Para quem sente nostalgia por regulamentos complicados, o futebol argentino é um prato cheio. Um dos seus ingredientes voltou das trevas para manter o calendário de alguns clubes por mais algumas semanas: as liguillas, que vigoraram entre meados dos anos 80 e início dos 90. Voltaram de forma triunfal em 2015, reservando uma inédita “final” entre os arquirrivais Racing e Independiente, que já rendeu história ontem: a primeira vitória racinguista no Estádio Libertadores da América (inaugurado em 2009 no lugar da antiga Doble Visera) sobre o rival, e a primeira em 14 anos sobre ele na casa roja. Mas já reservara bem antes alguns momentos curiosos, como o grande dia por quem se notabilizou em um clube rival; históricos, como a despedida de uma lenda; e grandiosos, como uma virada sensacional.
Ainda sem esse nome, houveram repescagens nos anos 70. O calendário argentino foi dividido entre os Torneios Metropolitano e Nacional entre 1967 e 1985, mas até 1970 o campeão metropolitano não ia à Libertadores, reservada ao vencedor e vice do Nacional. Em 1971, fez-se então uma repescagem entre o vencedor do Metro, o Independiente, e o vice nacional, o San Lorenzo. Os rojos levaram a melhor e justamente a partir dali emendariam um recordista tetra seguido na Libertadores. Em 1972, o San Lorenzo ganhou ambos os torneios e a repescagem não se fez assim necessária, com a outra vaga permanecendo com o vice do Nacional, o River.
Em 1973, as vagas enfim foram distribuídas aos dois campeões do ano (Huracán e Rosario Central), mas em 1974 definiu-se que haveria um quadrangular por duas vagas entre campeões e vices de ambos. Como o Rosario Central foi o bivice, virou um triangular, com o rival Newell’s e o San Lorenzo. A dupla rosarina ficou com as vagas. O River ganhou os dois torneios em 1975 e o Boca, em 1976. Dessa vez, seus vices jogaram uma repescagem. Pior para o bom momento do azarado Huracán, que perdeu para Estudiantes e River, respectivamente. O River também ganhou os dois torneios em 1979, com o Vélez vencendo o tira-teima com o surpreendente Unión de Santa Fe.
Em 1985, então, o futebol argentino alterou seu calendário, extinguindo os torneios metropolitano e nacional e reinstituindo um campeonato único, à europeia: pontos corridos, turno e returno, iniciando no segundo semestre para encerrar no primeiro do ano posterior. Ao invés de dar simplesmente ao campeão e ao vice as vagas à Libertadores de 1986, a AFA complicou. Só o campeão teve vaga direta. Normalmente, mata-matas entre os oito times abaixo do campeão definiriam a outra vaga. Mas nem isso seria tão simples. Em algumas vezes, o campeão da segunda divisão também entrava. E houve até liguilla para jogar a liguilla pré-Libertadores do ano seguinte!
A primeira liguilla já foi bem confusa. O campeão de 1985-86 foi o River. A liguilla abrangeria do 2º ao 7º, exceto o Argentinos Jrs: 4º colocado, não jogaria por já ter vaga na Libertadores de 1986 como campeão da edição anterior. Em compensação, entraria o Vélez, vice-campeão do último torneio nacional, em 1985, justamente para o Argentinos Jrs (que disputara a Libertadores de 1985 como campeão do Metropolitano 1984, pois o título nacional em 1985 veio enquanto jogava a Libertadores).
O vice (Newell’s) e o 3º (o surpreendente Deportivo Español) entrariam já nas quartas-de-final. Sim, pois haveria mais gente envolvida: em compensação pelo fim do Torneio Nacional, que dava um lugar ao sol aos campeões regionais, a primeira liguilla também reuniu os melhores de um torneio entre esses campeões. O vencedor Belgrano, de Córdoba, e o vice Olimpo, de Bahía Blanca, também tiveram o direito de adentrar a partir das quartas. As oitavas oporiam os demais times, em sistema elite x interior.
Deu a lógica: o 5º Boca passou pelo Alianza Cutral Có, de Neuquén; o 6º Ferro Carril Oeste tirou o Güemes, de Santiago del Estero; o 7º San Lorenzo humilhou (7-1 no placar agregado) o Guaraní Antonio Franco, de Misiones; e o Vélez eliminou o Concepción, de Tucumán. Adiante, o Boca causou alvoroço em Bahía Blanca: após um 1-1 na Bombonera, seus torcedores invadiram o interior para celebrar um 3-2 fora de casa no Olimpo. O Ferro sapecou um 4-0 no Español após 0-0 em casa. O Newell’s venceu ambos os jogos contra o Belgrano. O San Lorenzo, após dois empates, tirou nos pênaltis o Vélez.
