam a girar. A saudação copeira que não é de hoje. Há vários meses que a vêm fazendo. E desde a primeira vez que a vi – desde a primeira vez que voltei a vê-la, depois de décadas, melhor dizendo – me enchem os olhos de lágrimas. Porque sei, no fundo da minha alma, que isso que estou vendo é de verdade. Sei que não é simulado. Sei que não é uma superstição. É outra coisa bem distinta. É um símbolo, um tributo, um testemunho. E me pergunto se não estaremos começando a merecer que pare de chover. Que, de uma vez por todas, venha algum sol para nós.
Pelo cantinho do olho, vejo que meu filho solta suas lágrimas. Sei o que está pensando: isto é belo demais para que termine mal. Sei que pensa isso. Mas também sei que está equivocado. Sei que não há certezas. Que não há caminhos infalíveis. Que as coisas belas também se arruínam. Que os melhores esforços podem terminar tapados pelo barro. O futebol não é justo. Porque teria que ser justo, se a vida é quase sempre uma redonda injustiça? Mas não lhe digo. O deixo com sua emoção e sua esperança. Que bastante tenho que lidar eu para manter a rédea curta da minha.
Começa a partida e somos um redemoinho. Em um tempinho ganhamos de 2-0. Isso sim: não grito os gols. Vai que depois eles nos vexam. E de fato nos vexam. Bola parada, um, dois, três cabeceios na área. Gol deles. Merda. Gol deles. Não tinha sentido a esperança. Fiz bem em não gritar. Fiz bem em estrangular essa esperança recém-nascida. Mas não passam cinco minutos e, outra vez, gol nosso. Dessa vez sim o grito. Tem que ser certo. Tem que ser verdade que vai ensolarar de uma vez por todas. No segundo tempo, sofremos como beduínos (supondo que os beduínos sejam gente de muito sofrer). Os paraguaios são duros, vão bem à frente, os nossos estão sem pernas e metidos muito atrás. Um par de bolas passam beijando os postes. Se detém meu coração. Começa a pulsar de novo. Somos finalistas.
As pessoas saem do estádio alvoroçadas. Fala-se de rodadas. Faço cálculos. Para a partida de ida estou na Argentina e iremos vê-la. Para a partida da volta me agarra o outro lado do mundo. Como ia imaginar em junho, quando me convidaram a uma Feira do Livro em Mumbai, que em dezembro estaríamos jogando a final da Sul-Americana?
E os cálculos, claro. Triangulando fusos horários entre a Índia, Brasil e Argentina. Onde vou estar? Minhas conclusões são pesadas: quando comece a partida, em um avião. Quando termine, em um quarto de hotel em Mumbai.
A partida de ida começa mal, quase como corresponde. Bola parada, um sujeito que cabeceia sozinho, 1-0 abaixo. E depois uma loucura de cinquenta minutos para ter a virada. Nos dias seguintes, amigos torcedores de outros quadros me dirão “como bem jogaram”. E eu ficarei com cara de tacho frente a esses comentários. Não saberei julgar como jogamos. É tanto o que preciso empatar primeiro, ganhar depois, que o único que faço é empurrar com os olhos, inclinar o estádio com o desejo, gritar e sofrer e esperar. Não estou em condições de apreciar nada. Mas se amigos bons, amigos boleiros, me comentam isso de “como bem jogaram”, deve ser certo.
Momento. Porque, então, me cresce ainda mais a otimista esperança. Porque dá a impressão não só de que podemos ser campeões depois de sete anos e depois das piores dores de nossa vida. Também parece que estamos jogando bem o futebol. Puta merda. De novo me encontro olhando para cima, entreabrindo os olhos sob o aguaceiro de tristeza e duvidando: é impressão minha ou as nuvens de trovoada são menos espessas? Sou eu, ou de verdade dá a sensação de que em algum momento poderia parar de chover?
É domingo. Engato uma repetição da partida que com reservas ganhamos ontem do Arsenal. Chamo meu filho, que deixa de estudar e volta a assistir comigo. Falamos da partida, mas não do que vemos e sim do que intuímos. Do que vem. Do que importa. Arriscamos formações. Quem deveria entrar. Quem deveria sair. Se é preciso esperar ou ir buscar o resultado. De fundo, sem volume, a partida contra o Arsenal. As horas não passam nunca.
Quando chego em Ezeiza na segunda-feira à noite, não posso acreditar. Está cheio de camisas rojas. Mas cheio, cheio. Pergunto se vão com ingresso. Alguns, sim. A maioria, não. Mas vão. Me emociono como meu filho com os fogos de artifício do outro dia. Não há direito de que tanta fantasia termine em um esgoto. O avião que pego vai a Istambul, mas faz escala em São Paulo. Conto uma centena de camisas rojas. Vão ao Maracanã, e a mim me falta meu velho na mesa de jantar de minha casa me explicando que a nós nos encantam as difíceis. Que essas são as nossas. Que as fáceis nos entendiam. Preciso sentir que é verdade. Preciso crer que volte a ser certo. Preciso que, desde o fundo do tempo, o mundo volte a brilhar pela manhã. Preciso que pare de chover de uma puta vez por todas.
