Maradona tem uma relação dúbia com César Menotti, o técnico da Argentina de 1978 – e que o cortou daquela glória, portanto. Dieguito venera El Flaco (comandante seu no ciclo até 1982 e depois no Barcelona) ainda assim, embora nunca esconda que jamais perdoou-o totalmente por aquele baque. Quem parece ter sido perdoado foi um dos homens que “roubaram” a vaga de El Diez: mesmo no calor da emoção, ele reconheceu que José Daniel Valencia vivia melhor momento e merecia mais. Viraria até padrinho de uma das filhas de El Rana, o jogador do Talleres mais vezes usado pela Argentina, e vestiu a própria camisa tallarin no jogo de despedida do parceiro. Que merece ser relembrado especialmente hoje, ao fazer 65 anos.
A fisionomia facial rendeu-lhe o apelido de El Rana (“A Rã”) ainda em sua cidade natal de Jujuy, no extremo norte argentino. Valencia praticamente se criou em um campo de futebol: seu pai, Carlos, era o zelador do estádio municipal. O meia desempenhava-se em times de bairro e pelo de sua escola, o Colegio El Salvador (conseguindo atuar em jogos contra garotos mais velhos), até ser descoberto pelo Gimnasia y Esgrima de Jujuy. A mãe Blanca se opunha, mas o próprio padre que educava Valencia no colégio, um certo Marcelo Gottig, recomendou-a que “deixe-o amadurecer”. O garoto praticamente não fez juvenis; teria disputado um único jogo pela categoria de base e de pronto já integrava a equipe principal do Lobo del Norte, ainda com 18 anos incompletos, em 1973.
Na época, havia uma separação oficializada entre os times da Grande Buenos Aires, La Plata, Rosario e Santa Fe com os do restante do país: apesar do nome, o campeonato argentino era restrito da primeira à última divisão aos clubes desses principais polos. A partir de 1967, ele foi então renomeado apropriadamente do Torneio Metropolitano, criando-se para a pós-temporada do Metropolitano o chamado Torneio Nacional, a reunir os melhores do Metro (quando não todos) com os clubes sobreviventes de uma seletiva do interior adentro; algumas ligas interioranas melhor avaliadas qualificavam diretamente o seu campeão.
O Alto Hornos Zapla foi o clube que dominou a Liga Jujueña no início da carreira de Valencia, sendo tricampeão local entre 1972 e 1974 e classificando-se assim diretamente ao Nacional. Mas o vice-campeão conseguia uma sobrevida para disputar aquela seletiva. E o Gimnasia saboreou o título simbólico do Torneio do Interior de 1973, com uma só derrota em campanha onde deixou para trás o Vélez de Catamarca, o Atlético Riojano (goleado mesmo em La Rioja por 6-0), o San Martín de Tucumán e por fim a Juventud Antoniana de Salta. Se a estadia no Torneio Nacional de 1973 pareceu sem glória, na vice-lanterna do Grupo B e com Valencia marcando somente um gol, a promessa chamou a atenção com seus dribles contra Talleres, Independiente e o recém-campeão Huracán, então treinado por César Menotti.
Para 1974, até o campeão jujueño precisou jogar o Torneio do Interior. A única vaga local acabou sendo do dominante Alto Hornos. Se não haviam jogos do Torneio Nacional no horizonte, Valencia conseguiu uma outra vitrine: um golaço em um recordado 4-4 contra o Independiente por um quadrangular amistoso em Jujuy. Recebeu um cruzamento de René Alderete e, sem tocar na bola, driblou apenas com o corpo o marcador Alejandro Semenewicz e depois o goleirão Miguel Santoro antes de tocar mansinho para as redes de um time que levantaria naquele ano a terceira Libertadores seguida. Em paralelo, Menotti assumia a seleção no pós-Copa em 1974. Crescido em Rosario, El Flaco soube valorizar a riqueza de talentos esquecida no interior argentino.
