Juan Carlos “Toto” Lorenzo: (muito, muito) mais que o maior técnico do Boca no século XX
César Menotti e Carlos Bilardo ainda são os únicos técnicos a vencerem a Copa do Mundo com a Argentina, respectivamente em 1978 e 1986, e naturalmente ganharam chance de disputarem um segundo mundial com a Albiceleste. Além de El Flaco e de El Narigón, só outro treinador esteve em duas Copas com a seleção. Detalhe: após ter caído na primeira fase na primeira delas, o que por vias tortas reforça seus bons predicados. Juan Carlos Lorenzo, o comandante em 1962 e em 1966, afinal, era um técnico copeiro: se por segundos a Liga dos Campeões de 1973-74 com o Atlético de Madrid (onde imprimiu um estilo copiadíssimo por Diego Simeone) lhe escapou, El Toto eternizou-se dirigindo as duas primeiras Libertadores – e o primeiro Mundial – do Boca. Maior técnico do clube até Carlos Bianchi, soube se imortalizar também no San Lorenzo e treinar ainda as rivais Roma e Lazio.
Há dissenso sobre a data de nascimento dele. O próprio Lorenzo, em longa entrevista dada em 1995 à revista El Gráfico, afirmou que teria mesmo vindo ao mundo em 27 de outubro de 1922. A mesma data é utilizada em ao menos dois livros consultados: o Diccionario Azulgrana (2008) e o Quién es Quién en la Selección Argentina (2010); também é a que consta em visto brasileiro, como salientado em nota análoga já publicada no dia 20 pelos amigos da Calciopédia – que adotaram a corrente de que o dia 27 seria o do registro civil, uma semana após a data real do parto, em demora comum para a época. Ali também se infere uma ancestralidade italiana de Lorenzo, valendo trazer que a enciclopédia oficial do centenário do Boca qualifica o mestre como filho de galegos. Ao menos, era torcedor assumido do “clube dos espanhóis”, como o San Lorenzo do seu coração se tornara no fim dos anos 30.
Lorenzo nunca foi mesmo unanimidade. Dentre seus defensores, um argentino bastante entendido de Copas do Mundo: o jornalista Enrique Macaya Márquez, raro hermano a reconhecer Pelé como superior a Maradona. Macaya cobriu profissionalmente todas as Copas desde 1958 e, indagado em 2010 sobre qual seria o seu interlocutor com mais sabedoria de futebol, cravou Lorenzo: “além do conhecimento adquirido na Europa, Lorenzo mantinha a malandragem natural do argentino. Ele dizia que o argentino mais lerdo te fazia um relógio”.
Toto (apelido que ganhara da própria mãe, a passadeira Rosa Pereira, embora nunca soubesse explica-lo) foi daqueles técnicos sem pudor de jogar no limite do regulamento ou um pouquinho além (como alagar o gramado ou deixa-lo mais alto conforme o adversário, embora refutasse veementemente acusações de incitar o doping, como veremos), a ponto de calar detratores do seu Boca vencedor “renomeando” o clube, que para ele se chamava “Sportivo Ganhar Sempre”. Já seus jogadores referiam-se a ele como El Loco mesmo.
Outra amostra da qualidade de Toto? Se até hoje nenhum homem trabalhou nos cinco grandes argentinos (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo), ele está no seleto grupo dos que passaram ao menos por quatro deles – ainda que seus dias no River (1967) e Racing (1980) tenham sido sem glória. Lhe sobrava personalidade, ao virar a casaca até mesmo no Clásico de Villa Crespo, conseguindo títulos (de segunda divisão, é verdade) tanto no Chacarita como no Atlanta; ainda teve estrela em outro rival do Chaca, como gerente do Tigre. Aliás, entre seus diversos ciclos no San Lorenzo houve um pelo Vélez, ainda que essa rivalidade só viesse à tona anos depois.
Hora de relembrar os causos de todo um personagem do futebol sul-americano – mas não só.
O Lorenzo antes da imortalidade
Descoberto pelos juvenis do Nueva Chicago, Toto completou sua formação já no Chacarita, com direito uma passagem prévia pouco conhecida pelo time sub-19 do River – para a qual fora pedido pelo lendário Renato Cesarini, recordado em 1973 e em 1995 como o técnico que mais lhe ensinara. Em ironias históricas, Lorenzo não só era assíduo frequentador do antigo estádio riverplatense anterior ao Monumental, por situar-se próximo de sua casa, como seu pai (um sapateiro de nome José) era inclusive sócio do clube. Mas seria mesmo no Chacarita que acabaria profissionalizado.
Também na entrevista de 1995, definiu-se enquanto jogador como “o homem orquestra. Jogava em qualquer lugar do ataque”. Sua posição mais comum era a de ponta-direita e foi assim que apareceu, ainda com 18 anos, na primeira divisão, em 1940. Inicialmente, em apenas cinco partidas (e dois golzinhos) no lanterna do torneio, no primeiro rebaixamento do Chaca. Os tricolores voltaram imediatamente, como campeões da segundona de 1941. E na reaparição, ele já participava de 23 jogos e comemorava oito gols no certame de 1942, sua melhor temporada nas canchas argentinas.
Em 1943, foram trinta partidas, mas cinco golzinhos, na turbulência institucional que sacudiu os funebreros: foi o ano marcado pelo processo de despejo de seu estádio na rua Humboldt, bairro de Villa Crespo. O campo se situava em terreno alugado, prontamente comprado pelo arquirrival Atlanta – para logo ser demolido e virar uma extensão da casa vizinha, em um dos mais pitorescos condimentos a nível mundial de alguma rivalidade futebolística. A cancha ainda pôde ser utilizada em 1944, quando Toto repetiu os cinco gols, mas em 21 jogos; o suficiente para ser vice-artilheiro do elenco, ao lado de Enrique Martegani.
A equipe, que sempre vinha lutando pela permanência, salvou-se da degola por dois pontinhos. Precisando mais do que nunca fazer caixa em um contexto em que construía seu novo estádio, na cidade de San Martín, o Chacarita acertou a venda dos destaques Lorenzo e de Martegani precisamente ao bicampeão argentino de 1943-44: o Boca, no pacote de reforços que incluíram o futuro ídolo são-paulino Gustavo Albella, Jorge Campos (ambos vindos do Talleres) e Rodolfo Dezorzi, lateral ex-Rosario Central – e única novidade a ter alguma relevância no elenco. Pois, como jogador, Lorenzo jogador foi pouquíssimas vezes visto e festejado no clube em que mais se destacaria futuramente…
Foram só dez jogos no torneio de 1945 (3 golzinhos), doze em 1946 (4) e três em 1947 (1), além de um punhado de amistosos e copas. Ele concorria por um lugar com ídolos da torcida feitos Pío Corcuera e Severino Varela enquanto o Boca começava, sem saber, a entrar em um jejum que duraria incríveis dez anos na liga argentina – embora Toto se pudesse dizer campeão nas edições de 1945 e 1946 da Copa Británica e na Copa Confraternidad, tradicionais troféus de pós-temporada na época. Passava por uma situação esdrúxula: treinava com os titulares ao longo da semana, porque o uruguaio Varela tinha o mimo de passa-la em Montevidéu para manter a forma por conta própria. O astro chegava a Buenos Aires especialmente para as partidas e Lorenzo precisava se contentar com o banco, ainda que nunca se rebelasse.
Em paralelo, na liga de 1945 o elenco disputou palmo a palmo até a penúltima rodada com o campeão River, chegando a vencê-lo por 4-1 no Superclásico na rodada anterior; na de 1946, terminou o primeiro turno um ponto abaixo do River e gradualmente passou a concorrer com o San Lorenzo, com quem soube estender a luta até a rodada final; e em 1947, tal como em 1945, teve chances até a penúltima rodada, quando o River da revelação Di Stéfano assegurou nova taça. Lorenzo saiu pelos fundos, precisando seguir carreira no Quilmes, na segundona.
Foram apenas três meses como jogador cervecero, com quatro golzinhos em doze partidas em que chegou a ser colega de outro futuro técnico bicampeão de Libertadores, Pedro Dellacha. Em paralelo, a recém-fundada equipe italiana da Sampdoria buscou um pacote de reforços bons e baratos na Argentina (entre jogadores da segunda divisão e reservas dos times da primeira) e serviu como o trampolim do Toto à Europa: em Gênova, seriam cinco anos. Exceto pelo bom 5º lugar na temporada 1948-49, a tônica dos primórdios da Samp foi brigar para se manter na elite. Com êxito. E Lorenzo só voltaria ao futebol argentino em 1961.
Em entrevista dada em 1987, ele próprio resumiu o vivido entre o fim de sua passagem doriana e o regresso a Buenos Aires: “na temporada 1952-53, passei ao Nancy da França, onde joguei dois anos como camisa 8 armador, com um grande camisa 10, Roger Piantoni, que ia formar o grande trio de ataque da França na Copa da Suécia com Raymond Kopa e Just Fontaine. O técnico era Jacques Favre, ex-goleiro do clube, um homem que teve muito a ver com meu futuro no futebol. Falávamos muito sobre aspectos do jogo ligados com a tática e, por recomendação dele, o Nancy me mandou com bolsa de estudos ao curso de técnicos que organizava em 1954 a Liga Inglesa em Lillehall, próximo de Newport, a duas horas de trem de Londres”.
El Toto chegou mesmo a ser testemunha ocular da Hungria de 1954, qualificada como a melhor seleção que vira na vida, aproveitando que morava na França para viajar a Berna acompanhar os magiares – afinal, seu curso na Grã-Bretanha incluía diversas reprises da famosa vitória húngara em Wembley em 1953: “o diretor do curso era Walter Winterbottom – a quem enfrentei oito anos mais tarde em Rancagua [na Copa do Mundo de 1962], quando ele treinava a Inglaterra e eu, a equipe argentina. Foi companheiro nosso um destacado inglês de seleção: Stan Mortensen, companheiro do famoso Stanley Matthews no Blackpool. Trabalhávamos no campo e, por exemplo, me davam para dirigir uma equipe que jogava contra outra. De repente, me tiravam um jogador e eu tinha que reagir fazendo o movimento certo para não ficar desarmado. Como parte das classes teóricas, passavam uma e outra vez o filme da partida Hungria 6-3 Inglaterra”.
