Lenda em T e V: 80 anos de Daniel Willington
“Daniel Willington é um dos símbolos de ouro do Vélez Sarsfield. Assim como Don Pepe Amalfitani é ‘o’ fundador, Carlitos Bianchi ‘o’ goleador e logo o técnico da era moderna, Don Victorio Spinetto ‘a’ garra e a alma do Fortín como jogador e treinador, e como José Luis Chilavert é ‘o’ jogador ganhador… assim o Daniel é a classe, o talento, o grande estilo, o símbolo ‘do’ craque vestindo La V sobre o peito”.
As palavras acima iniciavam uma nota de 1999 da revista El Gráfico, sobre o “Lord Willington”. Sua ancestralidade inglesa, remontada a um bisavô talvez proveniente de uma das diversas localidades denominadas Willington (com dois “i” mesmo) na Grã-Bretanha, já estava bem diluída em um fenótipo muito mais indígena do que saxão. E, embora nascido em Santa Fe, Daniel viraria El Cordobés dos mais genuínos ao criar-se em Córdoba. Dissimulações que levaria também a campo: mesmo com 1,85 metros de altura, era daqueles meias clássicos, com visão panorâmica de jogo, habilidade para gingar com pausas apoiando o pé na bola, para o drible propriamente dito, para conferir assistências de efeito “com precisão e força de bilhar” (em palavras daquela mesma nota), para definir com uma única jogada uma partida em que aparentassem apatia sem a bola…
Ou, para os críticos, alguém de inegável talento mas irregular, preguiçoso e rebelde demais ou ainda pouco profissional (uma das lendas é que ele se limitava aos espaços do campo em que houvesse sombra) para merecer ser jogador de seleção, embora aquela mesma nota de 1999 classificasse ele como uma mistura de Riquelme como Eusébio – e uma de 1968 se rendesse: “é a grande contradição. A mesma contradição que desconcerta os entendidos, que obriga os críticos a mudar de opinião em apenas sete dias”. Daniel Alberto Willington faz hoje 80 anos, se despedindo de um mês complicado: ontem seu Vélez passou vexame na Libertadores, contra o Flamengo. E no início se viu dividido entre duas paixões, diante do embate que o Fortín travou com o Talleres nas quartas-de-final da mesma Libertadores.
Não são poucos os que o consideram o maior ídolo tallarin e alguns dados corroboram isso. Em 2010, por exemplo, foi mesmo eleito nesse sentido em votação promovida pelo jornal cordobês La Voz del Interior. Outro dado: o estádio municipal de Córdoba homenageia um ídolo de todos feito Mario Kempes, as arquibancadas têm o nome de um representante de cada dos quatro grandes locais – a cota do Instituto, com Kempes de hors concours, ficou com Ardiles; a do Belgrano é de seu maior artilheiro na primeira divisão (Luifa Artime, filho de um ex-Palmeiras e Fluminense); a tribuna alusiva ao Racing de Córdoba é chamada de Roberto Gasparini (maestro do elenco vice argentino de 1980); e é Willington quem é relembrado nos lugares atrelados ao Talleres. Também deu nome a um troféu amistoso que Vélez e Talleres travaram em 2011, embora ironicamente chegasse a vestir camisas rivais da dupla, com passagens efêmeras por Huracán e Instituto.
Talleres, parte 1
Nascido no interior santafesino, na cidade de Guadalupe, sua mudança a Córdoba deveu-se exatamente ao futebol: seu pai, o centromédio Atilio Willington, fora contratado em 1947 para jogar no Talleres, defendendo-o até meados dos anos 50 com personalidade e chute forte. O tempo o diminuiria a mero “pai de Daniel”, embora tivesse estrela: participou de notáveis goleadas no Clásico Cordobés, especialmente o 7-0 e o 6-1 de 1950 ou o 6-2 de 1952 – ou o 8-3 no rival secundário, o Instituto, em 1952 também. Incrivelmente, o clube não chegou a vencer a liga cordobesa nesses anos, mas El Toro a comemorou em 1948, 1949, 1951 e 1953, bem como o valorizado “torneio preparação”, equivalente aos antigos Torneio Início tão comuns no Brasil, no tri de 1950-51-52.
