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José Raúl Iglesias, ex-San Lorenzo, Huracán, Racing e Barcelona (B): o Martín Palermo dos anos 80

Um dos apelidos de Martín Palermo é “Otimista do Gol”, por não ser de desistir de oportunidades, o que rendeu alguns dos mais incríveis gols do futebol argentino mesmo não tendo técnica refinada. Mas pode-se dizer que El Titán foi sucessor de atacantes de estilo similar que também conseguiram ser ídolos, como Carlos Morete no RiverBeto Acosta no San Lorenzo e Luis Artime em diversos, assim como José Raúl Iglesias – por sinal apelidado de Artimito na infância. Hoje o Totigol faz 60 anos. O apelido não foi à toa: mesmo sem luxos e virtuosismo (confessava não saber driblar uma cadeira), tinha grande intuição, conhecimento de área, velocidade e boa definição, aproveitando fosse como fosse qualquer situação.

Toti Iglesias herdou nos juvenis do San Lorenzo o apelido de Carlos Toti Veglio, ídolo de San Lorenzo e Boca (fez gol no Cruzeiro na final da primeira Libertadores ganha pelos auriazuis, em 1977) nos anos 60 e 70 e de quem chegou a ser colega no Sanloré. Teve nas inferiores seu segundo pai, o técnico Carlos Román, após ter perdido aos 11 anos o primeiro. Estreou no time adulto em 18 de fevereiro de 1976, como centroavante titular em um 1-1 com o Argentinos Jrs no Gasómetro. O técnico Alberto Rendo usava-o como boa alternativa aos experientes Héctor Scotta ou Mario Rizzi, mas Iglesias perdeu seu pouco espaço no ano seguinte.

O treinador agora era Rogelio Domínguez (“não trabalhava nada. Se sentava a tomar café na plateia e olhava o treino”), que preferia Rodolfo Fischer, de volta após sucesso no Botafogo e no Vitória. Assim, Iglesias aceitou oferta do Barcelona. Em uma época de forte lei do passe, sem tanta disparidade econômica e na qual transferências à Europa mais atrapalhavam do que ajudavam sul-americanos em chegarem ou manterem-se na seleção, não era incomum reservas serem vendidos aos clubes europeus. Filho de um espanhol de Orense, o argentino não ocuparia vaga de estrangeiro e ficou no time B, ocasionalmente treinando com o principal de Cruijff e Neeskens (“eu não estava preparado. A segundona de lá era muito dura, e eu não era um cara forte, meti sete ou oito gols em um ano e meio”).

Seguiu por Recreativo de Huelva, subindo ainda que participando só da reta final, e Logroñés. Voltou à Argentina para passar por All Boys (fez no Boca o gol que evitou o rebaixamento em 1979) e conseguir 25 gols em 38 jogos para promover em 1980 o Sarmiento de Junín pela primeira vez à elite quando já pensava em desistir da carreira. Na primeira divisão, foi o quarto na artilharia, com um gol a menos que Maradona. Cavou transferência para o campeão nacional, o Rosario Central – hoje a cidade esportiva do Sarmiento leva o nome do artilheiro, comprado por 30 mil dólares e vendido ao Central um ano depois por 200 mil. No primeiro campeonato, deixou o seu em um 3-1 no clássico com o Newell’s. Em 1982, chegou a marcar quatro em um 9-1 no “ex-rival” Mariano Moreno de Junín.

O primeiro clube onde se destacou: artilheiro e campeão da segundona de 1980 pelo Sarmiento

Em 1983, o San Lorenzo voltava de um ano de segunda divisão, caindo ironicamente após concorrer com o Sarmiento. Conseguiu uma campanha brilhante no retorno à elite, quase emendando um raríssimo bicampeonato da Primera B com a Primera. Os cuervos perderam o título por um mísero ponto para o Independiente. Iglesias foi parte ativa do plantel do bairro de Boedo, sendo vice-artilheiro do elenco com 13 gols, após insistência do técnico Héctor Veira em contar com o Toti mesmo já tendo de antemão Armando Husillos, Jorge Rinaldi e Walter Perazzo. Assim, voltou à Espanha, dessa vez para o Valencia com pompa de quem tinha 99 gols na carreira. Mas o centésimo não saiu após um semestre em La Liga. Voltou em 1984 para uma última passagem pelo Sanloré, saindo para o Estudiantes em troca por Luis Malvárez. 

Ao todo, foram 20 gols (dois deles, no clássico com o Huracán) em 62 jogos pelo Ciclón. Após um ano em La Plata, voltava às redondezas do centro-sul de Buenos Aires, mas para defender o rival do clube que o formara: o Huracán vivia seríssimo risco de rebaixamento nos promedios da temporada 1985-86. E se houve esperanças de salvar-se, foi Toti quem proporcionou. Pois ao fim do primeiro turno, o Huracán parecia já condenado. Ganhou só duas vezes e perdeu oito. Iglesias estreou na metade da campanha, em um 3-0 no Racing de Córdoba em 19 de janeiro de 1986. O Globo deu um salto na metade final, com oito triunfos, cinco empates e cinco derrotas – uma delas, um eletrizante 4-3 contra o Boca. Iglesias fez oito gols em doze jogos, incluindo os três de um 3-0 fora de casa no Instituto de Córdoba e outro em 1-1 no clássico com o San Lorenzo na última rodada. 