Após eliminaram nas semifinais respectivamente San Lorenzo e Ferro, Boca e Newell’s decidiram a liguilla. Os rubronegros estavam criando sua melhor geração, liderada por Gerardo Tata Martino, então um elegante volante e não técnico atual da seleção (por sinal, o torneio ocorreu ao mesmo tempo em que se disputava a Copa do Mundo…). Martino fez os dois gols da vitória em plena Bombonera, no jogo de ida. Parecia tudo liquidado. Pareceu mais quando, em Rosario, a Lepra abriu 1-0. E muito mais quando, aos 10 do segundo tempo, o boquense Enrique Hrabina foi expulso.
Mas o Newell’s não é tachado de pecho frío à toa. Em uma das viradas mais espetaculares já vistas no futebol como um todo, o Boca, fora de casa e com um a menos, arrancou na meia hora final o resultado que precisava. Graciani virou. A dez minutos do fim, Gustavo Torres fez mais um. Mas não havia gol qualificado – se terminasse 3-1, haveria uma terceira final. Mas o mesmo Torres ampliou no último minuto, em jornada inacreditável. Já o grande personagem da volta olímpica (sim, as liguillas tinham volta olímpica!) foi Claudio Scalise, que vestiu outra camisa auriazul. Emprestado ao Boca, ele pertencia ao arquirrival leproso, o Rosario Central, clube que acabara de voltar à elite. Na volta, ele desfilou com o manto centralista para provocar os donos da casa.
A liguilla seguinte foi menos complicada. Os seis abaixo do campeão de 1986-87 (justamente o Central, em raríssimo bicampeonato entre segundona e elite. E o vice foi o Newell’s!) se juntaram novamente ao Belgrano e ao campeão da segundona, o Deportivo Armenio. Os “intrusos” logo caíram e o Independiente, ainda no embalo de Ricardo Bochini, venceu duas vezes por 2-1 o Boca.
A de 1987-88 abrangeu os sete abaixo do campeão (enfim, o Newell’s) mais o Deportivo Mandiyú, vencedor da segundona. O Mandiyú, até cair, se notabilizou como uma equipe cascuda e mostrou isso ali: segurou dois 1-1 com o San Lorenzo e só foi eliminado porque o regulamento dava vantagem ao oponente da elite. Adiante, o próprio San Lorenzo seria campeão, segurando derrota de 1-0 para o Racing após tê-lo vencido na ida por 2-0. O Sanloré, sem estádio e sem dinheiro, era outro time de brio. Por ser tão estoico, aquele elenco azulgrana foi apelidado de “Os Cambojanos”.
1987-88 também viu outra liguilla, a liguilla clasificación. As demais equipes, exceto as duas rebaixadas, jogaram esta, cuja “premiação” era um lugar na liguilla pré-Libertadores de 1988-89. Foi talvez o maior momento do nanico Platense, que levou a melhor após três jogos na “final” com o Boca. A tal liguilla pre-Libertadores 1988-89, por sua vez, foi talvez a mais histórica de todas. E a mais complicada. Para começar, teve “dois campeões”, mas só um levaria a vaga. Os seis abaixo do campeão nacional, o Independiente, receberam o Platense e o campeão da segundona, o Chaco For Ever. E o Platense quase chegou à final…
Ele eliminou o Español e, na semi, voltou a se deparar com o Boca, com quem empatou em dois 1-1. Não havia pênaltis: a melhor colocação no campeonato favoreceu os auriazuis. Que perderam a final para o San Lorenzo. Mas a liguilla não terminou ali. Novamente, os demais clubes exceto os rebaixados jogaram a Clasificación. Mas ela valeria ainda para a pre-Libertadores 1988-89. E receberia os eliminados dela. O grande destaque foi o jovem Gabriel Batistuta, ainda no Newell’s. A Lepra não avançaria muito, mas teve o gostinho de eliminar no primeiro mata-mata o arquirrival enquanto o país ardia na inflação (as duas liguillas foram uma manobra para manter clubes ativos e gerar mais ingressos) e no aumento do desemprego em 1.300% (isso mesmo: 1.300%) – o presidente Raúl Alfonsín renunciou no dia seguinte ao jogo de ida.
