O Brasil olhou mais atentamente a Julio César Falcioni na final da Libertadores de 2012, como o sisudo técnico adversário de um Corinthians sedento pela glória inédita tão exigida. El Pelusa foi mesmo o último treinador a levar o Boca à final da competição, outrora um costume corriqueiro nesse clube e que não veio a se repetir nesses nove anos. O ex-goleiro sabia bem o caminho, decidindo três vezes (seguidas) La Copa como jogador no poderoso América de Cali dos anos 80, a ponto de defender a seleção argentina vindo do próprio clube colombiano. Falcioni também é o maior técnico dos 125 anos de história do Banfield e um ídolo não muito menor no Vélez. Hora de relembra-lo no seu aniversário de 65 anos.
O futebol vinha de família, embora o pai não chegasse perto dos holofotes – “ele jogava muito as peladas do bairro e também no Barracas Central. Jogava atrás e bem, mas teve um probleminha e sofreu uma grave sanção. Creio que deu um chute nas bolas do árbitro”, resumiu em 2004 na longa entrevista à El Gráfico da qual tiramos as aspas dessa nota. O apelido Pelusa (“Fiapo”) também o acompanha desde cedo. Naquela entrevista, com humor, ele admitiu que Maradona “é o Pelusa mais famoso”, pois este também é dos inúmeros outros apelidos de Dieguito.
El Pelusa Falcioni cresceu no bairro portenho de Versalles, vizinho ao de Liniers, o tradicional reduto do Vélez. Sempre torceu por esse clube e nele se formou. E, jura ele, “desde o dia em que estreei na primeira divisão, em 1976, até o dia do meu retiro em 1992, jamais fui reserva em uma partida de clube”, gabando-se em especial de sua personalidade: “com meus gritos, manobrava bem o ordenamento defensivo, e creio que fui um goleiro parelho: não tinha partidas notas 10 e 1, sempre era 6 ou 7”.
O Vélez na época tinha somente um título na elite argentina, em 1968, e até brigou para não cair naquele 1976. Mas, com Falcioni firmado, recuperou-se rápido. No Torneio Metropolitano de 1977, o Fortín fechou o pódio. Ele até creditou isso a uma mudança de visual, quando passou a usar camisas escuras “para me camuflar com os fundos dos estádios, não queria que fosse tão visível minha presença. Jogávamos muito com a linha de impedimento e isso me servia para que não me chutassem de longe, porque eu estava adiantado”.
O desempenho de 1977 também lhe valeu uma oferta do Barcelona. Mas os catalães passavam longe do glamour atual e, em tempos pré-Lei Bosman e pré-passaporte europeu, uma possível cidadania italiana em nada ajudaria: “tinha que me casar com uma espanhola para obter a nacionalidade, porque não havia vaga de estrangeiros e depois podia romper o vínculo. Era uma coisa meio rara, então preferi dizer que não e tchau”. Ele permitiu-se, sim, sonhar com um lugar na Copa do Mundo: “era muito jovem, mas acreditava que podia estar no grupo”.
Em 1978, o Vélez sofreu no Metropolitano, na briga para não cair, mas recuperou-se no Torneio Nacional: avançou aos mata-matas, caindo nas quartas-de-final para um River que havia sido base da seleção recém-campeã mundial. Mas o grande momento de Falcioni viria em 1979. Os gigantes River e Racing concorreram com o seu Vélez e o maradoniano Argentinos Jrs por duas vagas nos mata-matas do Metropolitano. El Pelusa Falcioni teve sua noite de glória justamente contra Dieguito, defendendo numa vitória de 1-0 dois pênaltis do astro – foi o único goleiro a ter esse gostinho. Outra cara conhecida era a de Carlos Babington, do Huracán (e da Copa de 1974), a também perder no último minuto um penal após ouvir um catimbeiro “chute tranquilo, há 20 mil pessoas e se erras não acontece nada”.