“Quando Alfredo Di Stéfano ingressou no Real Madrid, estreou em uma partida contra minha equipe francesa. O Nancy ganhou de 2-0, Helenio Herrera me viu jogar e o Atlético de Madrid me contratou. Ali estive quatro anos, até 1958. Nos primeiros seis meses, com Helenio Herrera, de quem aprendi como deve manobrar um técnico as relações públicas e ser seu próprio agente de publicidade. Em 1958, passei ao Real Mallorca, como jogador e como técnico. Ali vivi minhas primeiras grandes satisfações como condutor de uma equipe. Na temporada 1958-59, ganhamos o campeonato da terceira divisão e o acesso. Na seguinte, 1959/60, o levei da segunda à primeira. E em 1960-61 fomos sextos no campeonato da primeira divisão”.
Na entrevista de 1995, ele deu mais detalhes sobre a convivência com o lendário Helenio Herrera, argentino desde cedo radicado na França e tido como primeiro técnico popstar da Europa: “me ajudou muito quando foi técnico meu no Atlético de Madrid. Todos os dias tinha uma ideia nova. Uma vez, fomos jogar em Sevilha e, antes de sair, realizou uma declaração cheia de soberba: ‘já ganhamos’. Os andaluzes se indignaram, até vieram ao hotel para nos insultar. Com essa atitude, o povo carregou de pressões seus jogadores, que vieram com tudo ao ataque, e nós lhes goleamos. O final foi 4-0. HH me olhou fixamente e me disse: ‘não lhe disse que já havíamos ganho?”.
Em dado momento, então, a saudade de casa prevaleceu, como contaria em 1987: “havia passado oito anos na Europa. Havia tido que ganhar o pior inimigo do jogador argentino quando está longe de sua terra: a nostalgia. É preciso se morder, não afrouxar, seguir indo adiante, pensar que está assegurando o futuro. Não é fácil. Por isso é preciso valorizar o que fizeram um Di Stéfano na Espanha, um Sívori ou um Maradona na Itália…”.
O Lorenzo do San Lorenzo, parte 1
O verbete de Lorenzo no Diccionario Azulgrana, publicado em 2008, começa assim a descreve-lo: “para alguns, um sarcástico que abolia a técnica e enaltecia a disciplina física, para outros um sábio que voltou sua experiência europeia ao futebol nativo e que pregou a profissionalização full time daquele então preguiçoso jogador argentino. No San Lorenzo, encontrou o espaço preciso para levar a cabo essas ideias frescas que trazia consigo, extraídas de sua ampla carreira como jogador e treinador no Velho Continente. Desembarcou pela primeira vez em Boedo em 1961, em plena discussão sobre o emprego de práticas europeias, sobre as quais havia muita reticência e desconfiança”.
O técnico que começara a temporada era Florencio Doval, sem parentesco com o ídolo de Flamengo e Fluminense. Lorenzo, que já em 1995 relataria que sempre fora torcedor sanlorencista (a ponto de ter recusado uma sondagem do rival Huracán na época em que jogava no Boca, revelou em 1973), nas palavras do Diccionario “na 8ª rodada estreou de forma oficial com uma vitória de 2-1 frente o Atlanta e após sua chegada a equipe experimentou uma significativa recuperação que desembocou em um segundo lugar, bastante longe do Racing. Inclusive chegou a estar nove encontros seguidos sem conhecer a derrota, mas não bastou para diminuir a distância com a equipe de Avellaneda”.
Lorenzo é visto como quem introduziu ou pelo menos disseminou no futebol argentino as noções de marcar pessoalmente por todo o campo o homem-chave do adversário, bem como de travar e obstruir o arranque rival no meio-campo, ao estilo catenaccio tão associado a seu mentor Helenio Herrera. O jogo defensivo causou estranhamentos e críticas pesadas, e também não ajudava Toto um fogo amigo dos próprios cartolas. É que o matador José Sanfilippo, ainda o maior artilheiro sanlorencista (e futuro jogador de Bangu e Bahia!), chegou a pegar um gancho disciplinar da diretoria e se ausentou da 11ª à 16ª das trinta rodadas – o que não o impediu de terminar artilheiro daquele campeonato.
Mas o atacante tampouco tinha a melhor relação com Lorenzo. Em 2015, um octogenário mas bastante lúcido Sanfilippo mencionou o ex-treinador por duas vezes. Uma, ao ser indagado se alguma vez teve vontade de bater em um técnico: “com El Toto Lorenzo, quando chegou ao San Lorenzo. Antes de uma partida com o Lanús, me mandou marcar o Nene [Héctor] Guidi porque dizia que chutava bem de meia distância e, como eu tinha um bom pique curto, podia lhe roubar a bola. Todos os meus companheiros me olhavam para ver como reagiria. ‘Ah, que bom, terminou, maestro?’, comecei. ‘Bom, lhe digo uma coisa: você está louco. Enquanto todo o Lanús há dois meses não dorme para ver como carajo farão para marcar Sanfilippo, vou me preocupar em marcar Guidi? Você está louco’. Ao final, é claro que não o marquei, ganhamos de 4-2 e meti três gols”.
A anedota tem suas liberdades poéticas: uma checagem às estatísticas mostra que o duelo que teve os dois juntos contra o Lanús em 1961 foi um 3-0, com Sanfilippo marcando só o último gol – no primeiro turno, foi um 2-2, ainda com Florencio Doval de treinador cuervo, ao passo que em 1962 os grenás estavam na segunda divisão. Mas talvez seja a que melhor ilustre a desconfiança e falta de moral inicial com aquele estranho no ninho. Em outro momento da entrevista de 2015, Sanfilippo também qualificou o Lorenzo de 1961 como o pior técnico que teve. Mas ressalvaria que o Lorenzo de 1972 foi o melhor.
Chegaremos lá.
O Lorenzo da seleção, parte 1
O bom segundo lugar com o San Lorenzo em 1961, bate-bocas à parte, reforçou a moral de Lorenzo com a AFA. Outro técnico famoso pelo resultadismo, Victorio Spinetto havia classificado a seleção à Copa, mas sofrera uma terrível excursão europeia com a Albiceleste, sobretudo pelas derrotas de 2-0 para a Espanha e 4-1 para a Itália – além de, embora disciplinador, se ver em meio à polêmica instaurada pelo talentoso mas errático goleiro Néstor Errea (de passagem-relâmpago pelo Vasco) ao não titubear em encher de críticas a delegação toda. A federação não teve dúvidas em ver em Lorenzo um complemento ideal, inclusive por presumivelmente tão bem conhecer o futebol europeu.
Afinal, “deixou muito boa recordação por suas condições de homem trabalhador, responsável, seguidor dos mais mínimos detalhes até ser um obsessivo”, relembraria já em 1988 a revista El Gráfico. Segundo outra matéria da revista, de 2018, a ideia original do presidente da AFA, Raúl Colombo, era em firmar um triunvirato entre Lorenzo, Spinetto e Saúl Ongaro – por sua vez, o técnico do Racing campeão de 1961. Mas Spinetto não aceitou, e desavenças entre Lorenzo e Ongaro logo surgiram. A AFA preferiu o vice-campeão ao campeão e definiu nos primeiros dias de 1962 que El Toto seria o único treinador da Argentina para o Mundial do Chile. E não só: seria também o preparador físico.
Prosseguimos com palavras da matéria de 2018: “ato seguido, nomeou um plantel de 44 jogadores e informou que treinariam duas vezes por semana até 8 de abril, último dia em que poderiam integrar seus clubes, prazo que ninguém respeitou. Lorenzo queria mudar muitas coisas, mas a Seleção ainda não era prioridade para o futebol argentino. O método de Lorenzo não foi assimilado pelos jogadores”. Mesma linha adotada por uma nota de 2014: segundo ela, El Toto, após treze anos de Europa e cursos diversos na Espanha, Inglaterra, França e Itália, “trazia ideias revolucionárias para dar um choque no aburguesado futebol argentino. Esse paradigma, tão diferente ao que havia no meio local, derivou em uma relação ríspida entre Lorenzo e o plantel”.
A nota de 2014 traz inclusive outras cornetas de Sanfilippo (convocado à Copa) a Lorenzo: “Ramos Delgado e eu fomos os únicos que permanecemos do plantel da Suécia, então posso comparar: Lorenzo sai ganhando, mas só no organizativo. Conhecia muito os europeus, mas nada dos argentinos. Por isso se equivocou ao escalar”. De fato, Toto cometeu certas “pardalices”, seja por alterar posições habituais dos convocados, como relembrado pelo lateral-esquerdo Federico Sacchi: “me trocou de posição, contra a Inglaterra passei a jogar de volante central, [o volante Antonio] Rattín foi de meio-campista pela direita e [o também volante Vladislao] El Polaco Cap, lateral-direito. A coisa não funcionou para nada”; seja por um rodízio excessivo ao alterar a escalação conforme cada rival, tendo utilizado vinte jogadores em apenas três jogos da Copa. Três, pois acabou eliminado na fase de grupos.
Mais de meio século depois, Rattín não arrefecera nas críticas àquela nota: “complicou as coisas com suas rarezas. Um dia armou um operação, nos subiu num ônibus e aparecemos no campo onde estava treinando a Bulgária. Nos metemos escondidos, saltando paredes, e quando chegamos ao campo resulta que havia 2 mil pessoas vendo o treino… aos atacantes, punha uma fitinha nos dedos para que, cada vez que olhassem a mão, lembrassem que deviam chutar ao gol”. A sentença no próprio 1962 foi cruel: “má ética, mau companheiro, mau chefe”, por não titubear em criticar publicamente na imprensa internacional seus próprios jogadores.
Na entrevista de 1987, Lorenzo já tinha credenciais para se defender: “cometi erros, é certo. Mas o maior inconveniente que tive foi de fazer algo diferente: pôr Cap de lateral ou armar o meio campo com dois volantes de marcação, como Rattín e Sacchi, era um crime para essa época. Dez anos depois, jogavam [os volantes Victorio] Cocco e [Roberto] Telch no meio-campo do San Lorenzo, éramos campeões e me aplaudiam…”.