Menotti chamou mesmo o armador do Gimnasia de Jujuy para a seleção, convidada para um triangular amistoso com a seleção goiana e o bicampeão brasileiro Palmeiras nas cerimônias de inauguração do Serra Dourada. Junto com os colegas Alderete e José Palacios, Valencia estreou pela Albiceleste em 12 de março de 1975, contra Palmeiras. Os brasileiros venceram por 2-1, mas diversas histórias se faziam: aquele trio se tornava os primeiros e até hoje únicos jogadores a defenderem a Argentina vindos do Lobo del Norte. Todos os quatorze jogadores eram estreantes. E a escalação inteira só contemplava jogadores do interior.
Oscar Quiroga, Victorio Ocaño, Luis Galván (todos do Talleres), Pablo Cárdenas (Juventud Antoniana de Salta) e Rafael Pavón (Belgrano), Osvaldo Ardiles (Instituto), Miguel Ángel Oviedo (Racing de Córdoba) e Valencia, Víctor Arroyo (Atlético Tucumán), Palacios e Alderete foram os titulares. Ainda entraram Luis Ludueña (Talleres) no lugar de Oviedo; Ricardo Villa (Atlético Tucumán) no de Arroyo; e Juan Guzmán (San Martín de Mendoza) no de Palacios – em negrito, os anônimos que dali a três anos estariam na vitoriosa Copa do Mundo de 1978. Quatro dias depois, a “seleção do interior” venceu por 1-0 a seleção goiana.
Dois meses depois, Valencia foi comandado por Menotti na seleção juvenil que representou a Argentina na edição de 1975 do tradicional Torneio Esperanças de Toulon. El Rana sempre se referiria a Menotti como “o pai que não tive”, recordando já em 2008 que seu pai biológico “sofreu um derrame cerebral em pleno jogo. Eu tinha 13 anos e estava de espectador, houve um amontoamento, entrou uma maca a leva-lo e nós nem inteirados. Morreu seis meses depois, por isso quando ganhamos o Torneio de Toulon abracei o Flaco e chorei sobre ele. Foi a pessoa que me bancou quando tinha que me bancar e que me castigou quando fiz alguma travessura, e nesse momento simbolizou como ninguém a figura do meu pai”.
A declaração acima foi dada em meio aos 30 anos do título mundial da Copa de 1978. Na ocasião dos 25 anos, já havia dito palavras parecidas: “se ele não tivesse sido o técnico, jamais teríamos chegado os garotos do interior à Seleção. Ainda me emociono ao recordar a final que ganhamos em Toulon em 1975: entrei no vestiário e me larguei a chorar sobre seus ombros, era o sonho que meu pai não pôde ver, o do seu filho campeão”. Em paralelo, seu Gimnasia caminhava para enfim encerrar o domínio do Altos Hornos na liga jujueña. O Lobo seria mesmo o campeão municipal de 1975, mas sem que Valencia ficasse até o fim.
Em 19 de junho, a “seleção do interior” fez um amistoso contra o Talleres no estádio tallarin. Valencia abriu o placar de um empate em 1-1. Àquela altura, o talentoso meia já era sondado por Boca, Independiente e Huracán. Em 27 de junho, ele participou de uma vitória de 2-1 sobre a Bolívia na altitude de Cochabamba, no que foi sua estreia oficial pela seleção. Em meio a isso, quatro viagens dos cartolas do Talleres até Jujuy e o receio de que não se firmaria tão facilmente em algum gigante da capital federal fizeram El Rana preferir La T. Não tão facilmente: “me custou muito sair da minha cidade, deixar minha gente. Mas agora, com os resultados à vista, não me arrependo”, declararia já em 1978 em perfil à revista El Gráfico.