Atilio seguiria carreira no modesto Independiente de Oliva, mas voltaria a La T como treinador, sua função entre 1959-61. O filho, outrora mascote tallarin, deu seus primeiros passos no clube Avellaneda, mas já estava na equipe B do Talleres desde os 14 anos de idade. E Daniel tinha qualidade própria para que ganhasse chance na principal justamente no período em que o pai era o técnico. Não por nepotismo: “meu velho não queria nunca me colocar, mas me levou porque lhe pediu El Paco Cabasés”, contaria em 2009, quando o jornal cordobês La Voz del Interior lhe recordou dos cinquenta anos da estreia, em uma excursão pela província de Catamarca. O tal Cabasés foi um histórico dirigente que viveu até os 102 anos, sendo recordado especialmente por esse olho clínico com Daniel.
Em 7 de junho de 1959, então, a equipe já não tinha chances de título no “preparação” e Atilio se permitiu a dar a camisa 8 a Daniel no duelo com o Huracán de Córdoba, abatido por 5-2. A estreia na liga cordobesa ficou para 1960, mas foi das mais auspiciosas, com uma tripleta sobre o Lavalle – e posterior título na liga. Já aparecia também na seleção cordobesa, no campeonato argentino de seleções provinciais, então a grande vitrine a jogadores do interior. A equipe não foi longe, mas o jovem rapidamente despertou atenção de times portenhos: marcou simplesmente todos os gols alviazuis nas honrosas derrotas amistosas de 4-2 contra o Boca e 5-3 contra o Independiente. Apesar de sondagens até do Nacional uruguaio e da Juventus, segundo a edição especial que a El Gráfico dedicou ao centenário velezano, o garoto ainda seguiu em La T até o fim de 1961, quando enfim saiu por 1,150 milhões de pesos mais o passe de um tal José Icardi.
A idolatria em La Boutique seria muito mais decorrente da segunda passagem.
Vélez, parte 1
Negociado diretamente com o Vélez, foi mimado exatamente pelo Dons Amalfitani (presidente) e Spinetto (treinador) referidos na introdução: o técnico limitou seu teste a meros vinte minutos, precisando esclarece-lo que foi para protege-lo de faltas e não por desaprova-lo. Quanto ao cartola, aquela nota de 1999 traz pistas: “era um homem fechado, grande na idade, mas comigo era modesto. Não sei o que terá visto em mim. Mas sempre me protegeu. Quando eu tinha 15, 16 anos, vieram me buscar vários clubes grandes de Buenos Aires, mas no fim não se concretizava, pelo assunto da minha conduta… e ele sabia disso. Mas me levou ao Vélez ainda assim. E a única coisa que me disse foi: ‘eu confio em você, não me faça ficar mal’. Desde então, me tratou como um filho. Me administrava o dinheiro. Me ensinou a caminhar…”.
Sua estreia foi um amistoso de pré-temporada com o Huracán, maravilhando a todos ao acertar um golaço de quarenta metros. Mas, diante do mesmo Huracán, teve uma estreia para esquecer no campeonato argentino: expulso, aos 11 minutos do segundo tempo, por reclamar a anulação de um gol. O opontente, que já vencia por 1-0, ampliou um minuto depois… e terminou goleando por 4-0. Nada que impedisse que Willington não saísse dos titulares; na 4ª rodada, o placar de 5-2 sobre o Estudiantes foi fechado graças a um rebote do goleiro a uma ponte falta cobrada pelo garoto, que enfim marcou seu primeiro gol na liga argentina na 5ª, o segundo dos 3-0 no Argentinos Jrs.
Os números ao fim de nove rodadas, momento em que o campeonato foi pausado por conta da Copa do Mundo de 1962, poderiam ser modestos, mas a qualidade não englobada nas estatísticas era visível: ele esteve meteoricamente pré-convocado ao torneio no Chile. A grande amargura da carreira, segundo a nota de 1999, foi justamente “ter estado dez anos na pré-seleção para os Mundiais e nunca jogar um Mundial”. A estreia na Albiceleste ficou para semanas depois do fim da competição. Com direto até a gol, embora ficasse no banco até substituir Marcelo Pagani para apenas nove minutos depois fechar o placar de 3-1 no Uruguai, em 15 de agosto – pelo troféu binacional Copa Lipton, no Monumental de Núñez. Mas acabaria sendo seu único gol pela Argentina.