O referido Macaya Márquez passou um pano já em 2014 com argumentos similares: “foi o contrário de 1958. No Chile foi tudo tático, estratégico, físico, esquemático, copiamos tudo do europeu e abandonamos todo o nosso estilo, que era o técnico. Eu estive muito próximo de Lorenzo, me agradava sua forma de trabalho. Mas fracassou de novo. Na partida contra a Inglaterra, pôs Rattín de meia-direita para marcar Bobby Charlton, que era uma espécie de camisa 10 recuado. Lorenzo queria que Rattín perseguisse Charlton. Rattín se esqueceu de que não tinha que atacar, ou pelo menos lhe custou muitíssimo. A ideia não era má, mas não funcionou, e perdemos de 3-1”.
Em 1995, Lorenzo seguia se defendendo: “eu vinha da Europa e conhecia como jogavam nossos rivais. Escrevia as características em um papel e o dava aos jogadores. Hoje nos parece ridículo, mas naquele tempo não havia vídeos e eu tinha que tomar minhas precauções. Para os jogadores, era um filme novo ver Bobby Charlton em ação… os ingleses nos ganharam do mesmo jeito por 3-1, mas eu cumpri com minha obrigação”.
Ao mesmo tempo em que treinou a seleção, Lorenzo conciliou o cargo com o San Lorenzo. Ao menos até a 12ª rodada da temporada 1962, em agosto. Apesar da vice-artilharia de Sanfilippo, pesou mais a incompreensão: o time foi apenas 11º e o treinador foi embora após levar de 3-0 do Rosario Central.
O Lorenzo do San Lorenzo e da seleção, partes 2
Se El Toto enfrentou ostracismo por um tempo na terra natal, a fama de “rei do acesso” construída no Real Mallorca seguia acesa na Europa. A Lazio estava pela primeira vez rebaixada e seu presidente foi pessoalmente sondar o argentino, a construir uma trajetória romana de idas e vindas, detalhada pelos especialistas da Calciopédia. Em resumo: Lorenzo conseguiu retirar imediatamente os celestes da Serie B, com o vice-campeonato na temporada 1962-63, e os manteve em segurança na elite na edição 1963-64. E então virou a casaca, após não chegar a um acerto pela renovação de contrato.
A ousadia, cometida com a temporada 1963-64 ainda em andamento, foi premiada com Lorenzo figurando na escalação campeã da Copa da Itália com a Roma. Valorizado entre os giallorrossi também por sua proatividade extracampo em angariar fundos à endividada Loba, acabou durando apenas mais uma temporada na Cidade Eterna, ao menos naquele momento. Ainda em 1965, ele reapareceu em setembro como técnico do San Lorenzo, a partir da 17ª rodada de uma temporada turbulenta: não só era àquela altura o terceiro técnico azulgrana, como chegava em um contexto marcado pelo atentado militar que amputara em abril o braço da promessa Victorio Casa.
Lorenzo reestreou já com vitória de 1-0 no clássico com o Huracán, em plena casa rival. Mas não fez lá muita coisa: foram seis derrotas nos dezesseis jogos. Ainda assim, foi um retorno proveitoso para que se aproximasse da realidade local. Pois, incrivelmente, o filme de 1962 seria rebobinado quase que à risca: o treinador que classificara a seleção à Copa (José María Minella, único a superar Gallardo em anos seguidos de técnico do River) não seguiria. O sucessor inicial foi Osvaldo Zubeldía, que só aguentou uma única partida (1-1 com a URSS, em dezembro de 1965) as idiossincrasias da AFA. A cerca de dois meses da Copa, o futuro tricampeão de Libertadores com o Estudiantes pediu para sair.
Bicampeão argentino de 1964-65, o Boca chegou a oferecer seu corpo técnico, com o lendário Adolfo Pedernera até dirigindo um treino. Mas o sucesso de Lorenzo no continente do Mundial pesou mais. Só que novamente não houve o melhor trato com os jogadores: uma excursão de 40 dias pela Europa foi extenuante a alguns dos 25 pré-convocados, a ponto de mais de um não fazer tanta questão em seguir à Inglaterra. Além da saudade do ambiente familiar, a viagem estava longe de ser glamourosa: em Copenhague, o hotel inicialmente contratado não era digno “nem de meia estrela”, qualificou um jogador; improvisaram do jeito que puderam uma acomodação mais digna na própria véspera do duelo com a Dinamarca.
O artilheiro Luis Artime, que sugeriria em 2014 que Lorenzo fora o pior técnico que teve, jurara em 1990: “se nos déssemos as passagens de volta, voltávamos todos”. Se uns queriam voltar, outros ficaram amargurados de perderem a chance – Jorge Griffa estava em boa fase no Atlético de Madrid e vinha tendo sondada sua naturalização pela seleção espanhola… que estava sorteada para o mesmo grupo da Argentina. Lorenzo o dissuadiu da ideia. “Creio que o fez por isso, depois Lorenzo desapareceu. Uma pena, me teria encantado jogar um Mundial. E era esse”, resmungava Griffa em 2016.
Quando a delegação rumou a Milão, não viu de bom tom que Lorenzo passasse a falar em italiano, buscando impressionar os locais. Muito menos o mistério em relação à lista final, cuja entrega já parecia demorada demais – e, sob pressão, foi então anunciada em ordem alfabética sem que ele se dignasse a olha-los nos olhos. Rattín era um dos remanescentes de 1962 e se manteve afiado com o tempo (“era um sujeito difícil. Estávamos em Turim e vários lhe pedimos que voltasse à Argentina. Queria ele ser a figura…”, chiou em 2009), acusando-o não apenas de não cumprir com a palavra como até de cometer o grave erro de assegurar-lhe de que teria direito a exigir intérpretes durante o jogo para se comunicar com os árbitros. Não havia isso no regulamento e a desinformação seria decisiva para sua famosa expulsão contra a Inglaterra.
Ao fim, mesmo cortando nomes outrora dados como certos (Raúl Bernao, Alberto Rendo, Vicente de la Mata) e bastante frequentes no ciclo dos antecessores enquanto convocava gente com menos de cinco partidas pela seleção (Aníbal Tarabini, Nelson López, José Omar Pastoriza, Hugo Gatti), a campanha que recolocou a Albiceleste em uma segunda fase de Copa pela primeira vez desde 1930 foi vista como honrosa – especialmente pelo atenuante da polêmica arbitragem contra os ingleses. Outra diferença para 1962 é que Lorenzo soube dessa vez usar uma sólida equipe-base e sem invenciones nas posições. Mas a malandragem seguia vívida: em amistoso contra a Itália, a derrota de 3-0 ficou menos recordada com o tempo do que ter colocado Alfredo Sáinz para substituir a Roberto Ferreiro… que havia acabado de ser expulso. Colou.
Por outro lado, também fora providencial a intermediação do cartola Valentín Suárez, de melhor tato com os jogadores, para apaziguar o ambiente. A eliminação encerrou também seu segundo ciclo no Ciclón: treinara em conjunto o San Lorenzo até a 8ª rodada, em abril, antes do foco voltar-se apenas à seleção. E não voltou após a Copa.
O Lorenzo do San Lorenzo, parte 3
Lorenzo recomeçou como técnico do River em 1967. O Millo vivia expressivo jejum que já chegava ao décimo ano, atravessando um período cheio de dissabores em que taças escapavam entre os dedos – já havia sido vice assim em 1962, 1963 e 1965 na liga argentina e em 1966 na Libertadores. Com El Toto, nem isso houve: só durou até junho, em meio a resultados ruins no Metropolitano embora o time seguisse àquela altura ainda vivo na Libertadores. A decepção foi tamanha que o lendário presidente millonario Antonio Vespucio Liberti, quem dá nome oficial ao Monumental de Núñez, acabou caindo junto e não voltou mais ao cargo. Ainda assim, sem ele o time fez ainda mais feio, sem uma única vitória em seis jogos do quadrangular-semifinal da Libertadores.
O perfil na Calciopédia assinala que Lorenzo ainda teve um retorno ao Real Mallorca antes de novamente ser convidado para desatolar a Lazio da Serie B. Outra vez, conseguiu isso de imediato, agora como campeã da categoria, na temporada 1968-69. Ele a manteve a salvo da degola na temporada seguinte, chegando a ter duelos com o próprio mentor Helenio Herrera, então romanista, no Derby della Capitale – eles chegaram a posar juntos com o pugilista argentino Carlos Monzón, que fora a Roma lutar pelo cinturão e até foi mimado com sua refeição favorita pela esposa de Lorenzo, após cada pesagem.
Mas, embora El Toto viesse com o tempo a ser valorizado por pinçar à Lazio gente ainda anônima que se tornaria essencial no primeiro título italiano do clube (na temporada 1973-74), não escapou do rebaixamento na de 1970-71. O que propiciou um trabalho enfim consagrador em casa: não só na Argentina, mas no seu San Lorenzo do coração. Que havia acabado de ser finalista do Torneio Nacional de 1971 e visto seu técnico, o ex-goleiro flamenguista Rogelio Domínguez, acabar pulando ao Boca.
Inicialmente, o time de Boedo contratara Andrés Prieto, mas o chileno nem chegou a estrear na liga argentina, retirando-se ainda na pré-temporada. Miguel Ignomiriello comandou interinamente os cuervos nas cinco primeiras rodadas do Metropolitano até ser convertido em assistente de Lorenzo da 6ª em diante. Pôde contar somente até a 12ª com o matador Rodolfo Fischer, logo negociado com o Botafogo. Dois meses depois, quem partiu foi o bom volante Antonio García Ameijenda.
Por outro lado, o elenco recebia de volta o veterano ídolo Sanfilippo, notando sua qualidade nas peladas da equipe sênior – El Nene estava mesmo aposentado após deixar o Bahia. Mesmo sem Fischer, Ameijenda e sem utilizar tanto outras peças que se consagrariam tremendamente dali a uns anos, como o ponta Oscar Ortiz, o defensor Jorge Olguín (ambos membros da seleção de 1978) ou o superartilheiro Héctor Scotta, El Toto imprimiu tamanha superioridade que seus pupilos foram campeões do Metro quando ainda faltavam quatro rodadas. Ainda que, internamente, tendesse a ser mais respeitado pelos mais jovens do plantel.
Na ocasião dos trinta anos daquela temporada histórica, o beque Rubén Glaría, que acabaria catapultado à Copa de 1974, era só elogios: “essa equipe era um reloginho, um computador. E Lorenzo, que para mim foi o melhor técnico junto com Zubeldía, teve muito a ver com o funcionamento. Trabalhava muito sobre a psique do jogador. Uma vez me disse: ‘se o camisa 11 chega a fazer um gol, você eu tiro’. Banquei 29 rodadas sem que um ponta-esquerda nos metesse um gol. Assim motivava a todo mundo”. O título ainda serviu para ofuscar um grande campeonato do arquirrival Huracán, 3º colocado.