Os cofres alviazuis estavam recém-abastecidos com 250 milhões de pesos pelas vendas de Pablo Comelles e Héctor Ártico ao River, negociação que era um recorde nacional de cifras por dois jogadores. O montante seria torrado em Valencia e no colega gimnasista Alderete, contratados por 450 milhões, ainda que parcelados. Era 13 de julho quando o jornal Los Principios documentou que “se concretizou a operação futebolística do ano – Talleres comprou Valencia e Alderete por 450 milhões”. Outra parte do dinheiro foi colhido da renda de um novo amistoso entre o Talleres e a própria seleção em 30 de julho, marcando a estreia de El Rana pelo novo clube. O lendário presidente alviazul Amadeo Nucetelli recordaria que “a galera fez mais de três quarteirões de fila para conseguir as entradas que custavam 10 (mil), 20 (mil) e 50 mil pesos. O ingresso de então era de 1.500, assim se dá conta de como a torcida ajudou para essas compras”.
Embora a Argentina tenha vencido por 2-0, o meia voltou a suar pela Albiceleste dias depois, na Copa América desenrolada em agosto. A Copa América e depois a Copa Cidade do México, na segunda quinzena de agosto, retardaram a estreia oficial de Valencia pelo Talleres para 11 de setembro, já pela 16ª rodada do segundo turno da liga cordobesa de 1975, em 1-1 contra o General Paz Juniors. Quase rebaixada na própria liga cordobesa em 1973, La T dava a segunda marcha da fase mais brilhante de sua história: a equipe já havia se reerguido em 1974 com o título local (encerrando jejum de seis anos) e uma primeira grande campanha no Torneio Nacional (líder de seu grupo e 4º lugar geral), que fizeram seu treinador Ángel Labruna rumar ao River levando os citados Comelles e Ártico consigo.
Em 1975, o sucessor Adolfo Pedernera comandou o elenco bi cordobês e que voltou a liderar seu grupo no Torneio Nacional – terminando no 6º lugar geral. Em 1976, o Talleres começou o ano vencendo um torneio de verão no Zaire antes de caminhar para o tri cordobês e vencer dentro de Lima a própria seleção peruana em 27 de julho. Com isso, Valencia realizou cinco jogos oficiais pela Argentina (na última delas, “meteu duas canetas nos soviéticos nos primeiros 10 minutos de jogo”, destacou a El Gráfico sobre um 0-0) naquele ano mesmo antes de nova grande campanha tallarin no Torneio Nacional: pelo terceiro campeonato seguido, o clube foi líder do grupo e depois soube prevalecer nos mata-matas até as semifinais, quando caiu diante do River.
Foi naquele Torneio Nacional que Valencia e colegas se tornaram a primeira equipe enfrentada por Maradona, na estreia que Dieguito fez com 16 anos recém-completados pelo time adulto do Argentinos Jrs. Aquele torneio também teria no volante alviazul Luis Ludueña como artilheiro máximo, façanha que ele credita às muitas assistências fornecidas por Valencia, que nunca foi exatamente um goleador; somava até então só seis gols entre todos os Nacionais que disputara. Valencia, em contrapartida, felicitou no twitter um aniversário do amigo gozando das diversas vezes que já ouviu que ambos poderiam jogar no Barcelona atualmente: “saibam que fomos os caras mais felizes do mundo no Talleres, nossa casa. A resposta é que não, não iríamos”.
Em 2016, ele de fato recordou rechaços a propostas do Real Madrid e do Real Zaragoza quarenta anos antes, contentando-se seguir defendendo La T mesmo sem contrato – é o que ele afirma no vídeo que encerra essa matéria. Mas foi então que El Rana tornou-se inconstante e deslumbrado com o sucesso a ponto de Menotti deixa-lo de fora dos jogos da seleção por todo o ano de 1977. Aquele perfil da revista El Gráfico em 1978 analisava: “o carro, a noite, o cigarro, os óculos hippies, a música progressiva, o dinheiro, muito dinheiro e fama que uma cidade é capaz de presentear seu ídolo. Também um apartamento em Carlos Paz. Tudo isso aos 20 anos. Só 20 anos”.