Foi aquele pênalti defendido com o Huracán que permitiu ao Vélez igualar-se justamente ao Argentinos na vice-liderança na rodada final, forçando um jogo extra. Novamente, Falcioni e colegas levaram a melhor sobre Maradona & cia. O Fortín foi avançando nos mata-matas e decidiu o torneio com o River. La Banda Roja terminou campeã, mas Falcioni sorriu: em 18 de abril, ele estreou pela seleção, ainda que em partida não-oficial, com ares de jogo-treino: um 5-2 sobre o clube Gutiérrez, de Mendoza, onde até pênalti pegou. Ele seguiu em convocações de César Menotti, mas sem ter como concorrer com o intocável Ubaldo Fillol. Reconheceu, humilde: “Fillol foi o maior em sua época: tinha que mata-lo para lhe fazer um gol”.
O River, por sinal clube de Fillol, voltou a ser o asa-negra do Vélez nas quartas-de-final do Torneio Nacional, também vencido pelo time de Núñez. O bicampeonato anual do Millo, por outro lado, abriu uma vaga extra na Libertadores de 1980. Os vices Vélez e Unión (do jovem goleirão Nery Pumpido) então disputaram um jogo-extra. Os fortineros prevaleceram e enfim desengasgaram em 1980: no duríssimo regulamento da Libertadores na época, só o líder avançava. E o bairro de Liniers soube enfim deixar o River para trás em outro jogo-extra, após a dupla argentina terminar igualada na fase de grupos.
Aquela era a primeira Libertadores disputada pelo Vélez, que preferira ausentar-se da edição de 1969 – e o foco na novidade fez La V Azulada despencar para 15º de 19 times no Metropolitano de 1980 (enquanto o River se fazia tricampeão). Os novatos não foram páreos para o Internacional de Falcão nas semifinais, mas a torcida velezana estava mais do que satisfeita. E gritava a seu goleiro um “Aplaudaló, aplaudaló, Pelusa es el arquero del Mundial 82”.
O Boca tentou contrata-lo para 1981 no mesmo pacotão de reforços estrelado por Maradona: “estive reunido com o pessoal do Boca, mas o Vélez já havia assinado com o América”. Falcioni, nome frequente nas convocações de Menotti embora nunca jogasse, reconheceu que a transferência à equipe de Cali foi inoportuna por um lugar na Copa de 1982: “não era tão requerido o jogador do exterior e menos ainda o que estava na Colômbia”. Héctor Baley, reserva de Fillol em 1978, seguiu como reserva imediato. O terceiro goleiro? Pumpido, justamente contratado pelo Vélez para substituir Falcioni…
Mas El Pelusa foi ficando na Colômbia: “eu fui ao América pensando que ia por um ano, mas me encontrei com um clube de hierarquia, em um grande momento do futebol colombiano, com muitas figuras. Houve alguma possibilidade de Europa, mas não quiseram me vender, porque era a imagem do clube. Quando me contrataram, veio Miguel Rodríguez Orejuela, não sei se era o chefe do cartel ou não, mas estava sempre”. Não era de bom tom trombar com os cartolas do narcofútbol, embora o goleiro jurasse que não presenciava algo incomum: “sempre estivemos à margem. O máximo que vimos foi uma escolta de proteção quando ele vinha”.
O América havia sido campeão pela primeira vez apenas em 1979 – por sinal, tendo em outro goleiro argentino seu grande destaque, Carlos Gay, herói da Libertadores do Independiente de 1974 (sobre o São Paulo). Em 1982, então, o time do Cartel de Cali emendou uma série jamais vista antes ou depois: um pentacampeonato seguido, até 1986. E quase sempre com panelinhas argentinas: primeiramente, Roque Alfaro e Osvaldo Damiano acompanhou El Pelusa em 1982; Alfaro, Daniel Teglia e Claudio Casares, em 1983.
Veio então uma negociação com o River, que em 1984 importou Teglia, Alfaro e o paraguaio Enrique Villalba do América e desejava abertamente Falcioni. Mas os Rodríguez Orejuela bateram o pé – e o Millo trouxe, por sinal, justamente o citado Carlos Gay no lugar de Falcioni, que permaneceu como o argentino solitário no América campeão de 1984. Nisso, a federação colombiana se mexeu para naturaliza-lo, aproveitando-se que Pelusa jamais havia defendido oficialmente a terra natal.