Mas a temporada foi histórica porque, em seguida, o elenco faturou também o Torneio Nacional – desde que o calendário argentino se dividira em 1967 entre Metropolitano e Nacional, nenhum clube havia ainda conseguido vencer os dois em um mesmo ano. Com a melhor campanha geral da primeira fase, o Ciclón teve o luxo de avançar diretamente à decisão. Nela, venceu pelo placar mínimo, já na prorrogação, um River ainda sob aquele terrível jejum e especialmente sedento em encerra-lo após eliminar o arquirrival Boca na semifinal. A final, aliás, mereceu uma anedota em outro trecho daquele perfil de Toto no Diccionario Azulgrana:
“Seis anos mais tarde [após deixar o San Lorenzo em 1966], escreveu seu capítulo de glória em Boedo. Comandou, ordenou e poliu aquele timaço que se adjudicou o bicampeonato de 1972. Sem dúvidas, o feito que o instalou definitivamente no sentimento azulgrana. Na partida final do Nacional 72 contra o River, preparou uma artimanha própria de sua autenticidade, uma arapuca que levou seu selo característico. El Toti [Carlos] Veglio estava afastado dos campos por lesão, mas igualmente o mandou fazer pré-aquecimento com a roupa de jogador para que os jornalistas o vissem. Assim o recordou Veglio: ‘quando as rádios disseram que eu ia jogar, Lorenzo veio e me disse: ‘bárbaro, Flaco, agora eles devem ter uma dor terrível na cabeça’. Eram essas as manhas do Toto…”.
Lorenzo permaneceu no Gasómetro até o fim do semestre seguinte; trabalhou até a 22ª rodada do razoável 3º lugar dos cuervos no Metro (dessa vez, o Huracán é quem terminava campeão, mas sem vencer os clássicos) e, em paralelo, até o fim do sonho na Libertadores: o time parou nas semifinais para o dominante Independiente daquele tempo. Foi o mais longe que o Sanloré esteve da decisão até enfim vencer La Copa, em 2014.
A participação do San Lorenzo no tradicional Troféu Joan Gamper, embora não o vencesse, fez o treinador voltar aos olhares espanhóis.
Sucessos rojiblancos: Atlético de Madrid e Unión
O Atlético de Madrid havia vencido La Liga de 1972-73, mas seu treinador Max Merkel optara por voltar ao futebol alemão. Já conhecido de longa data no Vicente Calderón, Toto Lorenzo foi contratado para substituir o austríaco e não titubeou em levar uma panelinha junto: o zagueiro Ramón Heredia e o atacante Rubén Ayala eram ambos do seu San Lorenzo de 1972. Também avalizou a vinda de mais um argentino ao Rio Manzanares, o lateral racinguista Rubén Díaz. A ambição era clara: o primeiro bicampeonato espanhol seguido em vinte anos, que também faria o heptacampeão Atleti dividir com o então octacampeão Barcelona o posto de segundo clube mais vezes campeão em La Liga.
Os catalães, por seu lado, trataram então de se reforçar com Johan Cruyff e foram asas negras tanto no campeonato, campeões oito pontos à frente dos vices rojiblancos; como também na Copa do Rei (então Copa do Generalíssimo), nas semifinais. Segundo a contextualização do livro ¡Atleti!: Una historia partido a partido (de Ángel Iturriaga), foi com isso que as esperanças da temporada então foram gradualmente direcionadas à Liga dos Campeões, ainda Copa dos Campeões. O Galatasaray caiu na prorrogação, mas o Dínamo de Bucareste pôde ser derrotado por 2-0 dentro da Cortina de Ferro, assim como o Estrela Vermelha: contra ambos, os espanhóis se deram ao luxo de ficar no 0-0 em casa no jogo da volta.
Nas semifinais, Lorenzo não teve pudor em se retrancar acentuadamente contra um Celtic que inspirava naqueles tempos temor real a qualquer potência europeia: Panadero Díaz colou em Jimmy Johnstone, repetindo o que fizera pelo Racing no Mundial Interclubes de 1967, também contra o time de Glasgow. Díaz deixou a Escócia metralhado como assassino pela imprensa britânica, ao fim de um cotejo em que foi expulso junto aos colegas Ayala e Quique. Lorenzo tampouco foi poupado, com o famoso sensacionalismo da mídia da ilha relembrando que ele era o técnico dos Animals que desonraram a Rainha na Copa de 1966, bem como de uma Lazio que tretara contra o Arsenal na Copa das Feiras de 1970-71.
El Toto não se intimidou nas respostas: “times britânicos também não são anjos. A partida Celtic x Atlético teria terminado muito diferente se não fosse arruinada pelo árbitro turco. Ele foi inacreditável. Não houve problemas no jogo de volta em Madrid. Quanto ao incidente Lazio x Arsenal, não houve problema algum no campo. O que houve é que jogadores do Arsenal entornaram grande quantidade de vinho e uísque no banquete pós-jogo e começaram a insultar os italianos. Dois dos meus jogadores, Wilson [Giuseppe Wilson, nascido na Inglaterra] e Chinaglia [Giorgio Chinaglia, crescido em Gales] falavam bom inglês e entenderam cada palavra. Eles aguentaram muito e não mais, e uma grande briga começou”.
O 0-0 no Hampden Park deu lugar a um 2-0 brilhante no Vicente Calderón, gols de José Gárate (outro nascido em Buenos Aires naquele elenco, que, a incluir ainda o brasileiro Heraldo Bezerra, acabou apelidado de Los Indios) e Adelardo. O resto é a história conhecida: uma final tremendamente truncada em Heysel só viu emoção nos cinco minutos finais da prorrogação, quando o veterano Luis Aragonés abriu o placar – para então os colchoneros levarem o empate no lance final. A amargurar para sempre o clube e o treinador, a desabafar assim: “faltavam 40 segundos e um zagueiro torpe deles bateu desde a sua casa um chutezinho. Sabem o que estava fazendo Reina, nosso goleiro? Dando suas luvas de recordação ao fotógrafo do Marca. Foi gol. Vicente Calderón, o presidente, quase morre conosco no camarim”.
Sem decisão por pênaltis, houve novo jogo, e as 48 horas de intervalo não bastariam para reanimar o Atlético, surrado por 4-0, ainda que o argentino se permitisse questionar a validade de dois daqueles gols. Lorenzo ainda começou a temporada 1974-75 no clube, ainda sem gás para o início de La Liga. A gota d’água foi cair no segundo mata-mata da Copa da UEFA, para o Derby County – por sinal, nos pênaltis. Vicente Calderón em pessoa preferiu tomar a medida arriscada, mas certeira com o tempo, de converter o veterano jogador Luis Aragonés no novo treinador, em outubro de 1974. Foi já sob o sucessor que veio a esdrúxula conquista do Mundial Interclubes, sobre o Independiente, diante da recusa do Bayern Munique. O gol do título foi do Ratón Ayala trazido pelo Toto a Madrid.
Em paralelo, ao fim de 1974 o Unión, ainda com Carmelo Faraone de treinador, voltava à primeira divisão argentina. Até então uma equipe ioiô, o clube de Santa Fe não quis fazer feio e bancou a midiática contratação de Lorenzo – e um pacotão de reforços: os meias Victorio Cocco, Roberto Tojo e Roberto Espósito haviam sido treinados por ele no San Lorenzo e o goleiro Hugo Gatti, no River e na seleção. Os atacantes Heber Mastrángelo e Víctor Marchetti e o zagueiro-artilheiro Víctor Bottaniz também tinham experiência no River, enquanto o então defensor Rubén Suñé, participante do Huracán semifinalista da Libertadores 1974, já tinha uma carreira vencedora no Boca. Foi com Lorenzo no Unión que Suñé viraria um consagrado volante central e que Mastrángelo passaria de centroavante a um ponta de melhor fase: “me ensinou os segredos para fabricar diagonais”.
O Tatengue fez então sua melhor campanha histórica até então, já começando com tudo, ao vencer os cinco primeiros jogos e sete dos nove primeiros. A série incluiu um 4-2 no Newell’s (campeão do Metro anterior), um 2-1 no Boca e outro no San Lorenzo, além de um 1-0 em pleno Gigante de Arroyito sobre o Rosario Central de Mario Kempes, timaço vice dos dois torneios de 1974 e que em paralelo rumava às semifinais da Libertadores de 1975. E que renderia um entre tantos causos envolvendo o Toto, marcante demais para o zagueiro alvirrubro Alcides Merlo. A instrução foi a seguinte: “veja, Merlo, a coisa é simples: você não joga, mas Kempes tampouco. Persiga-o, machuque-o, não o deixe se mover. Você não cheira a bola, mas ele tampouco. Jogamos dez contra dez e aí ganhamos nós. Entendeu?”.
Mas o assunto não se resumiu à ordem em si: Lorenzo teria feito o tal Merlo repeti-la feito verso, a ponto de até acorda-lo na madrugada para checar se o pupilo havia fixado o suficiente na mente. A El Gráfico complementou em 2001: “o pobre do Merlo estava sonhando com os anjinhos, mas nem adormecido se esquecia de sua missão, que recitou ante o olhar incrédulo de Heber Mastrángelo, seu companheiro de quarto. Durante a partida, Merlo foi implacável com Kempes, que se lesionou faltando meia hora. Obediente, o defensor ficou a seu lado enquanto o médico o atendia. E mais: caminhou a seu lado até a boca do túnel. Quando se fez a substituição, buscou Lorenzo para que lhe desse novas instruções. E El Toto as deu: ‘repita o mesmo versinho, mas em vez de Kempes diga o camisa 16′”.
O próprio Mastrángelo, ponta habilidoso e com passado na seleção, tinha suas anedotas. Declararia em 1981 que “El Toto Lorenzo é um personagem único. Às vezes dá ganas de mata-lo, mas sempre, ao recordar episódios seus, alguém termina gargalhando”. Em outro momento, em 2013, deu um exemplo: “em um Racing x Unión, apitavam tudo a favor do Racing. O juiz se chamava García. E começou com os insultos: ‘tchê, Rodríguez, p… que te pariu’, ‘Rodríguez, à casa do …’; ‘Rodríguez, quem te pagou, filho da p…’?’; ‘pirulito de alcatrão’, haha, os chamava de pirulito de alcatrão, porque se vestiam de preto, não como agora. Em um momento passei ao lado e lhe disse: ‘maestro, o juiz se chama García, não Rodríguez’, e ele me respondeu: ‘queres o quê, que lhe chame de García e me expulse até a merda?’, haha. Um gênio”.