O jogador confessava: “me aconteceram muitas coisas. Felizmente, me aconteceram aos 20 anos. Agora, aos 22, tenho a experiência de um homem de 30. Alguns dizem que amadureci como jogador… eu penso que amadureci como homem. Era um garoto mimado e me esqueci até do futebol, que era quem me havia me dado a fama. Coisas de garoto. Além disso, mandei um telegrama que não chegou, para me dispensar do serviço militar, por ser o único sustento de mãe viúva e terminei preso. Esse foi o ponto final da história. Aí voltei a ser o de antes. Voltei ao futebol. Voltei para demonstrar a um amigo como é Menotti que se ele havia tido razão em me apagar da seleção, eu por minhas condições estava disposto a voltar a ela”.
Valencia não jogou pela Argentina em 1977, mas reapareceu em dezembro na lista em que Menotti anunciou os 40 pré-convocados. Motivos não faltavam, afinal, e nem aquele perfil da El Gráfico teve à toa o título de “O primeiro violino da orquestra do Talleres”. Ao longo daquele ano, o clube bateu até a forte seleção polonesa (1-0 em 1º de junho) e também a boliviana (3-0 dentro de Santa Cruz de la Sierra duas semanas depois) antes de garantir o tetra cordobês. Em outubro, bateu por 4-3 o Olimpia e em novembro foi a vez de vencer o Santos por 2-1 – aquela El Gráfico inseriu aspas da lenda santista Clodoaldo segundo o qual “esse camisa 10 poderia ter jogado no Santos da melhor época. Aquele Santos de Pelé”. Por fim, o ápice foi a campanha rumo à final do Torneio Nacional.
Diferentemente de anos anteriores, naquele a liderança na fase de grupos era mais necessária do que nunca, pois agora somente o líder avançava. La T conseguiu isso mesmo dividindo o grupo com Racing e River; aquele perfil da El Gráfico foi publicado ainda antes do fim da fase de grupos, que adentrou janeiro de 1978. El Rana havia acabado de marcar o único gol do duelo direto com o River, enaltecido por uma charge jornalística onde um leitor perguntava a um bibliotecário na seção de “obras-primas” se ali constava “o gol de Valencia”. Aquele perfil continha ainda frases de César Menotti (“pode chegar a ser o melhor jogador dos últimos anos”) e Humberto Maschio (“é um dos melhores jogadores que vi na minha vida”), dentre outros.
As semifinais ocorreram em 14 e 18 de janeiro e inicialmente parecia que o Newell’s avançaria ao arrancar um 1-1 dentro de Córdoba, para então ser derrotado por 1-0 em plena Rosario. Enfim, o futebol cordobês estava na decisão. O gigante Independiente foi incapaz de vencer dentro de Avellaneda, de onde os alviazuis saíram com um valioso 1-1. Em Córdoba, os anfitriões arrancavam uma polêmica virada por 2-1; primeiro, com um pênalti onde um cruzamento de Valencia resvalou na mão do rojo Rubén Pagnanini, jogada interpretada como involuntária mas ainda assim punida pela arbitragem. As reclamações explodiram mesmo na virada, validando um gol de mão, reforçando a impressão de que o juiz teria se submetido à pressão de militares cordobeses.
Heroicamente, naquele 25 de janeiro de 1978 o Independiente arrancou o 2-2 do título nos minutos finais, mesmo com três jogadores previamente expulsos pelas reclamações. A esportividade da torcida local, que soube superar a amargura para aplaudir os campeões, sempre foi reconhecida pelos campeões, bem como a de Valencia, que fez questão de visitar o vestiário visitante para parabenizar o Rojo – que tivera em Ricardo Bochini o grande herói da noite, embora o próprio Bochini fosse um dos talentosos meias já cortados por Menotti da pré-lista de convocados em favor de Valencia. Ele reapareceu pela Argentina em 19 de março, em 2-1 sobre o Peru.