Willington fechou 1962 com os seguintes números na liga: 21 partidas, seis gols – o suficiente para ser artilheiro do elenco, mesmo não sendo atacante – e três assistências, números que ressoam mais quando se considera que o Vélez foi simplesmente antepenúltimo (ainda que os promedios, já vigentes naquele tempo, o relaxassem de alguma briga contra o rebaixamento). Dois dos gols vieram no Clásico del Oeste, em 3-1 fora de casa no Ferro Carril Oeste. “No ano de 62, quando cheguei ao Vélez, com 20 anos, eu perguntava aos jogadores mais velhos: ‘tchê, quanto você ganha aqui?’. Para saber se havia feito um bom ou mal contrato, e como me sair, né? E eles me diziam: ‘isso não se pergunta. E vais te dar conta sozinho’. Comecei a jogar e no ano seguinte já eram eles que vinham me perguntar: ‘tchê, cordobês, assinaste por quanto?'”.
O segundo e o terceiro jogos de Willington pela Argentina se deram em outubro de 1963, por outro troféu binacional: a Copa Chevallier Boutell, com o Paraguai – 4-0 em plena Assunção no dia 15 e derrota desleixada de 3-2 em casa no dia 29. O craque começara com tudo a liga, abrindo os trabalhos contra o Racing na rodada inaugural com um golaço em chute potente após carregar a bola desde o meio-campo – e ainda registrar uma assistência para o segundo gol, ao cruzar a bola para Alfredo González. Mas se manter na seleção acabou sendo mesmo um feito: seu Vélez fora ainda pior na liga, na vice-lanterna; é verdade, estava novamente isento de brigar para não cair, devido a uma resolução que suspendeu os descensos. Individualmente, foram vinte jogos, com três gols, três assistências e… três expulsões também. Ao fraturar um adversário do Chacarita, chegou a carregar por um bom tempo a pecha de carniceiro.
Mas o bairro de Liniers, até então sem um única taça na elite argentina, também não era a maior panela de pressão do mundo por troféus: na gestão de José Pepe Amalfitani, o time de futebol era o adendo de um clube social sólido, e não o inverso: “ele manobrava tudo. Não queria ser campeão, ele queria massa societária. E, apesar disso, me reteve sempre. Uma vez, o River lhe dava 10 milhões, creio, no ano de 64 ou 65, e mais cinco ou seis jogadores bárbaros… ele se aproximou como se nada e me diz: ‘tchê, cordobês, você ficaria no Vélez?’. Eu lhe digo: ‘Pepe, se me pagas essa grana…’. ‘Então, fique’, me diz. ‘Que fiquem todos eles no River, você é do Vélez’. E assim estive sempre entre os dez que mais ganhavam no país”.
Amalfitani sabia o que fazia: em 1964, a história foi agridoce por outro prisma, o de que naquele ano o Vélez enfim engatou; ao fim do primeiro turno, estava apenas um ponto abaixo do líder Boca. Willington, que em junho festejou como reserva da seleção um título no Brasil – a Copa das Nações, conquista mais relevante da Argentina até o Mundial de 1978 -, deixou cinco gols em dezesseis partidas. Sua atuação na 12ª rodada, com o Argentinos Jrs, foi um retrato fiel: assistência no primeiro gol, sofreu o pênalti que originou o segundo e… também foi expulso a três minutos do fim por agressões mútuas na vitória por 3-1. A suspensão disciplinar somada a uma lesão o fez voltar a campo apenas na 20ª rodada.
Da 20ª à 30ª e última rodada, teve ainda mais três assistências (em especial, no 4-1 sobre o Rosario Central, onde marcou duas vezes e serviu um companheiro no outro) e outro pênalti cavado. Mas o Vélez perdera embalo na sua ausência, terminando em oitavo lugar, embora a seis pontinhos do pódio. Fora do campo, enfrentava polêmicas pela boemia, embora jurasse que não fosse algo excessivo (“o que ia fazer? Era jovem, tinha 22 anos e carro, de segunda à quarta-feira saía e às vezes não me encontravam”).