Ao fim, aquele Unión terminou com um 4º lugar com cheirinho de prata, pois ficou a dois pontos do vice Huracán, que chegou a levar de 4-0 no caminho – enquanto o Racing tomava de 7-1, o Argentinos Jrs levava dentro de casa um 3-0. Para o mundo, a grande revelação da sensação do campeonato foi o atacante Leopoldo Luque, que assumidamente precisou de Lorenzo para se encher de segurança a ponto de em médio prazo virar o mais decisivo jogador argentino na Copa 1978 até a decisão. Detalharia já em 1978 à revista brasileira Placar: “minha vida só começou quando Lorenzo chegou. Ele levou-me para viver com ele, tratava-me como a um filho. Várias vezes aparecia no meu quarto, levando um copo de leite e um pão doce. Dizia-me: ‘você, pibe, é um grande jogador, só precisa acreditar nisso'”.
Lorenzo, claro, não permaneceria muito tempo. E ainda desfalcaria o clube em prol do trabalho seguinte. Mas injetou nova mentalidade nos jogadores que permaneceram com os santafesinos; apesar da campanha apenas regular no Torneio Nacional (em parte pela imediata saída de Luque, adquirido pelo River tão logo terminou o Metro), muitos deles seguiam no estádio 25 de Abril quando o clube chegou ao vice-campeonato, já em 1979. Um dos que saíram junto com o treinador foi El Chapa Suñé – cujo perfil, na edição especial em que a revista El Gráfico elegeu em 2012 os maiores ídolos unionistas, possui depoimento no qual ele jura que aquele elenco do Tate tinha qualidade superior a qualquer um em que atuou no Boca.
O citado Mastrángelo fora além, detalhando em 2013 que “no contrato com o Unión, havia colocado que se me buscasse uma equipe de Buenos Aires, tinham que me avisar. Em um mês, Lorenzo me conta: ‘o San Lorenzo te quer, mas ali não há um tostão’. Ele o havia treinado há uns anos, além disso eu estava bem no Unión, era como o Real Madrid. Umas semanas depois me comenta: ‘o Independiente te quer, ali sim tem grana’. Fui ao hotel Nogaró, me juntei com o dirigente José Epelboim, me disse que me queriam. ‘Fique no Unión, que ao fim do ano passamos nós três ao Independiente, com Gatti’, me disse Lorenzo. Durante as festas, soou o telefone. Era Lorenzo: ‘não vá ao Independiente que acertei com o Boca'”.
Daquele Unión, o ex-riverplatense Lorenzo realmente levaria ao Boca o ex-riverplatense Mastrángelo e o ex-riverplatense Gatti, ambos assumidos torcedores boquenses desde sempre e que enfim jogariam com a camisa dos amores. Mas internamente o furor maior na Casa Amarilla tenha sido convencer o presidente Alberto Jacinto Armando (quem dá nome oficial à Bombonera) a aceitar de volta Suñé, que saíra brigado com a cartolagem auriazul anos antes.
Hora de passarmos à melhor fase do Toto.
O melhor Lorenzo: o maior técnico do Boca até Carlos Bianchi
O Boca vinha de três temporadas com aquele Rogelio Domínguez a quem Toto já havia substituído no San Lorenzo. O ex-goleiro foi reconhecido por render um futebol vistoso, mas pouco efetivo para títulos: não ganhou nenhum e ainda é o técnico que por mais tempo e partidas durou por lá sem ganhar taças. Além do trio proveniente do Unión, Lorenzo trouxe consigo outro velho conhecido, o ponta Carlos Veglio, ex-dirigido por ele naquele San Lorenzo de 1972. E “ordenou” um senhor pé quente a desistir de buscar o pé de meia na Colômbia: Francisco Sá, zagueiro presente em todo o tetra do Independiente na Libertadores entre 1972-75. Com o Boca e com Lorenzo, El Pancho Sá logo viraria o jogador mais campeão do torneio.
Mas o início não foi fácil. A enciclopédia oficial do centenário xeneize chegou mesmo a destacar um pulso firme que Lorenzo se viu necessitado de adotar para mostrar autoridade, ao penalizar uma escapada de Osvaldo Potente, xodó da torcida, a um treino: “sua atitude me forçou a tomar uma decisão drástica. Me desfazer dele foi uma decisão dolorosa que me causou alguns problemas”, afirmaria. Mas o mesmo livro contém também o seguinte perfil: “Lorenzo entendeu os torcedores do Boca como nenhum outro. Ele teve a sabedoria de harmonizar experiência comprovada com jovens talentosos e determinados, construindo um time místico e vencedor baseado na sua personalidade, uma dura e renhida equipe que era rápida em capitalizar os erros dos oponentes. Ele era conhecido por desafiar seus críticos, dizendo-lhes ‘se querem espetáculo, vão ao teatro’. Um motivador de nascença”.
De início, o Boca não convenceu no Metropolitano, que dividiu os 22 times em dois grupos em uma primeira fase em turno e returno, da qual pinçaria os seis primeiros de cada chave para um dodecagonal final. O generoso regulamento caiu dos céus a um elenco que a princípio não conseguia vencer nem mesmo dois jogos seguidos – Lorenzo quase saiu mesmo do cargo ao perder o Superclásico, levar de 5-1 do Rosario Central ou após a talvez ainda mais chocante derrota de 3-1 para os novatos do San Telmo. Nove vitórias, sete empates e seis derrotas deixaram a equipe em 4º no Grupo A, a doze pontos do líder Huracán.
El Toti Veglio mostrou-se um escudeiro particularmente fiel, segundo palavras suas de 2017: “em um primeiro momento, foi custoso, porque ele era complicado, entende?, mas eu dizia a meus companheiros: ‘deem bola a esse sujeito, porque nos vai fazer ganhar, eu já o tive no San Lorenzo e nos fez ganhar apesar das dificuldades do começo”. Bem, ao final daquele Metro aquele fortíssimo Huracán dos anos 70 seria mesmo o time com maior pontuação na soma das fases. Só que para levar a taça bastava ser líder da segunda fase isolada. Nela, foram onze jogos de invencibilidade do Boca, que permitiram um pontinho a mais do que o Globo, derrotado no duelo direto na reta final.
Na entrevista de 1995, Lorenzo escolheu aquele como seu título mais importante: “fazia cinco anos e meio que o clube não dava uma volta olímpica. Isso no Boca era quase um século”. Ainda houve o gostinho de dar a volta olímpica no Monumental de Núñez, utilizado como palco da partida com o Unión, na qual o Metro foi matematicamente assegurado. A sorte de campeão do Boca ganhou ares simbólicos no 1-1 com o Independiente, do qual o goleirão Gatti precisou sair após fraturar a mandíbula – para então seu reserva Carlos Biasutto se consagrar pegando um pênalti. Logo as preleções técnicas de Lorenzo passaram a ser vistas como verdadeiras missas pelos comandados, segundo a versão dada em 2000 pelo lateral Vicente Pernía:
“El Toto era um maestro, nos juntava todos em um quarto e nos falava do rival, da função de cada um, das táticas, de quem tinha que marcar quem. E mais, havia semanas que as fazia três vezes. E nunca era menos de uma hora. Não entendo os técnicos que resolvem as conversas em quinze minutos, é como se não tivessem nada a dizer. Ademais, Lorenzo te motivava sem mentir a ti. Não te fazia crer que eras o melhor, mas te dava uma força anímica incrível”. Logo o técnico repetiria o feito pessoal de 1972: faturar em um mesmo ano o Metropolitano e o Nacional. Somente El Toto, dentre os técnicos argentinos, conseguiu essa dobradinha com clubes diferentes.
Para o Nacional, o grande reforço foi Mario Zanabria, joia do Newell’s campeão de 1974 transformada por Lorenzo para ser um Riquelme dos anos 70. Dessa vez, o Boca começou já a galope o torneio, somando dez vitórias, três empates e três derrotas ao fim da fase de grupos – para então já exibir força copeira nos mata-matas: 2-1 no Banfield nas quartas-de-final, 1-0 no timaço do Huracán nas semis e novamente vitória mínima na decisão, nada menos que o primeiro Superclásico da história em uma final – e a única por quase cinquenta anos, até as de 2018; um episódio a render mil causos do treinador. Em 1995, dizia que sempre se preparava com duas semanas de antecedência aos Superclásicos, reconhecendo que enfrentava um rival que era melhor no papel: “era preciso vence-los mentalmente, porque se perdíamos a luta psicológica, tchau”.
Figura ativa dessas anedotas do Lorenzo setentista, Mastrángelo, dúvida após se lesionar na semifinal, destacou em 2011 essa, que prevenia até a conhecida faceta artilheira do zagueiro rival Daniel Passarella: “logo que nos classificamos à final, fomos nos concentrar em La Candela. Na segunda-feira, durante o dia de descanso, a dor no tornozelo não me saía, por isso me chamou a atenção quando no dia seguinte Lorenzo me fez ir ao consultório médico na presença dos jornalistas. Diante deles gritava ao doutor: ‘vendar o tornozelo esquerdo de Mastrángelo’. Quando terminou toda essa espécie de encenação, disse ao Toto: ‘maestro, eu não posso nem me mover e o tornozelo que me dói é o direito’, ao que me respondeu: ‘você vai jogar do mesmo jeito e fiz te vendar o saudável diante da imprensa, assim Passarella te bate nesse e não no lesionado’. Um fenômeno. ‘Você tem que jogar porque, apesar do teu marcador ser El Gorrión [Héctor] López, para mim importa é Passarella. Se você estiver no campo, Daniel não vai passar ao ataque por medo da tua diagonal e [o técnico rival Ángel] Labruna não vai deixa-lo ir a nenhum lado”.