Em maio, Menotti fez os três cortes finais. Para a posição de enganche, sacrificou Maradona em prol de Valencia, já com 17 jogos oficiais pela seleção; Villa (que havia substituído Valencia na seleção ao longo do ano de 1977 e somava 15 jogos); e do riverplatense Norberto Alonso, que teria sido o real “ladrão” da vaga de Diego, então com apenas 4 jogos pela Albiceleste: Alonso, de fato, vinha ausente, usado somente duas vezes no ciclo de Menotti até aquele mês, e terminou recolocado de última hora por pressão de público, mídia e militares. Diego declararia naquele momento sobre a decisão de Menotti que “eu respeito sua posição porque ele é o técnico, mas isso não quer dizer que concorde. Quando me comunicaram que estava cortado, me doeu muitíssimo. Explicações? Não, não me deram de nenhum tipo. Tampouco as precisava. Valencia é o melhor camisa 10 e deve jogar, sem desmerecer Alonso e Villa. Mas é o que tem mais visão de jogo”.
Na convocação final, só o River, com cinco jogadores, teve mais representantes que o Talleres na Argentina de 1978: La T enviou três, e teriam sido quatro se o atacante Humberto Bravo não acompanhasse Maradona como um dos últimos cortados. Os defensores Miguel Ángel Oviedo e Luis Galván acompanharam Valencia, mas só Galván soube sobressair-se. O zagueiro foi seu colega de quarto e Valencia descreveu que “se cobria até a cabeça e dormia como um tronco. Eu me entendiava e saía. Isso sim: me dava uma tranquilidade dormindo como se tivéssemos 10 milhões no banco ou estivéssemos prestes a jogar um desafio de bairro”.
No início, Valencia acompanhou Galván na titularidade. Não deixou de exibir seus dribles, especialmente canetas, mas sem objetividade. Na estreia, acabou substituído por Alonso, que pôs mais fogo e acabou decisivo na virada contra a Hungria. Mantido na titularidade contra a França, El Rana até marcou um quase senhor golaço no início do segundo tempo: arriscou um toque sutil de muito longe de área para encobrir o goleiro Jean-Paul Bertrand-Demanes – que, para impedir o gol, terminou lesionando-se ao chocar a própria costa contra uma trave, precisando ser substituído por Dominique Baratelli (a jogada aparece ao 1m59s do vídeo ao fim da matéria).
Mas foi a única jogada de perigo concreto do talentoso meia, novamente substituído por Alonso. Na terceira partida, Valencia atuou os 90 minutos, sem impedir a derrota para a Itália. Menotti conseguiu bancar seu protegido até a quarta partida, quando um novo desempenho no máximo regular de Valencia fez El Flaco substitui-lo por Villa no decorrer da dura peleja contra a Polônia. Para os três jogos restantes, Menotti optou por recuar Mario Kempes improvisado para a posição. Na decisão, sequer foi relacionado para ficar no banco, e preferiu voltar à sua Jujuy rever familiares após cinco meses ao invés de participar do jantar festivo com o presidente Videla. O que não significou o fim da linha para Valencia na Albiceleste.
Afinal, seu Talleres foi pentacampeão cordobês em 1978, um recorde inédito a qualquer clube na liga local. Em agosto, o clube equivaleu-se um 0-0 com o Flamengo em amistoso em Córdoba e sapecou um 3-0 sobre o Galatasaray dentro de Istambul. Ao fim do ano, La T foi novamente líder de seu grupo no Torneio Nacional. O Talleres avançou até as semifinais dos mata-matas, tendo novamente um algoz no Independiente. Em 1979, um penta cordobês que já era recordista virou hexa. Em outros tempos, o clube seduziu o campeão mundial Alberto Tarantini, que deixou um negócio recém-acertado com o Birmingham City justificando que era mais fácil manter-se na seleção jogando a liga cordobesa do que a inglesa. Depois de onze meses ausente, Valencia reestreou pela Argentina em alto estilo. Era uma revanche contra a Itália, a única seleção que pudera bater a Albiceleste na Copa de 1978.