Ambos os dérbis ocorreram em Buenos Aires pois Rosario estava mais caótica. Batigol ainda era um atacante um tanto inseguro e não se eternizou tanto nos rubronegros pelo que jogou lá, mas aproveitou bem. Marcou seus dois únicos gols no clásico rosarino em um 5-3 sobre o Rosario Central, na volta. Já o River, “eliminado” na liguilla pre-Libertadores ainda no primeiro mata-mata, contra o Argentinos Jrs, avançou na Clasificación. Ao fim, ela recebeu o vice da pre-Libertadores, o Boca. Os dois primeiros Superclásicos ficaram no 0-0. No último, deu River: 2-1. A vitória marcou a despedida da lenda Daniel Passarella. Mas foi agridoce: ele foi expulso por reclamação pelo árbitro Juan Bava, torcedor do Boca com quem já tinha se desentendido antes, em outro Superclásico.
Em fevereiro, Bava anulara-lhe um gol de falta por causa do impedimento de outro riverplatense, que não participara da jogada. Teria sido o centésimo gol da carreira de Passarella, o segundo maior zagueiro-artilheiro do futebol. E El Kaiser se aposentou nos 99… “Campeão” da Clasificación, o River enfrentou o “vencedor” da pré-Libertadores, que só ali seria efetivamente decidida. Até chegar lá, Batistuta saíra do Newell’s para o River e teve seu melhor momento no novo clube, marcando o “gol do título”. Um golaço, girando para emendar de longa distância com a canhota uma bola pingada na área. O vídeo ao fim contém aqueles seus dois gols contra o Rosario Central (a partir dos 0:19) e este (1:41).
Mas Batistuta não se daria tão bem a longo prazo em Núñez; o Millo cairia nos pênaltis para o Grêmio na Supercopa com Bati desperdiçando uma das cobranças. Passarella viraria técnico e preferiu usar Ramón Medina Bello. O River seria campeão argentino de 1989-90 com Batistuta de reserva e, ao fim, vendido ao rival Boca, onde enfim se catapultou. Por sua vez, a liguilla de 1989-90 foi mais enxuta, só com quatro clubes. Não houve mais a Clasificación. Mas participou o “melhor não-campeão” da Clasificación anterior, o Deportivo Español, juntado aos três melhores abaixo do campeão River. O Boca venceu o Independiente na final, após dois 1-0.
Já a temporada 1990-91 foi dividida em dois turnos, com seus vencedores travando uma final para definir o título. O Newell’s de Marcelo Bielsa levou a melhor sobre o Boca, desfalcado de Batistuta, que servia a seleção na Copa América. Os últimos jogos de Bati no futebol argentino seriam então pela liguilla de 1990-91, para onde os xeneizes se juntaram. Os três abaixo do Newell’s no 1º turno se juntaram aos cinco primeiros do 2º turno. Batigol se despediu na final, contra o San Lorenzo. Os azulgranas fizeram valer a freguesia que impõem nos auriazuis, vencendo por 1-0 os dois jogos.
A última liguilla foi a de 1991-92. Dessa vez, os vencedores de ambos os turnos, River e novamente Newell’s, foram declarados campeões, inaugurando uma nova era, a vigorar até ano passado. Eles fizeram uma final, mas para definir a vaga direta na Libertadores – ficou para o River. Os quatro melhores abaixo deles em seus turnos fizeram um mata-mata (os primeiros vencedores se classificaram à nascente Copa Conmebol), vencido pelo Vélez sobre o Gimnasia LP. Só que o Newell’s teve o direito de enfrentar o “campeão” Vélez, em jogo único em Rosario. E levou a última liguilla.
Mas ainda houve algumas repescagens posteriores. Até o fim dos anos 90, eram apenas duas vagas e em alguns campeonatos os torneios Apertura e Clausura foram faturados pelo mesmo time (Vélez em 1995-96, River em 1996-97, Boca em 1998-99), forçando um tira-teima entre seus vices. Pior para o bom momento do sempre azarado Gimnasia LP, que, como o Huracán dos anos 70, perdeu duas vezes – para o Racing em 1996 e para o River em 1999. Já o Colón de Santa Fe, ao contrário do rival Unión em 1979, surpreendeu e desbancou o Independiente em 1997. Mas já não se falava em liguilla.
Ao fim, a liguilla pre-Libertadores dos anos 80 e 90 que tanto estimulou diversos clubes não chegou a favorecê-los tanto no sonho a que se prestava. Nenhum venceria o torneio após ganhar a liguilla. O Newell’s que foi vice em 1992 classificou-se para aquela edição pelo seu título na temporada regular de 1990-91 mesmo, e não pela liguilla, ocorrida já após o vice-campeonato contra o São Paulo – a quem terminaria reencontrando na edição de 1993, essa sim classificado como vencedor da liguilla de 1992. O Boca, aliás, não honrou o épico perante o Newell’s, caindo na primeira fase em 1986, eliminado justamente no grupo do rival (e futuro campeão, pela primeira vez) River. Nada que, por enquanto, importe aos rivais de Avellaneda nas finais de 2015…
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