Suñé fez valer o retorno imposto por Lorenzo ao presidente Armando, cobrando com perfeição uma falta aos 27 minutos do segundo tempo, se antecipando ao apito do juiz para surpreender o goleirão Ubaldo Fillol – alguém que demorava demais para armar barreiras, advertira Toto. É como o defensor Alberto Tarantini, único dali aproveitado na seleção de 1978, se recordava em 2012: “era bravíssimo com as superstições, e lhe agradava nos fazer esperar. No dia da final do Nacional 76 contra o River, estávamos em La Candela e não aparecia, não aparecia. Gostava de fazer-se esperar. Nós estávamos com toda a adrenalina para ir a campo e aí disse: ‘mas p… que o pariu, onde estará este louco?’. E estava justo atrás de mim. ‘Aqui estou, neném, hehe, agora vamos ver se te fazes de aceso também em campo’. Era um monstro: disse dez vezes ao Chapa Suñé que os do River se demoravam em armar a barreira. E graças a essa astúcia ganhamos”.
Superstições eram mesmo assunto sério com Lorenzo. Seu perfil na Calciopédia teceu diversas na Itália. Um outro exemplo esteve em nota de 1988 voltada não ao treinador, mas àquele lendário presidente boquense Alberto Jacinto Armando: “se comiam ovo frito e ganhavam no dia seguinte, havia ovo frito até que se perdesse, e o presidente do clube acompanhava ainda que não gostasse do menu”. Nas palavras do próprio Armando, à mesma nota: “Lorenzo é notável. Conseguiu mais títulos que ninguém, nos deu a tão ansiada Copa Libertadores, especialmente a mim que a persegui durante treze anos, e o mais meritório, com um plantel modesto em comparação ao que tiveram [Adolfo] Pedernera ou [Alfredo] Di Stéfano“, lendas do River que havia sido treinadores vitoriosos no Boca nos torneios domésticos dos anos 60.
Aquela Libertadores de 1977 teve um grupo especialmente duríssimo em tempos em que somente o líder avançava de fase: Boca e River dividiram a chave com um cascudo Peñarol. Pois a freguesia no Superclásico foi renovada em uma campanha invicta na chave, com quatro vitórias e dois empates garantindo por antecipação da classificação. Logo o time preferiu se descuidar no Metro, onde nunca repetiu a mesma escalação e até usou quatro goleiros diferentes, finalizando em 4º lugar. Enquanto o River vencia o Metro, o Boca seguia na fase seguinte da Libertadores – um triangular-semifinal, em que os pupilos de Lorenzo mantiveram a invencibilidade, contra o Libertad (vencido nos dois jogos) e o Deportivo Cali.
Na final, foi a vez do timaço do Cruzeiro sucumbir, após 90 minutos na Bombonera (1-0, gol do pupilo Veglio), 90 no Mineirão (derrota pelo mesmo placar), 120 na neutra Montevidéu (0-0) e por fim nos pênaltis. A decisão contra uma equipe brasileira fez a Placar registrar diversos depoimentos do mestre: antes da final, em nota que elogiava a eficiência defensiva apesar da falta de sutilezas dos argentinos, a declaração foi a seguinte: “é um time tipicamente europeu. Armei-o assim conscientemente, e porque detesto esse joguinho para os lados que se pratica no meu país. E agora me diga uma coisa: estou errado? Aqui, metade do país odeia o Boca, odeia a mim, porque apesar do futebol feio continuamos vencendo. Pouco me interessa o que pensam. Afinal, não tenho Pelé, Puskás, Di Stéfano para sair jogando no toque. Tenho japoneses, como todos os times. A diferença é que eu e meus jogadores estamos conscientes”.
Sobre as duas partidas iniciais, a Placar publicou até uma discussão interna do Cruzeiro contra a tática defeituosa do seu treinador Yustrich; relatou-se como os mineiros atuaram perdidos na Bombonera e que no Mineirão dependeram de uma providencial falta de Nelinho – enquanto mesmos os jogadores ofensivos argentinos “estavam bem orientados” para reforçar a marcação (apenas o já veterano Mastrángelo não recuava, observou-se), embora o Boca houvesse atuado mais ofensivamente do que o estereótipo. E mais discursos de Lorenzo: “orientar um time é como jogar na Bolsa. É preciso estar atento e ser inteligente para saber o momento de comprar ou vender ações. Houve momentos em que eu mandava meu time marcar por pressão e amassar o Cruzeiro. Em outros, mandava recuar. Por quê? Porque sou um cara inteligente. É preciso ter jogadores, homens decididos. E isso, o Boca tem mais”.
Já a nota pós-finalíssima em Montevidéu tinha declarações de Yustrich e Zé Carlos reconhecendo que o vice foi justo. Além de Nelinho (no Uruguai, ele lesionara-se aos 15 minutos do segundo tempo, levando Toto a declarar à Placar que “quando eles perderam Nelinho, tive a certeza de que não tomaríamos mais gol”, em alusão a uma atuação novamente pobre e inesperadamente retrancada dos brasileiros) no Mineirão, somente em outros dois lances o Boca levou gol em toda aquela Libertadores antes daquela decisão por pênaltis. Mérito creditado ao Lorenzo, cuja superstição também entrara em campo: foi ideia dele uma nova camisa reserva depois que a amarela saiu derrotada em Belo Horizonte; no Uruguai, os argentinos usaram uma branca.
Mas havia olho clínico também – Lorenzo ordenou categoricamente, com direito a letras garrafais em um bilhete com ares de relíquia, que todos os cobradores desferissem chutes rasteiros ao notar que assim teriam mais chances contra o goleirão Raul, observado como o principal responsável para a Raposa ter resistido tanto. Ao fim, um emocionado Lorenzo declarava à El Gráfico que já pensava em parar com o futebol, mas não podia se aposentar antes de vencer La Copa. Tanta ressaca fez o campeão não avançar de fase no duríssimo Torneio Nacional, onde somente o líder das chaves ia aos mata-matas. Por sua vez, o Mundial Interclubes estava indefinido com a recusa do Liverpool. Além do famoso histórico polêmico de Lorenzo contra britânicos, os ingleses usaram desde a desculpa esfarrapada da falta de calendário à hipocrisia política: os colonialistas estavam orientados a não prestigiar um país ditatorial…
Foi preciso se contentar em pegar o vice europeu, o Borussia Mönchengladbach, e já em 1978 – ano em que o grande reforço foi o arisco e temperamental ponta Carlos Salinas, mais um ex-River que sempre torcera pelo Boca a chegar ao barco. El Loco Salinas estava saudoso em 2016 sobre o mestre: “era um técnico muito motivador. Tinha o apoio do povo, do presidente, do plantel… e te fazia entender que o Boca era Sportivo Ganhar Sempre. Tão logo cheguei, me dei conta de que tinha que chegar nos pés, morder a orelha do rival, tinha que ganhar, ganhar e ganhar. Vivíamos concentrados em La Candela, porque jogávamos a cada três dias. Quando vinham as esposas nos visitar, ele as corria dali dizendo-lhes: ‘senhoras, quando eles deixarem o futebol já vão ter tempo para tudo'”.
O ano de 1978 teve um primeiro semestre pouco digno, marcado pela perda da Copa Interamericana (antigo tira-teima entre vencedores da Libertadores e da Concacaf) para o América, o empate em 2-2 em plena Bombonera no primeiro duelo com os alemães do Gladbach e a ausência de qualquer jogador do Boca na seleção que venceria a Copa do Mundo ao fim de junho. Mas esse torneio renderia frutos indiretos: aproveitando a pausa do Metropolitano em prol do evento, Lorenzo levou toda a delegação a Córdoba, cidade utilizada pela concentração da seleção alemã-ocidental, a fim de espionar abertamente o estilo de jogo adversário e imaginar os antídotos (enquanto antecipava à Placar que Kempes, decepção na primeira fase, seria o craque da Copa). E não só: tratou de enviar emissários à própria Alemanha com semanas de antecedência ao jogo da volta para ter um relatório completo do Borussia, ciente de que o adversário não se daria aos mesmos trabalhos.
Por três meses, discutia cada sexta-feira no restaurante La Cabaña com os mais experientes a ideia de jogo. El Loco Salinas, naquela mesma nota de 2016, deu mais detalhes: “Lorenzo mandou antes um cara de sua confiança que falava alemão, para que visse como era o campo de jogo e todas essas coisas. Era um gramado muito rápido, como são todos agora, então preferiu pôr uma equipe mais leve e deixou de fora alguns titulares”. Com os relatórios em mãos, o treinador se permitiu abrir mão de sua famosa retranca (“no futebol se ataca e se contra-ataca. Havia vezes que me deixava atacar, porque os defensores rivais eram lentos para voltar. Provocava o espaço e os pegava no contrapé. É uma forma de jogo como qualquer outra”, minimizava em 1995). E seu Boca surrou por 3-0, dentro da Europa.
Nenhum time sul-americano foi campeão mundial com tamanha goleada jogando no país adversário. Resultado todo construído antes dos 40 minutos de jogo, em placar aberto logo no segundo minuto (por Darío Felman, criticadíssimo por atuação apagada no jogo prévio, contra o modesto Estudiantes de Buenos Aires, mas visto como de características velozes essenciais contra o Gladbach e então bancado por Lorenzo) e completado precisamente por Mastrángelo e o próprio Salinas; agora era a vez do Boca ser campeão do mundo sem jogadores da seleção – com Lorenzo fazendo questão que o plantel fizesse um corredor de aplausos aos quatro reservas que não saíram do banco. Na sequência do segundo semestre, o título do Metro acabaria perdido para a surpresa Quilmes após uma ultrapassagem na penúltima rodada, dado o foco paralelo do Boca no seu bicampeonato seguido na Libertadores.
No bi em La Copa, o Boca pôde começar o torneio já no triangular-semifinal. Outra vez, deixou o River no caminho, além do Atlético Mineiro. Mastrángelo relembraria em 2013 a sagacidade do treinador contra o Galo: “esteve 20 anos adiantado do resto. Te dizia o que te ia acontecer na partida, porque contava com toda a informação. E depois acontecia isso. Te antecipava como os gols iam vir. Ninguém havia podido ganha-lo no Brasil. Agarrou El Colorado [José María] Suárez: ‘és o melhor camisa 3 do que o Boca tem, mas amanhã não vais jogar, vou pôr [Miguel] Bordón, porque vai fazer um gol de tiro livre e com esse gol vamos ganhar’, cantou. Como terminou? Ganhamos de 2-1 com dois gols de Bordón! Os dois de tiro livre!”. Já contra o arquirrival, o 0-0 na Bombonera foi compensando com um 2-0 em pleno Monumental no jogo que definia o finalista. Com novos gols, aliás, de Mastrángelo e Salinas, executando ambos a “lei do ex”.