O troco não veio, mas El Rana deixou sua marca em um 2-2 que ele recordou assim em seu twitter. “Não fui de fazer muitos gols, desfrutava mais a jogada prévia. Mas este gol em Dino Zoff, no Olímpico de Roma, me encanta pela pedalada dupla que fiz em um defensor da estirpe de Scirea”. Para o Torneio Nacional, o Talleres emendou nova campanha de liderança em seu grupo (com Valencia inclusive marcando dois gols em um clássico cordobês, em 3-2 sobre o Instituto), à frente do River – que, ironicamente, terminaria campeão sobre o clube que eliminaria La T nos mata-matas, o Unión. Os tallarines, porém, podiam se orgulhar: pela Lei 1.309, que entrou em vigor em 15 de agosto daquele ano, o clube do interior que se classificasse por três vezes alternadas ou duas seguidas aos mata-matas do Nacional seria afiliado no próprio Torneio Metropolitano. Àquela altura, só o clube do bairro Jardín se qualificava, seja por um requisito ou pelo outro.
O Talleres já era grande demais para a liga cordobesa e não participaria dela em 1980, e sim do Metro – estreando com um sonoro terceiro lugar, embora perdesse terreno justamente no Nacional; ficou só em terceiro na chave com Argentinos Jrs e Unión. Mas o que era um reconhecimento logo teria um efeito reverso. O Talleres até bateu a seleção húngara por 1-0 no verão de 1981 em Mar del Plata, mas a rotina maior de viagens a Buenos Aires pareceu desgastar os alviazuis. Eles brigaram mesmo para não cair no Metropolitano de 1981, sem recuperar o fôlego para o Nacional: quarto lugar na chave e nova eliminação na fase de grupos. Nada que impedisse que Valencia seguisse absoluto na seleção, mesmo que gradualmente cedesse lugar ao fenômeno Maradona.
Em 1982, El Rana fez suas últimas partidas pela Argentina e foi à Copa do Mundo, embora só atuasse na derrota de 2-1 para a Itália na segunda fase de grupos. Seus mais de 40 jogos oficiais (com 25 vitórias e só sete derrotas) ainda fazem dele o jogador do Talleres mais vezes empregado pela Albiceleste. Seu perfil no livro Quién es Quién en la Selección Argentina recorda dele assim, quase como um Riquelme do seu tempo: “inteligente, hábil, de bom panorama para armar jogo, mas descontínuo e com certa frieza que terminaram por opacar o que parecia ser uma trajetória rutilante. Suas condições, poucos as discutiam. Mas lhe reclamaram – sempre – um maior compromisso anímico. (…) Teve muitos bons momentos, mas também épocas de baixo nível, onde não lograva influência no desenrolar das partidas”.
Com ele concentrado desde fevereiro de 1982 com a seleção, o Talleres soube ser semifinalista do Torneio Nacional daquele ano, travado no primeiro semestre, embora decaísse para 11º no Metropolitano com o astro de volta. Para o Nacional de 1983, Valencia voltou aos mata-matas com o Talleres, mas caíram já nas oitavas-de-final, nos pênaltis em clássico contra um Racing de Córdoba que vivia o auge (ainda fornecendo jogadores à seleção naquele 1983, os vizinhos haviam sido até vice-campeões do Torneio Nacional em 1980); e, no Metropolitano, La T desceu para 13º. Em 1984, uma nova boa campanha no Nacional impôs um troco sobre o Racing cordobês nos mata-matas, mas outra vez parou nas semifinais contra o campeão Ferro Carril Oeste, seguida de um insosso 9º lugar no Metropolitano.