Aquele foi seu ano mais assíduo na seleção, mesmo sem ter entrado em campo na Copa das Nações. Esteve inicialmente no 3-0 em jogo-treino com o Deportivo Morón em 5 de agosto e na derrota de 2-0 em amistoso não-oficial com o Colón no autoexplicativo Cementerio de Elefantes em 8 de setembro – vexame apagado pelos 5-0 sobre o Chile em 23 de setembro, pelo troféu binacional Copa Carlos Dittborn. Figurou ainda no 1-1 na revanche chilena em Santiago, em 14 de outubro, pelo mesmo troféu; e derrota de 3-0 em Assunção para o Paraguai, por nova Copa Chevallier Boutell.
Em 1965, então, o pódio que escapara em 1964 chegou: La V Azulada terminou em terceiro, então um acontecimento a um clube quase sexagenário que tinha no máximo dois vice-campeonatos na elite nacional. Em paralelo, sua estrela se manteve na seleção, que soube arrancar um 0-0 em Paris e outro no Rio de Janeiro contra as seleções anfitriões. Afinal, foram doze gols em 34 jogos, gerando ainda mais gols seja por rebotes (dois) ou assistências diretas (cinco). Mas a AFA, sempre desorganizada historicamente, caprichava: teve simplesmente três técnicos entre 1965 e 1966 e aquele maestro acabou solenemente ignorado para a Copa do Mundo de 1966. A revista especial da El Gráfico para o centenário fortinero explicou que de fato houvera um desentendimento do jogador com o treinador contratado às vésperas do torneio, Juan Carlos Lorenzo, o mesmo técnico empregado na Copa 1962.
Restava-lhe o Vélez, que continuou semeando: novamente treinado por Spinetto, o time terminaria em 5º em 1966, mas a dois pontos de novo 3º lugar, embora o craque voltasse a jogar menos: quatorze vezes, com três gols próprios e alguns em nomes alheios: além de cinco assistências, gerou ao menos um de rebote, um de pênalti que cavara e um gol contra forçado. Deixou a principal exibição para o grand finale, em um 3-0 em plena Bombonera sobre o Boca: com três minutos de jogo, abriu o placar mesmo sob marcação de dois defensores, conseguindo vazar o goleiro da seleção (Antonio Roma) com um tiro rente à trave. O terceiro veio já aos 18 minutos do segundo tempo, anotado por um Juan Carone bem servido por um cruzamento rasteiro de Willington.
Serviu para que o meia reaparecesse rapidamente na seleção em dois amistosos não-oficiais na virada de ano, em derrota de 2-0 para o clube uruguaio Nacional em 29 de dezembro e vindo do banco no 2-1 sobre a seleção provincial de Mendoza em 6 de janeiro, mas ele não ficou para a Copa América que se realizaria no primeiro bimestre de 1967. Ano marcado por uma novidade: a recém-instalada ditadura de Juan Carlos Onganía interveio na AFA e forçou um torneio que enfim desse vitrine a clubes do interior profundo do país, pois o campeonato argentino, apesar do nome, era restrito de modo oficial à Grande Buenos Aires, La Plata, Rosario e Santa Fe. Esse torneio seria apropriadamente rebatizado de Metropolitano. Seus melhores clubes duelariam depois no Torneio Nacional, a incluir os classificados de uma seletiva com os campeões das inúmeras ligas do interior.
O Vélez e Willington souberam fazer bonito nos dois torneios, calhando de trombarem com um Estudiantes ainda mais histórico: o Metropolitano dividiu os 22 clubes em dois grupos de onze, com líderes e vice-líderes avançando aos mata-matas. Por dois pontos a menos que o time de La Plata e o Racing, o bairro de Liniers ficou em 3º na sua chave, e assim, de fora dos jogos decisivos – adiante, estes mesmos clubes fariam a grande final, e a conquista do Estudiantes o fez quebrar o oligopólio exclusivo que os “cinco grandes” (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo) mantinham desde 1930 nos títulos da liga argentina.