Houve rumores de bate-bocas internos entre jogadores e comissão técnica na semana prévia à decisão. Mas o que se viu foi Boca 4-0 Deportivo Cali, dos argentinos Néstor Scotta (o ex-gremista foi o artilheiro do torneio, tal como em 1977) e Carlos Bilardo, o futuro técnico da seleção de 1986. No duelo de duas raposas das mais malandras, Bilardo, ou talvez o próprio cartel local, ainda estava mesmo mais verde que El Toto, pelo que se depreende do depoimento do lateral Roberto Mouzo – até hoje o recordista de jogos no Boca. Em 2009, Mouzo deu os pormenores extracampo do embate: “Lorenzo tirava as lâmpadas dos vestiários, punha vaselina no piso para que escorregassem, atirava sal. Mas nos faziam muitas coisas também. Na final contra o Cali de Bilardo, perfuraram a roda do ônibus e nos levaram oito mulheres ao hotel. As minas não eram buenas, eram buenísimas! E vínhamos de estar um mês concentrados, imagine! Em cada bangalô havia uma mina. Saíam e te chamavam as filhas da p…, mas El Loco estava em todos os detalhes, já sabia. Também levou toda a bebida desde a Argentina e nos disse que qualquer coisa que tomássemos, que nos abrissem a garrafa na mesa, diante do nosso olhar, porque se inteirou de que uns jogadores que haviam jogado umas semanas antes haviam tido uma tremenda caganeira”.
Claro, Lorenzo tratou de controlar os hormônios carentes dos comandados, política que já era mesmo corriqueira em qualquer concentração que planejava: “em uma relação sexual, há desgaste físico e nervoso e se pode produzir uma distensão ou algo fora do normal”, explicaria já em 2000, à edição especial dedicada à reconquista do Boca na Libertadores, ocasião em que também aproveitou para refutar acusações de que muito do seu sucesso se deveria a alguma orientação interna por doping – versão que, segundo ele já dizia em 1995, ele próprio alimentara ironicamente, com o intuito de camuflar aos rivais os reais pilares de tanto êxito… ressaltando ainda que vinha processando quem o acusava da infração (mencionou expressamente desafetos de longa data feitos Rattín e Artime):
“Em 1976, eu vim ao Boca com a obrigação de sair campeão. Lembro que em 1975 foi sancionado Juan Taverna, jogador do Banfield, não sei se por consumo de droga ou o quê. Os que dizem que naquela época não havia controle antidoping se equivocam. Tínhamos o antidoping. E mais, eu tinha uma pessoa que se encarregava de controlar a água mineral no vestiário. Todos se perguntavam: como pode ser que estes velhos corram? O que não se dizia era que treinavam três vezes por dia. Esta era a grande diferença entre minha equipe do Boca e os contrários. O que acontece é que eu não tornava isso público. Quando cheguei ao Boca, organizei o seguinte esquema: às segundas-feiras, almoçava com [o presidente] Armando para falar de como havia sido a partida do domingo. Então, depois, ele levava a impressão à comissão diretora. Às terças e às quartas, os jogadores, Armando e eu almoçávamos todos juntos em um restaurante na rua Entre Ríos. Os jogadores que tinham um problema o falavam entre nós. Conhecíamos todos os detalhes da equipe”.
Pancho Sá, ele próprio pego em 1980 no antidoping, também descartou já em fevereiro de 2022 ao La Nación que isso fosse uma política de Lorenzo (inclusive, aproveitou para detalhar a própria inocência no incidente de 1980, culpando desatenção da comissão técnica na preparação de uma aspirina): “tudo mito. Você acredita que podíamos ser campeões sem ter uma boa equipe? Nós passávamos por cima dos rivais porque fazíamos turno triplo na pré-temporada. E porque tínhamos um treinador muito inteligente e capaz. Eu não me lesionei quase nunca em 60 partidas da Copa Libertadores, só me distendi uma vez, não faltei quase nunca, isso fala da saúde que tínhamos e dos treinamentos. Não nos ganhavam não porque estávamos drogados, não nos ganhavam porque não podiam”.
Em 1978, porém, novamente o campeão do continente não teve gás e/ou interesse para ir às fases decisivas do Nacional. Novamente também, o Liverpool arregou de um Mundial – agora, sem que o vice europeu se dispusesse também. Em 1979, repetiu-se o desleixo aberto nas competições domésticas, em prol da Libertadores. O que vinha incluindo nada menos que quatro Superclásicos seguidos sem vitórias, enquanto o arquirrival faturava tanto o Metropolitano como o Nacional. Mas a classificação à terceira final seguida de Libertadores veio, e com epopeia: com gol no último minuto de duelo direto com aquele copeiríssimo Independiente dos anos 70.
Por outro lado, desde fevereiro de 1979 o treinador já antecipava sentir um fim de ciclo, ao menos em nova nota à Placar.
O Lorenzo digno no fim da carreira
Em paralelo à nova campanha finalista na Libertadores, Lorenzo também trabalhou naquele 1979 no Tigre, como gerente em tempos bastante modestos dos rubroazuis. Chegou mesmo a preparar a pré-temporada em Necoechea, a contratar o treinador efetivo (Antonio Villamor) e indicar de jogadores a um médico; o clube reconhece assim sua participação no acesso à primeira divisão ao fim do ano, possibilitando uma das duas únicas temporadas tigrenses na elite entre 1955 e 2007 (a outra foi em 1968). Mas o próprio Toto não se gabava disso, pela sua ausência no dia-a-dia da equipe de Victoria ao longo do ano e pela própria inviabilidade econômica para a chegada de muitos dos reforços sugeridos, dando os créditos pelo acesso ao próprio Villamor.
Quanto à final continental, os argentinos acabaram surpreendidos pelo Olimpia, até então virgem de Libertadores: levaram de 2-0 em Assunção e a volta na Bombonera viu um jogo truncado e cheio de expulsões. Lorenzo estava “exausto”, nas palavras do livro do centenário boquense. Já não havia o que oferecer e ele deixou a Casa Amarilla ao fim do ano. Explicou em 1995: “eu disse a Alberto J. Armando que era preciso fazer uma renovação e que eu não ia passar por cima dos cadáveres dos jogadores que tantas satisfações me haviam dado. Por isso, fui ao Racing”. A Placar chegou mesmo a registrar que “muitos boquenses” já estavam querendo “que o Boca volte a seu futebol livre, ousado, sem a marca defensiva que o caracterizou nos últimos três anos e meio”.
No Racing, Lorenzo recebeu outro gigante sob considerável hiato de títulos, tal como o River de 1967, exatamente o ano dos últimos troféus do time de Avellaneda. O começo foi promissor: faturou no Uruguai um torneio amistoso batendo a própria dupla Nacional e Peñarol, ainda fortíssima no cenário internacional. Mas, tal como no River, Lorenzo terminou sendo um entre tantos técnicos vencedores moídos em meio à seca. Agravada pela desorganização que tanto caracterizou a Academia em meio ao marcante jejum que entre 1966 e 2001 assolou na primeira divisão argentina os racinguistas.
Esperava-se mais do maestro porque a temporada anterior, com Omar Sívori de treinador, havia sido razoável: a um ponto da classificação no Metropolitano, eliminado nas quartas-de-final do Nacional. Mas El Toto não foi além de um 10º lugar no Metropolitano, deixando o Cilindro na altura da 35ª das 38 rodadas do torneio. O resultado mais lembrado foi simbólico por razões negativas: vencia por 4-1 o Ferro Carril Oeste… e tomou virada para 5-4. O treinador tampouco vingou no clube seguinte, durando somente oito partidas no México com o Atlante, ainda em 1980. Ainda assim, houve quem pedisse por ele na seleção após a Argentina, sob estilo diametralmente oposto de César Menotti, decepcionar no Mundialito do Uruguai. E Lorenzo, claro, seguia com imagem messiânica no San Lorenzo.
Ele então foi repatriado em meados de 1981 pelo bairro de Boedo. Ou melhor, por um time desalojado dali havia já dois anos. Nas palavras do Diccionario Azulgrana, “o quarto período de San Lorenzo o encontrou dentro de um contexto supercomplicado, a centímetros do abismo, com o fedor do rebaixamento se espalhando nas ruas de Boedo. Viu-se lógica que um técnico de sua experiência tomasse as rédeas de uma formação que andava sem rumo, mas pouco pôde fazer para deter a hecatombe”. Ele reassumiu os azulgranas já na 27ª rodada e, a bem da verdade, conseguiu melhorar bem a trajetória – a ponto de o Ciclón chegar à rodada final podendo escapar se empatasse o duelo direto com um Argentinos Jrs órfão de Maradona, recém-emprestado pelos colorados ao Boca.
O Sanloré até já estaria livre da degola caso o adversário não se beneficiasse de pontos no tapetão diante de um doping adversário em compromisso prévio com o Talleres. Mas os cuervos falharam clamorosamente na hora da verdade: desperdiçaram um pênalti e cometeram outro, que bastou para o Bicho vencer e ultrapassa-los. Ironicamente, o gol que selou a primeira queda de um gigante na Argentina foi de autoria de Carlos Salinas, a quem o Toto levara ao Boca em 1978 – o ponta estava no Argentinos como um emprestados em um pacotão que os auriazuis cederam aos colorados em troca de Maradona. Nem a superstição funcionou: a camisa do primeiro tempo, em que se perdeu o pênalti e se sofreu o gol, foi trocada pela reserva branca para o segundo, mas o placar de 1-0 para o Argentinos não foi alterado.
O Diccionario foi elogioso ao treinador: “em uma atitude louvável e sem se envergonhar por dirigir na série B, decidiu estender seu vínculo e continuou treinando o Ciclón durante a primeira parte do torneio, até que foi ao Vélez e deixou o cargo a José Yudica“; na época, não havia ainda a rivalidade entre os dois clubes, fomentada a partir dos anos 90, com a meteórica ascensão velezana. Naquele 1982, chegou mesmo a ser assim descrito na El Gráfico pelo longevo redator Osvaldo Ardizzone: “ator, showman brilhante, desonesto, simulador, demagogo, zombeteiro, ambicioso, depreciativo, aforista engenhoso, hábil”.