No primeiro semestre de 1985, ocorreu o último Torneio Nacional, sem uma campanha tão boa pelo bairro Jardín. No segundo semestre, deu-se início a um campeonato único de calendário europeu, a finalizar no primeiro semestre de 1986. Valencia só permaneceu no primeiro turno, até o fim de 1985 – chegando a marcar um gol em triunfo de 2-1 em clássico com o Racing de Córdoba. Ao longo do ano de 1986, El Rana esteve na LDU Quito, em tempos mais modestos do clube, longe do título equatoriano. Ele voltou a Córdoba no decorrer do campeonato de 1986-87, onde registrou seus três últimos gols na primeira divisão argentina. Outrora poderoso, o Talleres teria uma temporada turbulenta no campeonato de 1987-88, terminando em uma lanterna salva apenas pelos promedios.
Valencia não permaneceu até o fim. Já veterano, parecia encerrar a carreira ao rumar no início de 1988 ao Guaraní Antonio Franco para jogar na segunda divisão argentina. Mas encontrou espaço no futebol boliviano, acertando em 1989 primeiramente com o Jorge Wilstermann antes de radicar-se no San José. O modesto clube de Oruro vivia um jejum de títulos na liga boliviana desde seu então único, erguido ainda em 1955, e com El Rana a seca pareceu próxima do fim: a equipe foi bivice em 1991 e em 1992, o suficiente para que o craque enfim vivenciasse uma Taça Libertadores. Valencia pendurou as chuteiras por lá, em 1993.
Os primeiros anos de aposentadoria foram de certa amargura. Em julho de 1997, Valencia, mesmo demitido de uma experiência de técnico do San José e com sua escolinha de futebol fechada, seguia na Bolívia, onde casou-se pela terceira vez e tivera um quarto filho. E a El Gráfico se deu ao trabalho de fazer a longa viagem rodoviária ao teto da Bolívia, onde não havia aeroporto, para entrevista-lo. “No Talleres, se esqueceram de mim”, chegou a disparar contra a diretoria alviazul, de quem esperava algum emprego nas divisões de base. Justificava a permanência em Oruro porque “eu devo muito a esta cidade. Aqui me receberam aos 36 anos, quando pensava em deixar o futebol. As pessoas me trataram com um carinho que não recebi nem em meu próprio país. Eu sei que isto não é Las Vegas, mas vivo feliz, rodeado de gente muito boa e educada”.
Em 2000, ele, que tivera um jogo de despedida na Bolívia em 1994 com diversos ex-colegas, teve um merecido jogo festivo oferecido pelo Talleres contra um combinado de amigos, atuando um tempo por cada equipe junto de Maradona, a delirar a plateia pelo dia em que vestiu a camisa tallarin. Voltou a campo também no amistoso que celebrou o centenário alviazul, em 2013, e ocasionalmente comparte algumas histórias no seu twitter @ranavalencia e no seu instagram @danielranavalencia. Outras são compartilhadas pelo filho boliviano Daniel Valencia Junior, que em abril rememorou a seguinte:
“Ele é um cara muito desapegado. Nível: me jurava que nunca havia jogado uma Copa América e, na realidade ficou demonstrado, com provas, que sim, ou, entre outras coisas, em uma excursão trocou a camisa com Cruijff e A PERDEU. Presenteou todas as suas chuteiras e camisas, o que a rigor da verdade, não é ruim. O ponto está que não se lembra a quem presenteou cada coisa. Não é que dava presentes a pessoas especiais. O primeiro que lhe cruzasse e pedisse algo, o obtinha. Nunca soube o que fez com as camisas do Mundial, a ponto que mais de uma vez vi suas camisas em alguns museus e ele não tem ideia de como chegaram aí. Enfim, poderia seguir toda a tarde com estas coisas, mas vou ao concreto: o tema que quero contar”.