No Metro, o craque anotou cinco gols – inclusive sobre um Racing que em paralelo ganhava a Libertadores – em dezenove jogos, além de cavar um pênalti e forçar um gol contra. No Nacional, por sua vez, o Fortín foi 3º geral, abaixo do campeão Independiente e, novamente, do Estudiantes. Willington foi ainda melhor, fazendo o suficiente para ficar no Top 5 da artilharia do campeonato, com seus oito gols em quatorze jogos. Detalhe importante é que, naqueles inícios de tempos de dois campeonatos, o título no Metro era puramente simbólico; as duas vagas argentinas na Libertadores eram concedidas ao campeão e ao vice do Nacional. Foi como vice desse torneio em 1967, e não como campeão do outro, que o Estudiantes “tirou” dos velezanos a vaga continental para 1968, vencida justamente pelos platenses…
Um novo degrau foi galgado no primeiro semestre de 1968. O Vélez foi líder do seu grupo no Metropolitano, torneio em que um 2-1 no Huracán registrou, sobre Willington, “uma das melhores atuações individuais que vimos nos últimos tempos” – nas palavras da El Gráfico sobre quem, mesmo gripado, forneceu uma assistência de 30 metros logo aos 3 minutos de jogo. Mas aquele Estudiantes foi novamente um asa-negra, nas semifinais. Willington, que desde 1965 não jogava oficialmente pela seleção, reapareceu contra Paraguai (derrota de 2-0 em Assunção, em 15 de maio) e Uruguai (2-0 pela Copa Lipton, em 5 de junho) na esteira de cinco gols em treze partidas. No Nacional, então, o bairro de Liniers enfim se viu campeão argentino. El Cordobés, superando em alto estilo uma “geladeira” que o técnico Manuel Giúdice lhe impunha inicialmente, somou apenas dois gols em nove jogos, mas era a cadência que regia a artilharia dividida entre Omar Wehbe e o jovem Carlos Bianchi.
Willington destacou-se em especial contra a dupla de Avellaneda: cavou dois pênaltis no 5-2 sobre o Independiente, cujas conversões pelos colegas pesariam adiante – é que na rodada final River e Racing travaram o que se esperava ser um duelo direto pelo título. Mas empataram e foram alcançados pelo Vélez na liderança, o que forçou um triangular extra. Nova igualdade ali teria o saldo de gols como critério de desempate e La V Azulada se valeu disso para sorrir mais do que o vice River, embora o duelo decisivo fosse a partida contra um Racing já sem chances àquela altura. Ali, “sob a batuta de um condutor magistral, Daniel Willington” (nas palavras da edição pós-título da revista El Gráfico), o Fortín abriu o placar logo aos 3 minutos no estádio neutro do San Lorenzo, anotado por Antonio Moreyra. As aspas a seguir também são daquela mesma edição.
O jogo terminou em um 4-2 que consagrou nos números o hat trick de El Turco Wehbe, orquestrados pelo “cada vez mais seguro e brilhante andar de Willington”, que “foram minando as reservas espirituais do Racing. Ao final, o vimos sem pernas. Mas é possível que isso tenha sido produto do desgaste psíquico, tanto ou mais que do esgotamento físico. Porque o conjuro do toque sutil de Daniel Willington, que tomava sempre a um ou dois adversários a contrapé, obrigados a darem volta para correr desde trás ao homem habilitado com rara precisão pelo santafesino de sotaque cordobês” e “de classe magistral (…) nunca tão sustentada em produção de ideias, em aporte de riqueza técnica, em fluidez de concepção e execução. Nunca tão gravitante dentro de uma partida inteira”.
Os três gols de outro W tiveram assinatura conjunta do meia: “no primeiro, que pôs a partida em 2-1, manobrou a bola sutilmente pela esquerda, engatando-a frente a [Alfio] Basile e trocando-a com matemática justeza até a direita, para o cabeceio livre de Wehbe. No segundo, ziguezagueando pela direta, deixando no caminho [Juan Carlos] Rulli, tocando-a em cortada para a diagonal de Wehbe, de modo que jogador e bola se encontraram no instante preciso, com o perfil preciso, com a bola precisa, colocada mansamente, com a serene maestria do que sabe, pode e quer jogar grande futebol. No terceiro, voltou a se meter pela direta, voltou a ziguezaguear para ir em surpreendente troca de velocidade entre [Roberto] Perfumo e Rulli. O derrubaram. E foi pênalti. Poderia cobra-lo ele. Mas culminou sua classe magistral com um novo ato de desprendimento: deixou ao gosto do goleador do Nacional e da série decisiva, El Turco Wehbe”.