Lorenzo trabalhou até a 18ª rodada da Primera B de 1982, o suficiente para ser testemunha de boa parte dos episódios mais famosos daquela redenção sanlorencista, como o fim de semana em que o fanatismo azulgrana encheu mais o estádio alugado pelo clube do que qualquer jogo paralelo da primeira divisão – isso se deu na 4ª rodada, contra o Tigre. E começou a deixar em proeminência Julio Santella, que viria a ser um dos preparadores físicos mais renomados do futebol argentino: Santella seria prontamente levado por Lorenzo ao Vélez. O trabalho da dupla foi digno por lá, especialmente em um contexto mais humilde do Fortín, ainda detentor de um único título argentino; a equipe do bairro de Liniers terminou em 5º no Metropolitano 1982 e avançou aos mata-matas do Nacional 1983, eliminada pelo futuro campeão Estudiantes.
Em 1988, o ascendente goleirão Carlos Navarro Montoya ainda agradecia Lorenzo por ter sido promovido ainda com 16 anos de idade ao banco de reservas do time adulto daquele Vélez. Outro comandado? O ainda atacante Carlos Bianchi, a quem Lorenzo já em 1995 teorizava ter influenciado como treinador o estilo regulamentar, pragmático e vencedor de Carlitos… que, como treinador, logo adotaria Santella junto: no Vélez dos anos 90, na Roma da temporada 1996-97, no Boca dos anos 2000 e por fim no Atlético de Madrid de 2005-06.
O Toto seguiu em La V Azulada até a 4ª rodada do Metropolitano 1983, trocando Liniers por Villa Crespo: o ex-jogador do Chacarita virava a casaca no clássico para assumir o Atlanta – levando Santella consigo pela última vez. Tornou-se venerado no Bohemio por, em dois meses de trabalho, fazê-lo campeão da segundona. Foi a última vez que o clube judaico de Buenos Aires pôde participar da elite.
Era o bastante para Lorenzo atrair novamente a Lazio.
Ocaso: o último Lorenzo do San Lorenzo e do Boca (e da Lazio)
Em suas férias em Miami, o treinador acabou sondado pelos velhos conhecidos do clube romano, como informado pela Calciopédia, a detalhar que sua última passagem celeste foi mais marcada por folclore de superstições e antijogo do que por futebol efetivo. E concluir sobre seu ciclo por lá que “somou 198 partidas no comando do time laziale, sendo 184 pela Serie A – um recorde que perdurou até ser batido por Simone Inzaghi, em 2021. No total, o argentino é o terceiro técnico com mais jogos pela agremiação, atrás apenas do supracitado, com 251, e de Dino Zoff, com 202″.
Em seu último retorno à Cidade Eterna, o argentino durou até a 20ª rodada da temporada 1984-85, após levar de 4-0 do Napoli, exatamente na única vez em que Maradona conseguiu um hat trick na Serie A. Em 1995, com o astro já veterano, Lorenzo ainda se rendia, aconselhando ao treinador de Dieguito no Boca que “tem que negociar com Maradona. Deve se dar bem com ele sim ou sim. Com outros jogadores eu não faria isso, mas com Diego se está obrigado. Maradona tem razão sempre, ainda que se equivoque”.
Seus trabalhos seguintes também foram basicamente na qualidade de filho pródigo: primeiramente, em apenas três partidas, sem vitórias, no San Lorenzo nas rodadas inicias do campeonato argentino de 1985-86. O Diccionario Azulgrana preferiu relativizar, descrevendo a passagem como “sem muita sorte” ao invés de escancarar algum declínio. O técnico ainda teve uma estadia no Santa Fe colombiano antes do ato final: ser bombeiro no Boca ainda no início da temporada 1987-88. Voltemos às palavras da enciclopédia do centenário xeneize: “tentou colocar de volta aos trilhos um Boca sem direção em 1987, mas apesar de suas falhas não pôde perder o amor e devoção dos torcedores”.
O cenário de sua chegada era este: o time não era campeão desde o maradoniano (e perdulário) Metropolitano 1981 e estivera muito perto da extinção em 1984. Parecia renascer no biênio 1986-87, quando brigou pelo título argentino até a penúltima rodada, em grande reação técnica após a chegada da lenda César Menotti como treinador no decorrer da temporada. Mas Menotti logo acertou com o Atlético de Madrid e seu ex-auxiliar, Roberto Saporiti (também credenciado por ter treinado em 1984 o primeiro título do Argentinos Jrs), foi um fiasco: três derrotas em quatro rodadas, 6-0 para o Racing entre elas. Lorenzo voltou pedido pela torcida, exaltando que “dois anos no Boca são como passar toda uma vida em qualquer outro clube”. Reestreou ganhando, em um 2-0 sobre o Racing de Córdoba, o que rendeu a capa abaixo da revista El Gráfico. Mas perdera mesmo o toque de Midas: as seis rodadas seguintes foram de quatro derrotas seguidas e dois empates, colocando o time chegou na lanterna e com a defesa mais vazada.
O mito só durou de outubro a dezembro, entregando o cargo a José Omar Pastoriza, treinador campeão de tudo com o Independiente entre 1983 e 1984. Simbolicamente, naquele curto regresso Toto chegou a perder um Superclásico em que abrira 2-0 dentro do Monumental, para então sofrer a virada (nunca vista antes ou depois na rivalidade para quem começou ganhando de 2-0) e… perder a chance do empate após um pênalti desperdiçado no último minuto. Jorge Rinaldi, que já havia sido treinado por ele naquele San Lorenzo rebaixado, fora o frustrado autor dos dois gols inúteis naquela tarde. Em 2017, o mesmo Rinaldi frisou que terminou tendo uma relação carinhosa com Toto, mas não fugiu de opinar sobre aquele ocaso: “com todo o respeito pela família, creio que era tão mal que me fazia rir”.
“Havia sido tão grande sua etapa anterior que as pessoas o perdoaram”, pontuava-se em 2003 sobre a saída pelos fundos da Casa Amarilla que o treinador acabou sofrendo. As pessoas sim perdoaram, os cartolas da época, não – o então presidente Antonio Alegre chegara a ponto de proibir-lhe no clube após um processo movido por Lorenzo. Que explicou-se assim em 1995: “não me entregaram o líder do campeonato, e sim um grupo que atravessava uma grande crise. Estive dois meses e me expulsaram. Foi o único técnico a quem, tendo ganho tudo no Boca, não deram o crédito de poder fazer uma boa pré-temporada no verão. Por tudo isso lhes processei e não me arrependo”.
Com o tempo, mesmo os canais oficiais do Boca não ousaram manter a heresia. Há um perfil dedicado a Lorenzo na enciclopédia oficial do centenário boquense, em 2005. Que, ao abordar exatamente aquela saída complicada, destacava que àquela altura “ele não tinha conquistado só o respeito de quem treinou: até seus maiores críticos reconheceram sua grandeza”. Definição similar consta no livro Quién es Quién en la Selección Argentina: “verborrágico e carismático treinador, (…) logo importou à Argentina seus métodos táticos, que foram sempre controvertidos, discutidos e – ao logo do tempo – aceitos. (…) Foi um personagem do futebol, irônico, propenso a poses histriônicas, malandro (…), querido e odiado em doses similares, enquanto esteve em atividade; respeitado e reconhecido ao deixa-la”.
Lorenzo depois da carreira
Visto como alguém “vinte anos adiantado no tempo” segundo o pupilo Heber Mastrángelo, Lorenzo justificou o elogio também no rumo que tomou ao deixar o futebol: já em 1987, enquanto assumia não ter mais condições mentais de treinar algum clube, relatava trabalhar como diretor em uma empresa de informática, a Nordata (aberta pelo filho Carlos Alberto): “o mais importante é saber que todos os meus anos de futebol, tudo o que trabalhei, serviu para isto – para que meus filhos tenham estudado e tenham uma posição fora do futebol”. Claro, Lorenzo nunca se afastou totalmente.
Um ano antes de falecer, um Lorenzo quase octogenário ainda possuía evidência e lucidez para comentar temporadas prestigiadas de ex-clubes seus no ano 2000, assinando coluna de opinião na El Gráfico em nota alusiva ao segundo e último título italiano da Lazio, em pleno centenário do time. Aproveitou para jurar que, após ter subido à primeira divisão com a equipe nos anos 60, teria recusado proposta de trabalho na Juventus (em 1995, já havia justificado isso por sentir-se confortável na capital e pouco atraído por uma Turim sob neve); e que teria avalizado a sondagem laziale ao chileno Marcelo Salas após consulta feita por um diretor celeste que fora seu jogador quarenta anos antes.
Quando em paralelo o Boca reconquistou a Libertadores – pela primeira vez desde a Era Lorenzo -, El Toto tornou a ser prontamente procurado pela revista El Gráfico, que o qualificou como “um dos primeiros a dar entidade à profissão de técnico”. Reagiu modestamente: “a única verdade no futebol tem quem joga. O jogador é sempre mais importante que o técnico”. Já na ocasião do título boquense no Mundial Interclubes naquele ano dourado, renovou a modéstia, dessa vez para afastar saudosismos. Foi ao ser indagado se o seu Boca seria ou não superior ao de Bianchi:
“Ganharia o de Bianchi porque o futebol evoluiu muito desde 1978 até agora. Os jogadores de hoje têm uma capacidade física superior. Melhoraram na resistência e podem sustentar uma dinâmica superior durante os 90 minutos. Também cresceram no manejo dos fundamentos táticos. Agora ninguém duvida: se há um escanteio para o contrário, recuam todos para cabecear e assumem responsabilidades defensivas que lhes orienta o treinador. Mas na minha época… vá fazer um atacante entender que devia recuar. Ainda não existia essa mentalidade de jogador integral, que cumpre um rol importante em qualquer setor do campo, para além de sua posição específica”.
Uma fibrose pulmonar, complicada por sua diabetes, o levou em 14 de novembro de 2001. Cerca de dois meses depois, seu amado San Lorenzo enfim foi pela primeira vez campeão continental, na Copa Mercosul. E o Clarín imaginou como a decisão contra o Flamengo teria sido acompanhada por Toto e outras lendas cuervas já desencarnadas. O Diccionario publicado dali a sete anos encerra assim o perfil do mestre: “histriônico, excêntrico, mas inevitável na história azulgrana“.
E inevitável como um todo na do futebol argentino, romano e espanhol.
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