“25 de junho de 1978, a Argentina se coroava campeã do mundo pela primeira vez em sua história e os festejos davam o que desejar. Calculo que todos os que jogaram o futebol alguma vez fantasiaram com a ideia de ganhar um Mundial e, não tenho que dizer-lhes, como o festejaríamos. Mas aqui a situação é distinta porque tudo trata de um cara distinto. Também devemos entender o contexto: a Seleção Argentina havia concentrado desde meados de janeiro para o que seria a prova mundialista. Se bem que aos sábados lhes permitissem viajar para jogar com suas respectivas equipes, assim que acabava o encontro deviam voltar à concentração em Buenos Aires e, consequentemente, haviam passado quase 6 meses sem ver sua família. Meu avô faleceu quando meu velho tinha 15 anos, aos 16 ele saiu de sua casa para jogar profissionalmente e já ficar instalado em Córdoba”
“O jogo havia terminado. Argentina 3, Holanda 1. Os jogadores se reuniram todos para festejar e preparavam o jantar onde brindariam por todo o alcançado. Mas havia algo raro, faltava alguém dentro do plantel. Já saberão quem era o ausente. Talvez com 22 anos não tomava dimensão do conquistado, mas esse é um pensamento completamente subjetivo da pessoa que escreve essas linhas. O Obelisco explodia de gente, todos em suas casas se abraçavam com sua família, tudo era algazarra. No hotel, os jogadores festejavam enquanto um preocupado preparador Pizzarotti o procurava. Nesse tempo – esclareço aos leitores mais jovens – não existam os meios de comunicação que temos hoje, a busca era quase inútil. O recepcionista do hotel decide aproximar-se do preparador, a quem via bastante preocupado, e lhe dá um papel: ‘profe, obrigado por tudo. Somos campeões do mundo! Vim rápido ao hotel antes que as pessoas lotem, vou já para casa ver minha mãe. Me despeça para todos. Abraço enorme’”.
“Assim foi que meu velho, tão logo saiu campeão do mundo, decidiu sair para festejar com minha vó. Já é material suficiente para finalizar este fio, mas como se trata de uma pessoa particular, ainda não lhes contei tudo. No caminho a Jujuy, os fiscais que o viam passar tiravam fotos e festejavam com um de seus superiores. Assim foi que, desde Tucumán, saiu a notícia de que o primeiro (ao dia de hoje, único) jujueño campeão do mundo estava voltando à sua terra natal. O governo jujueño tomou nota da situação e decidiu declarar feriado para que o povo jujueño pudesse ir receber seu herói”.
“Obviamente uma pessoa no meio da estrada não tinha forma de saber dessa notícia, mas não aconteceria nada porque iam lotar a entrada principal. Para chegar à casa da minha avó, tinhas duas possibilidades: pegar a avenida principal (que é o que todo mundo faz) ou uma estrada de terra que meu velho transitava quando tinha 13 anos. “Adivinhem que caminho escolheu? Exatamente, foi pelo caminho de terra. Uma vez chegado, mais sorridente do que nunca, esperando, finalmente, reencontrar-se com sua mãe, toca a campainha. Abre a senhora que trabalhava aí”.
“‘Daniel, que está fazendo aqui?’. ‘Eu gostaria que me recebessem melhor’. ‘TODA A PROVÍNCIA ESTÁ DE ESPERANDO NA AVENIDA PRINCIPAL!’. Vocês dirão que o importante era poder ver minha avó, e têm razão. Sabem qual foi o problema? QUE MINHA AVÓ TAMBÉM HAVIA IDO À AVENIDA RECEBÊ-LO. É assim que a história do cara mais desapegado do mundo se conclui. Pessoalmente sempre me perguntei ‘como pode ter ido embora sem ficar para os festejos?’, mas quando me diz ‘abracei tua avó por duas horas, e isso foi melhor que tudo’ não tive mais objeções a suas decisões. Foi assim, até o último dia da minha vozinha. Sempre um campo de futebol, e eles juntos”.
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