A poesia do título ganhou novos contornos rápido: o histórico presidente Amalfitani faleceu como campeão, deixando a vida no semestre seguinte. Sua característica política de austeridade, de outro lado, ainda teria efeitos na temporada 1969, pois o lado deficitário da Libertadores na época, especialmente a um clube “pequeno”, pesaria para o Fortín optar por ausentar-se da edição 1969. “Don Pepe não quis que o Vélez jogasse a Libertadores. Para nós, teria sido uma linda oportunidade jogar um torneio internacional e de nos exibir para uma possível transferência. O Estudiantes daquela época não era superior a nós e ganhou tudo. Foi uma pena não ter participado. A história poderia ser outra”, lamentaria o meia ao livro do centenário velezano preparado pelo Clarín.
A vitrine internacional ficou limitada a amistosos, embora valorizados na época: em fevereiro, o time ficou em terceiro na Copa Montevidéu, com o meia se destacando com gols no Sparta Praga e no Peñarol. Já na temporada regular, o Vélez ficou em 3º em seu grupo no Metro, vendo Boca e o futuro campeão Chacarita se apoderarem das vagas, e dividiu a 5ª colocação do Nacional. Entre os dois torneios, foram 26 jogos e cinco gols, mas o craque ficou mais marcado pela longa suspensão disciplinar após soltar o cotovelo em um adversário do San Martín de Mendoza, já na 6ª rodada do Nacional. Além de expulso, pegou quinze rodadas de gancho. Veria pela televisão também nova Copa do Mundo, dessa vez pela queda da Albiceleste nas eliminatórias. A chance de enfrentar Pelé e colegas sobrou para 6 de dezembro, em amistoso que inaugurou a nova iluminação noturna do estádio fortinero: 1-1, com gol de Willington, que ainda errou um pênalti em noite em que La V Azulada deu lugar à “tricolor italiana”.
Suspensão encerrada, ele pôde reaparecer já na rodada inaugural do Metropolitano de 1970 e também na seleção. No Metro, inclusive foi improvisado como jogador-treinador, em dupla com Alberto Ríos, da 12ª à 15ª rodada. Na temporada toda, computou números decentes – 23 jogos e onze gols. Assim, fez duas partidas finais pela seleção, um 5-1 em jogo-treino com o Kimberley de Mar del Plata em 14 de julho e um 1-1 amistoso com o Paraguai em 22 de outubro, em Assunção, na partida-tributo a Arsenio Erico; curiosamente, ao substituir El Cordobés, o colega Carlos Bianchi estreou pela seleção. Sem a figura coruja do saudoso presidente Amalfitani, contudo, Willington não teve o contrato renovado, saindo do bairro de Liniers sob alguma mágoa na época. Com passe livre, buscou um pé de meia no México, acertando com o Veracruz.
Em 1996, a nascente era dourada do Vélez inspirou o jovem historiador Esteban Bekerman a publicar o Diccionario Velezano. O verbete dedicado a Willington ressalvava, mesmo com os rotineiros troféus que abarrotavam as vitrines do Fortín em frequência outrora incomum, que apenas Carlos Bianchi, “em opinião de muitos”, conseguia superar o antigo meia em idolatria no clube. “Quando seu gênio aflora, quando todas as molas de seu talento funcionam, Daniel é de todos, passa a ser patrimônio de todo o estádio, de todos os que estamos submetidos à sua arte”, definiu-o a nota de 1968 disponibilizada na introdução.
Seus outros clubes argentinos: Huracán e Instituto de Córdoba
Em 1972, Willington já era repatriado. Padecendo de um jejum que remontava ao campeonato de 1928, o Huracán convenceu El Cordobés muito por conta da amizade que este tinha com um torcedor huracanense ilustre, o pugilista Ringo Bonavena. A ligação ensejaria boato muito aceito de que o boxeador teria bancado do próprio bolso a contratação, embora não se chegasse a tal ponto, segundo juramento que o craque dera àquela matéria de 1999. Estreou como quemero já na 7ª rodada do Metropolitano, em derrota de 2-1 em casa para o Rosario Central, substituindo Carlos Leone aos 10 minutos do segundo tempo. No Metro, foi restrito a apenas quatro jogos pelo treinador César Menotti: o time já vinha bem sem o veterano astro, terminando em 3º lugar naquele torneio.