“Mas como havia gente que não estava de acordo, sobretudo do jornalismo, que queria que jogasse gente do país, tomei a decisão de não me naturalizar. Já estava tudo pronto para que chegasse à concentração 48 horas antes da partida, inclusive [o técnico Gabriel] Ochoa já me havia dito que se não quisesse jogar contra a Argentina em Buenos Aires, não jogaria. Mas bem, era apostar tudo por uma carta que não ia me beneficiar”.
A Colômbia então correu atrás de um jovem Carlos Navarro Montoya, nascido no país embora se considerasse argentino, como filho de argentinos e crescido em Buenos Aires que era. E os dois se arrependeram: Navarro Montoya (por sua vez substituto de Pumpido no Vélez após este rumar ao River em 1984) passou o resto da carreira recusando chamados colombianos e pleiteando inutilmente autorização especial da FIFA para defender a Albiceleste, enquanto Falcioni já admitia na entrevista de 2004 que naturalizar-se “teria sido bom, talvez não sofresse os desencantos que sofri com a seleção argentina e talvez houvesse chegado a um Mundial”.
É que Falcioni tinha motivos sérios para ter esperança de ir à Copa de 1986. Jogar na Colômbia deixara de ser um grande impeditivo para o sucessor de Menotti: afinal, Carlos Bilardo havia treinado a própria seleção colombiana nas eliminatórias para 1982 e, ciente da qualidade do futebol cafetero, vinha dando oportunidades a José Luis Brown mesmo com a transferência deste ao Atlético Nacional. O herói da classificação da Argentina à Copa, Ricardo Gareca, juntou-se em seguida ao próprio América.
E Gareca, Falcioni e outro argentino, o habilidoso meia Carlos Ischia (compadre de velhos carnavais no Vélez), mostraram força em 1985: além do tetracampeonato nacional seguido, levaram o América à final da Libertadores. Faltou sorte: pegador de pênaltis que era, Pelusa não conseguir defender nenhum do Argentinos Jrs, que sagrou-se campeão. Ainda assim, para a Copa de 1986 “todos diziam que eu era o terceiro goleiro, mas apareceu Zelada com as instalações do América do México para a concentração e me marginalizaram”.
De fato, a convocação do tal Héctor Zelada foi vista como a principal presepada de Bilardo em uma convocação final que teve outras polêmicas – a revista El Gráfico até produziu uma matéria de título “quem é Zelada?” para apresentar o desconhecido goleiro que desde 1979 estava escondido no clube mexicano que acertou a hospedagem da seleção argentina. Restou a Falcioni comemorar o penta colombiano… e se contentar com um novo vice na Libertadores, agora para o River de Pumpido.
Em 1987, o hexa foi impedido, mas o argentino foi herói em nova classificação à Libertadores – defendeu dois pênaltis em duelo decisivo com o Atlético Nacional dentro de Medellín. Só que tudo virou amargura no vice-campeonato mais inacreditável dos três seguidos, quando o Peñarol achou o título no último lance da prorrogação do jogo-extra, onde o empate favoreceria os colombianos: “me custou muito, não tinha ganas de nada, era minha terceira final. Eu dava tudo para conseguir um título assim, como dava tudo para ir a um Mundial”, assumiria.
Em 1988, já não houve festa no América. Mas Falcioni enfim foi chamado por Bilardo. Estreou oficialmente pela Argentina em 9 de março de 1989, justamente contra a Colômbia, em Barranquilla – derrota amistosa de 1-0. Na condição de reserva de Pumpido, embarcou para a Copa América. Ao fim do ano, o assassinato de um árbitro após um América x Independiente Medellín (supostamente a mando de Pablo Escobar, revoltado contra um prejuízo a seu time do coração) suspendeu a temporada colombiana. El Pelusa desligou-se do América para focar-se apenas na seleção: voltou a campo em 10 de janeiro de 1990, em amistoso não-oficial contra o Monaco, chamativo por promover a reestreia de Jorge Valdano no futebol após três anos de aposentadoria do atacante.