Em São Paulo descem os rojos. Eu sigo e chego em Istambul na terça-feira à noite. Na quarta-feira perambulo por esse lugar assombroso. Por momentos a cidade entra em pausa e se escutam rezas pelos alto-falantes situados nas mesquitas. Sentado em um banco de praça, me ponho a rezar em silêncio, embora me dê vergonha reconhecer isso. Não me envergonha acreditar em Deus, mas me envergonha pedir pelo que estou pedindo. Nunca rezo pela saúde dos enfermos, nem pelo bem da humanidade, nem para que eu vá bem no trabalho. Me dá pudor rezar por essas coisas. Sinto que não pode ser que assim funcionem as coisas. Mas não posso evitar me pôr a rezar para que banquemos a parada no Maracanã. Um marmanjão impiedoso que se serve da fé para tentar ajudar sua equipe de futebol.
Do resto do dia apenas lembro. Sei que vou e venho, mas sobretudo penso. Evoco partidas. Tento estabelecer regularidades. De repente, o que faça nas próximas horas define o futuro do meu clube. Como nos foi quando estive longe? Tenho que tentar ver a partida ou saber depois? Acompanho pelo Twitter ou espero a mensagem final que meu filho me envie? Pego outro avião que me levará de Istambul a Mumbai, enquanto sigo duvidando a respeito do que fazer.
Faço a nómina. A corrijo à medida que lembro de partidas. Com este trabalho que tenho agora, viajo muito. E são muitas as partidas importantes que passei fora. Ou será que sou um cândido, e todas as partidas me parecem importantes? No México com o Belgrano, perdemos. No Brasil, com o Racing, ganhamos. Contra a LDU Quito, em Guadalajara, perdemos. Contra o Patronato, de volta ao México, ganhamos. Com o Huracán, na Alemanha, ganhamos. Mas com o Sarmiento, na França, perdemos. Como fiquei sabendo cada vez? O que tenho que fazer hoje, caralho? Se sigo assim, vou terminar ficando louco. Ainda por cima, a Índia tem oito horas e meia de diferença com a Argentina. Nem oito, nem nove. Oito e meia. Parece feito de propósito.
Sigo com os cálculos enquanto o avião plana aproximando-se de Mumbai. As luzes da cidade se refletem no mar. Os objetos se veem cada vez mais nítidos. Os edifícios, as ruas, os carros. Está começando a amanhecer e do outro lado do mundo está começando a partida. Meu filho a está assistindo com minha esposa. Minha filha está com umas amigas e decidiu não assistir. Também tem suas superstições. Aterrizo na Índia. O avião demora bastante para abrir a porta. Caminho um largo trecho até as cabines da Migração. A fila que me toca andar, para estrangeiros, não é muito larga, mas atendem só dois empregados. Vejo a hora. Deve estar terminando o primeiro tempo.
Começo outra vez a rezar. Agora sem vozes que saiam das mesquitas, sem bancos de praça à vista, sem vergonha. Me dará tempo de rezar um rosário completo antes que me atendam? Rezo rápido. Os empregados atendem com tanta parcimônia que chego a rezá-lo completo e o tempo me alcança e me sobra. Vamos com o segundo rosário. O começo e o termino. Arranco com o terceiro. Na metade, me toca a vez. Tem que ter começado o segundo tempo. Recolho a mala. Saio da Aduana.
Um taxista espera com uma placa com meu nome. Me leva a um hotel que está pegado ao aeroporto. Me atendem logo. Devem ir 20 minutos do segundo tempo. Peço a senha do Wifi. Subo ao quarto. O carregador me explica como funciona o televisor, o ar condicionado, a cortina. Apenas o escuto. Só quero que saia. Conecto o telefone ao Wifi. Tem que estar terminando a partida. Apoio o telefone sobre um escritório e me deixo cair na cama boca abaixo. Lembro que me restou o terceiro rosário pela metade. Melhor terminá-lo.
O silêncio é absoluto. Passam dez minutos. Passam quinze. Começa o momento das promessas. As promessas tontas ao estilo de se ganhamos, vou fazer isso e aquilo e além. Como quando alguém era garoto e se desafiava com um “se acerto cinco boladas seguidas na árvore, sem errar, significa que a garota que me agrada gosta de mim”.
No Rio de Janeiro tem que estar terminando, salvo se formos à prorrogação. O destino dá voltas no ar. Já não sou nada mais que uma esperança.
Neste momento não me importa nada mais na vida. Nada. Preciso que tenhamos sido campeões. Preciso sentir que não tenha sido tão mal filho, depois de tudo. Preciso pensar que não sou tão mal pai, no fim das contas. Preciso crer que esse clube de maravilhas que me encomendaram segue vivo, segue de pé, segue sendo capaz de suas façanhas. Preciso que para de chover em cima de nós. Não sei se tenho direito. Tampouco me importa. Preciso disso e ponto. Preciso disso. Nisso ando, quando, às 7h10 da manhã, hora de Mumbai. Entra em meu telefone uma mensagem do meu filho.
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