No Nacional, foram mais quatro jogos. E só. Nunca esteve nos 90 minutos, sempre sendo substituído ou começando no banco. Ele justificou à nota de 1999 que calhava de concorrer com um filho do clube, Carlos Babington: “era como se ele viesse me tirar a posição no Vélez”, frisou. Acabou deixando o bairro de Parque de los Patricios sem deixar muita saudade: o Globo não precisou de Willington para encerrar vistosamente no Metropolitano de 1973 um jejum de 45 anos na liga argentina, enquanto o meia voltava ao Talleres – sem conseguir a liga cordobesa daquele ano, garantida pelo rival Belgrano.
Por outro lado, o campeão provincial de 1972, o Instituto, se credenciara com a taça a estrear no Torneio Nacional para a edição de 1973. A equipe do bairro de Alta Córdoba tinha consigo ninguém menos que Mario Kempes e Osvaldo Ardiles, dali a meia década titularíssimos na primeira Argentina campeã mundial, mas ainda anônimos. La Gloria requisitou empréstimos aos vizinhos, que assentiram: enquanto o rival clássico Racing de Córdoba cedia Jorge Báez e, sobretudo, o defensor Miguel Ángel Oviedo, outro futuro campeão da Copa de 1978; o General Paz Juniors, “quinto grande” cordobês, fornecia Mario Carballo e Julio Ortiz; dos modestos Lavalle, Villa Azalais, Sportivo Belgrano de San Francisco, Argentino Colonial e Bella Vista saíram respectivamente José Fraire, Armando Olmedo, Mario Pellacini, Oscar Rufinetti e José Luis Saldaño – enquanto do Argentino Peñarol vinham Américo Gutiérrez e Miguel Ángel Saldaño.
Willington foi a contribuição tallarin para a estreia nacional do Instituto – em uma disputa de empréstimo no qual o principal rival, o Belgrano, não teve o pudor de deixar de se envolver. O vice-campeonato cordobês dos celestes na edição de 1972 da liga local fora o suficiente para também classifica-los ao Nacional de 1973 e fazê-los buscar reforços pontuais. O veterano já havia reforçado rapidamente a terceira força cordobesa em um curioso amistoso dela com a Argentina, ainda em 8 de agosto de 1973 (derrota honrosa de 2-1, com Kempes de adversário), e foi reutilizado pelos alvirrubros em mais oito partidas daquele Nacional, travado em um formato-relâmpago de outubro a dezembro.
El Cordobés inclusive esteve contra o Vélez (1-1) e no próprio dérbi com o Belgrano (derrota de 1-0). Os novatos ficaram apenas em 8º em um grupo de quinze times, mas fizeram um bom barulho: Kempes ficou em terceiro na artilharia e catapultou a carreira, sedimentando-se na seleção ainda como jogador do Instituto e logo cavando transferência ao próprio clube campeão daquele Nacional, o Rosario Central. Willington, por sua vez, voltou-se de vez ao Talleres para enfim superar o pai como figura histórica em La Boutique.
Talleres e Vélez, partes 2
Treinado pelo mitológico Ángel Labruna, o Talleres encerrou em 1974 um jejum pendente desde 1969 na liga cordobesa e Willington teve muito a ver com isso, com um célebre gol que valeu em pleno clássico com o Belgrano a reconquista. Foi em uma cobrança de falta a trinta metros do ângulo em que a bola entrou, aos 17 minutos do segundo tempo; em pleno estádio belgranense no bairro de Alberdi, La T venceu por 2-0. Dessa vez, o título provincial valeria a vaga cordobesa no Nacional já para a própria edição do ano de 1974. No Nacional, fiferentemente de como havia se saído no Instituto, Willington virou uma peça regular de segundo tempo, mas não menos importante para elenco e torcida albiazul – que ali tiveram fez sua primeira grande campanha a nível federal. Líderes em seu grupo, terminaram em 4º lugar geral naquele Nacional.
Um jovem Jorge Valdano, por tê-lo enfrentado pelo Newell’s no 3-2 imposto pelos cordobeses, declararia: “à minha frente tinha Willington e pensei que minha profissão e a dele eram distintas. Eles tinham um tiro livre a uns 40 metros. O goleiro pediu barreira e eu não entendia como se podia pedir a tanta distância. Willington se acomodou para bater com a perna direita e não gostou do ângulo. Então se acomodou para bater com a esquerda. E deu um tiro impressionante que quase rompe o travessão. Por isso, disse: se este é o nível do futebol, vou ter que progredir muito para ser alguém. Logo me dei conta de que havia muito poucos Willingtons”. Aquele 4º lugar tinha ainda outro simbolismo: superava a melhor colocação cordobesa na elite argentina, precisamente um 5º logrado em 1971 pelo arquirrival Belgrano.