O clube do Principado venceu por 2-0, mas Falcioni foi reutilizado dali a quatro dias, no 0-0 contra um combinado não-oficial da Guatemala. Pumpido voltou, mas Bilardo valorizava os egressos da Colômbia: com a rebeldia de Luis Islas contra a reserva para Pumpido, Bilardo chamava não só El Pelusa como também Goycochea, do Millonarios. “Seguimos treinando até abril e me cortaram um dia antes de viajar à Itália. [Bilardo] nunca me disse nada”. El Narigón simplesmente preferiu levar alguém menos ambicioso para a vaga decorativa de terceiro goleiro, Cancelarich – que nunca entrou em campo pela seleção mesmo continuamente convocado entre 1988 e 1992.
Como se não bastasse, mesmo após precisar cortar Pumpido com a Copa em andamento, Bilardo mandou chamar sob emergência não Falcioni e sim Comizzo, que nunca tivera chamados prévios. Falcioni voltou ao futebol argentino para a temporada 1990-91 inicialmente como reforço do Gimnasia, mas ficou só o Apertura em La Plata: para o Clausura, voltou ao seu Vélez para repor ninguém menos que Fillol, que pendurara as luvas em alto estilo em Liniers. Mas o regresso a casa também só durou aquele semestre; rumou ao Once Caldas (então Once Philips) ainda em 1991. Ele preferiu pendurar as luvas precocemente, ao notar que a qualidade intacta não era mais acompanhada de motivação para jogar.
A carreira de técnico, por sua vez, até demorou. Falcioni tirou o diploma requisitado pelo futebol argentino, mas também inclusive iniciou e concluiu um curso de jornalismo diante da falta de chamados. E começou pela “raspa do tacho: preparador de goleiros nos juvenis”, no Atlanta, para quebrar um galho ao amigo Alberto Tardivo, ex-colega de Vélez. Gradualmente, ele chegou a subajudante de campo e espião, experiências que garantia terem lhe “servido muito”.
Em 1997, foi chamado pelo Vélez para trabalhar outra vez como treinador de goleiros juvenis, tornando-se técnico do time sub-19 durante a passagem de Marcelo Bielsa por Liniers. “Depois, um ano sem trabalhar, e ao final Olimpo e Banfield”. Falcioni trabalharia por diversos clubes, mas nenhuma torcida se identificaria com ele como a banfileña: os alviverdes saltaram da segunda divisão até as quartas-de-final da Libertadores 2005, a primeira disputada pelo Taladro.
A ascensão valeu a Falcioni uma primeira passagem pelo Independiente, seu clube atual. A da temporada 2005-06 não foi tão exitosa e ele deu passos atrás que tiveram dividendos: em sua volta ao Banfield, treinou o jovem James Rodríguez e colegas que brocaram o primeiro e ainda único título desse clube na primeira divisão, no Apertura 2009. Foi a credencial para chegar no fim de 2010 a um Boca totalmente à deriva e com risco não desprezível de rebaixamento nos promedios. Sem encantar e com diversas caras do seu Banfield, Falcioni imprimiu um futebol eficiente que garantiu o segundo título argentino invicto dos xeneizes já no Apertura 2011, corpos à frente do vice-campeão, o Racing do técnico Simeone. Houve ainda o mérito de no ano seguinte levar os auriazuis à sua última final de Libertadores e ao consolo da conquista da Copa Argentina.
Desde então, a carreira dele precisou estagnar-se seja pela falta de resultados (All Boys em 2013, Universidad Católica em 2014, Quilmes em 2015) ou para tratar-se de câncer na laringe em um regresso ao Banfield, embora chegasse a valer-se até de um megafone para tentar seguir em atividade. O último baque foi a viuvez recente para a Covid-19, rendendo-lhe lágrimas públicas ao classificar nesse estado o Independiente aos mata-matas da última Copa da Superliga. O Rojo cairia para o futuro campeão Colón. “São momentos difíceis. Mas seguimos juntos. Sempre” foi a emocionada dedicatória de uma de suas filhas hoje.
Saúde, Pelusa.
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