O vice-campeão Newell’s marcou apenas dois gols a mais que a equipe do bairro de Parque de los Patricios, que na tabela normal ficou em 13º. Mas não foi o suficiente para evitar o penúltimo lugar na tabela de promedios. O rebaixamento não veio de imediato, e sim após um mata-mata em repescagem com times da segundona. O Huracán passou pelas quartas de final e pela semifinal, mas caiu dolorosamente nos pênaltis do jogo-desempate da decisão com o Sportivo Italiano (Iglesias marcou na segunda decisão, vitória por 2-1 que forçou aquele desempate, mas foi expulso ao xingar o árbitro por não ter apitado no penúltimo minuto da prorrogação um pênalti “grande como uma casa”), no que considera o dia mais triste da carreira. Detalhamos o drama aqui.

Totigol permaneceu por mais uma temporada como quemero. Viveu talvez a melhor fase da carreira. Após suspensão nos cinco primeiros jogos por aquele desrespeito ao árbitro, fez incríveis 36 gols em 37 jogos na segundona de 1986-87. Até hoje, essa artilharia não foi superada na segunda divisão. Ainda assim, o clube não subiu: ficou em quarto na temporada regular e caiu nas semifinais dos mata-matas para o Belgrano. Ficaram as recordações de um 9-2 fora de casa no Unión de San Juan e a presença em uma lista dos cem maiores ídolos huracanenses em enciclopédia preparada em 2008 pelo Clarín na ocasião do centenário do clube. Afinal, foram 47 gols em 60 jogos.

Destacou-se nos rivais San Lorenzo e Huracán, onde ficou mais querido apesar de resultados piores

Iglesias foi jogar em outro clube sofrido, o Racing. Chegou junto com outro futuro ídolo da Academia, o uruguaio Rubén Paz, para a temporada 1987-88. Foi anunciado como o “rei do gol” pela revista El Gráfico, que produziu o artilheiro com coroa, manto e cetro dignos de Freddie Mercury. O time treinado por Alfio Basile, técnico que o proibira de sair da área, foi terceiro no embalo das dezesseis cambalhotas de Iglesias, artilheiro do elenco e merecedor de um cântico próprio na plateia alviceleste de Avellaneda: “váyase preparando, vaya gritándolo, porque en cualquier momento aparece el Totigol“.

Dois desses gols vieram em um massacre de 6-0 no Boca. Toti jura que nessa época tornou-se o primeiro jogador a usar rabo de cavalo, ousadia autorizada por Basile após gols seguidos sobre River e Boca nos torneios amistosos de verão. Ao fim da temporada, o Racing foi campeão após 21 anos, na primeira edição da Supercopa Libertadores. Iglesias, porém, não ficou até o fim, deixando o seu só contra o Santos na primeira fase. Tinha 31 anos e aceitou receber cinco vezes mais no Junior de Barranquilla, indo fazer o pé de meia no forte narcofútbol colombiano. Ainda voltou a Avellaneda para a Libertadores 1989. Ao todo fez quase meio gol por jogo: 19 em 44 partidas.

Ainda fez seus golzinhos por Talleres (incluindo em clássico com o Instituto), Deportivo Español e Lanús antes de pendurar as chuteiras em 1991 após o rebaixamento com os grenás, para enfim completar as aulas que lhe faltavam para receber diploma de colegial – antiga promessa feita à mãe, que cuidara para que o filho pudesse focar só no futebol. Após ter de pizzaria a banca de revista, virou agente de jogadores após desistir de ser técnico: “é uma profissão altamente tóxica, tens tudo para perder e nada para ganhar. És o pai das derrotas; quando ganham, ganham os jogadores e quando perde, perde o técnico. Quando ganhas, na segunda-feira já é tarde porque tens que planejar a semana e quando perdes, a cabeça quente te dura a toda a semana”.

No mês passado, a revista El Gráfico publicou uma longa entrevista com ele, do qual tiramos as declarações acima. Eis outras entre as melhores:

“Nunca imaginei que teria um reconhecimento tão importante como o que notei após ter parado, considerando que não fui um grande jogador de futebol”.

Produzido como o “Rei do Gol” na chegada ao Racing e um dos gols nos 6-0 sobre o Boca

“Quando tens um mano-a-mano entrando desde o lado, há dois pontos nos quais o goleiro está entregue: primeiro pau acima e segundo pau abaixo. Se paras em frente ao gol, vês claramente esses dois buracos. E quando entrava de frente, apontava a bissetriz que formam as traves e o goleiro, geralmente chutava a um metro de cada perna e era gol certo. Isso se pratica e se mecaniza. Eu errava muitíssimo (nos juvenis) na frente do goleiro, mas entendi que não precisava de força e sim de astúcia, e passei a ser muito frio”.