Mas muito da idolatria tallarin a Willington se deveria especialemente a um domínio sem precedentes de La T no “estadual” mais chamativo do país. Em uma geração dourada do interior argentino, as ligas provinciais tinham relevância inédita para além de meras qualificatórias dos times do interior ao Torneio Nacional: campeão da Copa do Mundo de 1978, o zagueiro Alberto Tarantini justificaria sua saída do Birmingham City ao Talleres em 1979 contextualizando que era mais fácil seguir na seleção argentina jogando a liga cordobesa do que a inglesa. Pois o clube do bairro Jardín emendaria um hexacampeonato local seguido até 1979, enquanto sempre tratava de avançar às fases decisivas dos Nacionais. Willington não participou de todo aquele período dourado, mas esteve junto na maior parte. Nos Nacionais, contribuiu com o 6º lugar geral em 1975 e na campanha semifinalista em 1976, ano em que o time chegou a vencer um curioso torneio amistoso no Zaire.
Ironicamente, o craque não chegou a jogar na trajetória vice-campeã argentina em 1977, mas seu papel ainda ativo na liga provincial o incluiu na seleção cordobesa que perdeu honrosamente de 3-1 para a própria Argentina em amistoso pré-Copa já em 16 de maio de 1978 – vitrine para ele voltar rapidamente ao Vélez para três partidas no Torneio Nacional daquele ano. Não foram mais porque calhou de se lesionar logo na reestreia, contra o Altos Hornos Zapla. Reapareceu a tempo de participar dos dois compromissos finais da fase de grupos, com a classificação já bem encaminhada. Mas o treinador Omar Sívori preferiu não depender dele nos mata-matas, onde o time logo caiu para o River. Em Liniers, totalizou 212 partidas e 65 gols nos torneios argentinos e uma presença em qualquer lista de time velezano dos sonhos, como o escalado em 2020 pelo Futebol Portenho; no bairro Jardín, foram respectivamente 168 e 66, e igual presença, vide escalação promovida pelo jorna cordobês La Voz em 2012.
Ainda faria novo pé de meia na América do Norte, agora pelo Minessotta – jogaria até um amistoso pelo arquirrival tallarin, o Belgrano, em clássico festivo em 1981 em que aquele time de 1971 de La B derrotou a equipe principal de La T. E serviria também como técnico seus principais clubes, com qualidade do pé ainda intacta: futuro terceiro goleiro argentino na Copa 1990, Ángel Comizzo confessaria já em 2002 ser um freguês do treinador que tivera em 1983 no Talleres nos treinos de tiros livres: “batia de uma maneira monstruosa. Trabalhava mas para si do que para mim o filho da puta, se divertia”. Naquele 1983, deixou La Boutique saiu após ser eliminado nos pênaltis nas oitavas-de-final do Nacional (agora no primeiro semestre) para o vizinho Racing de Córdoba, mas chegou a voltar como bombeiro em meio à campanha medíocre do 13º colocado do Metro.
Willington teve então um razoável 6º lugar com o Vélez na temporada 1987-88 – promovendo ao time adulto um jovem Diego Simeone – para então um trabalho curioso na de 1988-89: seguiu em Liniers nas quatro rodadas inicias para ter uma volta-relâmpago ao Instituto entre a 6ª e a 10ª rodadas, nas quais foi derrotado em todas, menos em um 4-1 sobre o próprio Vélez. Seu grande momento como técnico foi devolver o Talleres à primeira divisão imediatamente após o primeiro rebaixamento albiazul. O acesso veio exatamente em duelo direto com o rival secundário Instituto, na temporada 1993-94, uma alegria misturada a uma certa campanha velezana na Libertadores, aquele torneio que ele nunca pôde jogar: se ontem o Fortín foi goleado em casa pelo Flamengo, em 31 de agosto de 1994 o presente de aniversário antecipado ao velho maestro veio na forma da uma certa disputa de pênaltis vencida em um certo Morumbi graças à estrela de dois outros certos nomes citados na introdução.
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