“Não podes chutar desde a bandeirinha de escanteio, isso seria um mal egoísta. Eu dizia a meus companheiros: ‘muchachos, dentro da área deixem comigo, que algo disso eu sei. Em qualquer caso, vão buscar o rebote’. Isso é ser um bom egoísta (…). (Não pode faltar) Estado de ânimo, a confiança, a crença de que sempre a bola vai chegar a você e vais marcar um gol. No dia em que perdes a confiança, não farás gol nem com o arco vazio”.

“Cruijff arrebentava. Também o via nos jogos, ia sempre ao Camp Nou. O vi fazer coisas incríveis. Era uma gazela: passava de 0 a 100 e de 100 a 0 em um segundo, e os defensores seguiam a trajetória como loucos. Lembro que no bolso de sua camisa Cruijff tinha uma maço de Ducados, os famosos cigarros negros. Cruijff falava e fumava um atrás do outro, creio que em 15 minutos que estive ali fumou cinco”.

“(A segundona era) terrível. Eu joguei pelo Sarmiento e pelo Huracán e nas duas vezes foi artilheiro do campeonato, mas esses anos foram viver o inferno. De visitante, valia tudo. Sabes o que era ir a Corrientes, Chaco ou Santiago del Estero? E o que fizeram as pessoas do Chicago… com o Sarmiento éramos primeiros e o Chicago era o segundo. Em vez de entrar como sempre, mandaram o ônibus à outra esquina, a cem metros do vestiário, por ordem da polícia, supostamente. Descemos caminhando, os 22 juntinhos, jogadores e corpo técnico, e logo apareceram 300 torcedores do Chicago: armaram um corredorzinho, nos cuspiam, davam chutes, nos diziam ‘se ganham aqui matamos todos’, só haviam dois policiais. Todos com a cabeça baixa até que meteram um soco em Luciano Polo, zagueiro nosso, e aí tivemos que sair correndo ao vestiário. No vestiário haviam enchido o chão de vaselina para não poder fazer o aquecimento e tivemos que entrar frios. Nos cortaram a água. O juiz era Juan Bava… dois pênaltis para o Chicago, perdemos de 2-0. Depois ganhamos tudo e fomos campeões”.

No Lanús, último clube da carreira, e recentemente

“Os dirigentes do Sarmiento nem sabiam quem eu era. Eu treinava nos bosques de Palermo com ex-colegas do San Lorenzo, não tinha clube. O Sarmiento armou uma equipe com veteranos: León Espósito, El Hueso Glaría e El Lobo Fischer, que me conheciam dos meus inícios no San Lorenzo. Disseram ao presidente: ‘leve este garoto que anda bem'”.

“Me xingaram muito os torcedores do San Lorenzo, mandavam cartas a minha casa, mas o que a gente não entende é que alguém trabalha disso. Eu estava no Estudiantes e tinha um problema: todos os dias tinha que ir e voltar de La Plata de carro, quando ainda não havia autopista. Chegava em casa às 4 da tarde, não sabia se almoçava ou merendava, tinha uma confusão grande na minha cabeça, com minha mulher e meus filhos aqui, então pedi às pessoas do Estudiantes: ‘ao primeiro clube que venha, por favor, vendam-me’. O primeiro foi o Huracán, que estava comprometido com o rebaixamento e nem duvidei. Só queria sair dessa cagada. Para mim, não (foi traição). É o mesmo quando um jogador diz que não gritaria gol a seu ex-clube, mas então não faltas com o respeito ao que está te pagando? Tomei como trabalho, eu me brindava e deixava a vida pela camisa que tinha”.

“No Racing quebravam o carro dos jogadores, meus amigos diziam que estava louco, mas eu tinha boas sensações, vinha com auto-estima altíssima. Era um parada brava para meus 29 anos. As pessoas se abriram comigo, e em dois ou três jogos me fizeram esse famoso cântico, não creio que haja muitos jogadores do Racing com cântico próprio. (Nos 6-0 no Boca) meti dois gols e errei três ou quatro embaixo do gol, nunca joguei uma partida tão fácil, era para ser 12-2”.

“O gol para mim é a vida, o mais lindo, o que sonhei desde que tinha cinco anos. Havia uma brincadeira na última página da revista do Clarín que me ficou muito marcada e por isso a recortei. É a representação da vida. Havia um goleador que acaba de meter um gol, estava com os braços levantados, a tribuna vinha em cima, e dizia: ‘por favor, Deus, pare o tempo, não quero que avance nunca mais’. Cada vez  que metia um gol me lembrava disso. Esse momento de ver 10 mil cabeças que te vêm em cima por uma obra tua é impagável”.

“Duas vezes me assaltaram. Realmente me assustei e declarei que ia embora do país, mas a verdade é que não pude ir, porque aqui vivem meus filhos e meus netos. Sintetizo assim: ‘a Argentina é um país para sentir saudade, não para viver’. Quando estás fora, sentes falta; e quando estás aqui, é insuportável. As pessoas vivem estressadas, ligas a televisão de manhã e dizes: ‘vamos ver que cagada tem hoje'”.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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